24.10.02

Engrenagem


Tentei fugir dessa máquina devoradora de vidas chamada tempo negando por completo sua existência. Não digo esse tempo-relógio, que de uma forma ou de outra, seguimos como escravos por pura falta de opção. Falo de algo mais complexo, daquele tempo-física, de que tanto falou Einstein, ou o tempo-filosofia, que tanto preocupou os antigos gregos.

Suas engrenagens invisíveis não são menos mortais porque etéreas. No seu status de "abstração", o tempo é, mesmo imperceptível, voraz e implacável. Nada resiste à sua fome. Cidades, pessoas e até monumentos erigidos com sua ajuda, como uma montanha, por exemplo, não representam nada diante da sua perenidade.

Passei a ignorar o tempo e seus efeitos. Via os dias, os meses e os anos passarem por mim, mas os imaginava - e eu os tratava como - meros subalternos do tempo, eram compartimentações do tempo criadas pelo homem, esse ser temporal e falho. Não lhes dava a mínima importância.

Por incrível que pareça, minha artimanha fez efeito. Ignorar o tempo me rejuvenesceu. Via todos à minha volta envelhecerem, seguindo o curso normal da putrefação cronológica de suas carnes, o que não ocorria comigo. Perguntavam-me sempre o que fazia para manter a aparência jovial por tantos anos. Eu respondia que ignorava o tempo. Os pobres ignorantes sempre riram dessa resposta.

Os primeiros contratempos foram, como vocês podem imaginar, o falecimento de várias pessoas que me eram muito próximas. Meus pais foram antes, como naturalmente haveria de decidir o feitor tempo. Mas quando minha esposa - contava com alguns anos a menos que eu - morreu encarquilhada e seca enquanto eu mantinha minha aparência de meia idade, comecei a notar a vingança sutil do tempo. Depois foi meu filho, que até faleceu cedo (tinha cerca de 50 anos), mas mesmo assim poderia passar facilmente como meu irmão mais velho.

O que o tempo não esperava ao me lançar essa maldição era a minha impassibilidade. Ao me tornar atemporal, eu simplesmente não conseguia mais me ater aos velhos laços sentimentais e emocionais que a humanidade rotineiramente se enreda. Senti a perda dos meus entes queridos? Claro, mas não era nada que me chocasse tanto.

E o tempo foi passando e eu, imbatível, segui ignorando sua existência. Vi guerras e pazes começarem e recomeçarem, demonstrando que mesmo sendo tirano, o tempo não é o melhor dos mestres para os homens. Vi os prodígios da ciência e da tecnologia mostrarem que o tempo, o mais paciente das divindades, também auxilia seus súditos. Tudo passava por mim, e enquanto mais eu aprendia, mais ansiava por conhecimento.

Mas eis que, séculos e séculos depois, o tempo finalmente me jogou em uma armadilha de onde não existia uma saída. Ele engendrou, pacientemente, essa forma definitiva de me dobrar, me obrigando a uma humilhante desistência.

Com todo meu conhecimento acumulado, eu era a pessoa mais sábia do planeta. Não que eu alardeasse esse fato, não queria a fama, que só me traria aborrecimentos. Meu conhecimento era apenas para mim, e eu desfrutava egoisticamente dele. Não escrevi livros nem treinei discípulos nas técnicas de superação do tempo. Eu era um ser uno e essa unidade me bastava. Mas sempre fui ávido por conhecimento e estava cada vez mais dependente de aprender. Essa foi a minha ruína. Depois de séculos e séculos de aprendizado e estudos, simplesmente não havia mais nada que eu não soubesse. Eu esgotara as dúvidas, o que decreta o fim das respostas.

Estava desesperado, mas sabia exatamente o que me restava fazer. Não havia mais sentido continuar vivendo. Eu decidi me matar. Quando eu ia executar o desmedido ato, o tempo, corporificado como nunca ninguém havia visto antes, me apareceu.

- Você viu onde seu orgulho lhe trouxe. Agora você sabe tudo, inclusive que de algumas engrenagens, não existe escapatória.
- Você tem razão. Eu mesmo me encurralei. Não me resta nada a fazer além de me matar.
- Não. Você não vai se matar. Isso seria uma dádiva para alguém que ousou desafiar o tempo. Você sabe o que eu quero, não?
- ....Sei. Sei exatamente o que você quer. Eu devia imaginar que você, cruel como sempre foi, iria me obrigar a esse tipo de humilhação.
- Acha mesmo que eu sou cruel? Será mesmo que ainda resta uma lição para você e justo eu, o tempo, aquele com quem você declarou guerra, terei que lhe ensinar? Eu não sou cruel, eu sou justo. Tudo tem seu ciclo. Você errou exatamente aí. Não compreendeu que tudo é parte de um único mecanismo. E que seu funcionamento depende que cada um dos seus elementos - ou engrenagens, se assim preferir chamar - esteja no seu devido lugar. Você cometeu o crime de parar essa máquina. Você nem tem idéia do mal que você causou. Na sua soberba, você quase abalou as estruturas do real. Não se pode fugir do tempo. Se você não fosse tão prepotente perceberia que, no fim, tudo que existe é eterno. Claro que não têm a eternidade efêmera que você encontrou.
- Eu percebo. E desisto. Sei o que você fará...pode me punir.

Depois disso, o tempo se esvaiu no ar. Assim que ele desapareceu, comecei a sentir minha pele esgarçar, me senti cansado e com a visão turva. Essa era a vingança definitiva do tempo. Ele iria me envelhecer. Ele cobrava agora os anos que lhe roubei. E vou sentir, literalmente, na pele, seu passar. Em sua marcha normal, o tempo é, na medida do possível indolor. Ao passar rapidamente, ele dói. Uma dor que apenas um criminoso como eu merece sentir. Eu vou morrer, mas só depois de sentir o peso dos milhares de anos que vivi desabarem sobre minhas costas.

Incurável


Então eu sou o errado
Eu sou o pária
O sem valor

Se é assim, eu assumo
Eu sou mesmo
Sou o plano que deu errado
A piada não entendida
A dívida não paga

Eu não quero saber da cura
Quando sei que essa doença
Não tem remédio

23.10.02

Estrago



Largou o lar sem a menor cerimônia, fugindo com um motoqueiro barbudo e cabeludo, cheio de piercings e tatuagens. Mais que a fuga, o chifre e o abandono de dois filhos pequenos para criar, o que irritou mesmo a parte abandonada foi o mau gosto da parte abandonante. Ele fora trocado por um estereótipo. Pior, um estereótipo de mau gosto, kitsch, brega. Isso, ele nunca perdoaria.

Sempre fora um cara comedido, educado, centrado. Ela era mais doida mesmo, mas não imaginaria nunca que seria a esse ponto. Mas ele devia ter desconfiado. Nas suas últimas discussões, ela sempre procurava leva-lo à loucura, era visível que ela queria que ele perdesse completamente o bom senso e a esbofeteasse. Ele chegou a ameaça-la na última briga.

- Infelizmente, você não é homem pra isso...quem dera fosse!


Ela saiu, trancando a porta do quarto. Ele saiu para arejar as ideias. Esteve mesmo a ponto de cometer o bárbaro ato de espancar uma mulher, a mãe de seus filhos. O que ela queria afinal de contas? Um marido, bom pai de família e responsável, ou um troglodita qualquer, que a esmurrasse pelo menor motivo?

Quando ele voltou, encontrou o armário do quarto meio vazio. Ela tinha ido embora, e levara suas roupas. Deixou um bilhete, explicando que não aguentava mais a monotonia dele, que ele era um chato e que fugira com contínuo do escritório dela, o motoqueiro cabeludo. No final da carta, ela ainda disse que esperava que agora, finalmente, ele tomasse uma atitude de homem.

Não tomou.

O tempo passou, mas não o ódio que ele sentia da mulher foragida. Um dia, sem mais nem menos, completamente sem aviso, ela aparece à porta de casa. Estava bonita, poderia dizer que a temporada com o brutamontes a fizera rejuvenescer.

- Você veio para ficar? - ele perguntou
- Vim ver as crianças. Do jeito que você é palerma, elas poderiam estar morrendo de fome...
- Se você realmente se preocupasse com isso, teria aparecido antes. 3 meses são mais que suficientes para uma criança morrer de fome.
- Sei disso...mas pelo menos comida você conseguiria arrumar, tenho certeza...
- Não preciso das suas ofensas. Responda: você veio pra ficar ou não?
- Não. Vim só ver o estrago que causei à sua vida.

Ele nem se deu ao trabalho de responder. Entrou no quarto e quando voltou, já chegou disparando o revólver que vinha trazendo na mão. Acertou três tiros no peito da mulher.

No chão, ela morria. E apesar da dor que devia estar sentindo, sorria.


4.10.02

Persistindo

Não,
Ainda não acabou.

Ainda não foi dito tudo
Ainda não matei a fome
Ainda não estou curado

Não,
Ainda falta um tempo

Falta crescer o bastante
Falta a vergonha na cara
Falta o pingo de senso

Não, ainda não
Quando acabar, eu aviso.

24.9.02

Vida: modo de usar


Eterno insatisfeito, resolvo todos meus problemas na base do chute: guio minha vida assim, descuidadamente, sempre triscando os postes e transeuntes. Não digo que é uma vida perigosa, mas devo respeitar alguns limites, claro. Não posso, por exemplo, deixar de gritar impropérios meia hora por dia pelo menos, ou corro o risco de deixar que as pessoas de ouvidos sensíveis se aproximem demais. Devo também lembrar sempre de mergulhar de cabeça em todo o tipo de incertezas que me apareçam na frente, sejam elas sobre minha futura vida ou minha certa morte. Fazendo isso, evito a acomodação e o mofo que acomete os recalcitrantes do cotidiano. Mau humor é a tônica, pois isso mostra minha aversão ao modo como tudo é conduzido bem debaixo do meu nariz ( e eu sou alérgico à feladaputagem que campeia nosso mundo). Viajar – mesmo sem sair do lugar – é vital para limpar o limo das articulações e das várias arestas corpóreas.

E, isso é muito importante, sempre sentir saudade do que não houve, desejando com ardor as novidades, mesmo que já velhuscas. Saber que o passado que não aconteceu também pode modificar, para melhor, nosso futuro.


17.9.02

Fim



Acabou. Não há de se procurar razões ou culpados. A coisa se deu assim: se esgotou por si mesma, sem chance de volta. É o fim.

Um fim anunciado, talvez. Mas quando não se faz nada para evitá-lo, ele vem. A inevitabilidade da coisa não chegou a transformar a urgência do que viria a acontecer em ação. Se se poderia evitar? Talvez. A questão é que o preço da impassibilidade é esse. Agora, tudo é findo.

Não há arrependimentos, contudo. Os ciclos vêm e vão, são coisas da vida. Não se chocar não é sinônimo de passividade. Querer demonstrar revolta ou perplexidade é, agora, um exercício inútil. É como se desejar fugir da morte. Não há saídas por aí.

E quem pode garantir que o fim de uma fase não será o começo de outra melhor? Quem pode afirmar que não se irão as amarras, não surgirão coisas novas, prontas para serem descobertas e exploradas? Quem garante que o fim não é o melhor que poderia acontecer?

Isso, é território que não nos pertence, ao qual não temos acesso. Vamos apenas vivendo, esperando por algo que nos revolucione a vida.

16.9.02

Amor de mentira


O sujeito acordou um dia, olhou para o lado, viu sua mulher e percebeu que ela lhe era uma completa estranha. Nada sabia sobre seus anseios mais profundos, o que ela realmente desejava para sua vida. Não fazia ideia de que sonhos podiam estar acalentando seu sono. Estava casado há 9 anos com a mulher.

Ficou olhando sua esposa. Até aquele dia sempre pensara que o motivo do seu casamento era o amor que nutria por ela. Mas o que era o amor? Isso, uma rotina de beijos de beijos de bom dia, o–que–quer–pro–café, almoços esporádicos no Centro da cidade, como–foi–seu–dia no fim da tarde, um jantar ou outro sozinhos ou com amigos e sexo mais ou menos interessante 3 vezes por semana, com certeza, não era sequer um invólucro de amor, nem mesmo seu mais pálido arremedo.

Saiu da cama sem fazer barulho. Juntou algumas roupas em uma mala, fazendo questão de esquecer ternos e gravatas. Pegou sua carteira e saiu.



A mulher, ao acordar, notou o sumiço das roupas e vendo a pasta 007 de couro do marido na mesa, notou que ele não tinha ido trabalhar. Achou estranho e ligou para o celular dele. Ele tocou a menos de 2 metros dela, de dentro do terno usado no dia anterior por ele.




Ele foi ao banco e zerou sua conta. Pegou cerca de 87 mil reais, colocou na sacola de ginástica que carregava e saiu. Foi a pé até a banca mais próxima e comprou um jornal. Foi direto nos classificados. Encontrou o que queria em pouco tempo:

Wanda
Loira tipo mignon, olhos azuis, 18 aninhos, muito liberal. Faz porque gosta. Atendimento em casas e motel. Tem privê. Tel: 9999–9999.


Ligou de um orelhão. Wanda parecia cansada, ainda não eram dez da manhã. Marcaram no apartamento dela.

Ele pegou o táxi e parou no prédio repleto de conjugados em Copacabana. Wanda apareceu, tinha acabado de tomar banho e mesmo não conseguindo esconder suas olheiras com a água e o sabão, era bonita. Ele tinha quase certeza que os 18 dela começaram a ser contados uns 5 anos depois do seu nascimento, no mínimo. Não que isso importasse.

Ele entrou sem falar nada. Ela já conhecia esses tipos esquisitos. Não ficou assustada, ele não parecia violento. Foi logo falando quanto seria o programa, mas ele o interrompeu.
– Quero saber quanto você cobraria para me amar…

Vendo a cara de estupor de Wanda, ele explicou sua proposta. Ele estava cansado da sua vida, tudo lhe era enfadonho. Estava cansado dessa vida real que lhe impuseram, da qual ele não teve forças para resistir. Queria emoções de verdade, nem que fossem de mentira. Queria paixões pagas, amores de mentira, mas que em sua falsidade, pelo menos parecessem com algo palpável. Perguntou quanto ela cobraria para deixá-lo morar com ela, por um mês. Pagaria o aluguel e os programas que ela faria à noite. As únicas condições eram a exclusividade – seria só dele, por um mês – e fingiria que o amava como nunca amou alguém antes. Ele queria devoção total, queria que Wanda o fizesse sentir não como o maior dos homens sobre a Terra, mas que ele fosse o único. Ela não sabia o que dizer, nem quanto cobrar e o que mais lhe assustava: esse era mais estranho que a maioria.



A mulher começou a ficar preocupada. O porteiro do seu condomínio de luxo tinha visto seu marido descer com uma mochila e roupa de ginástica, logo cedo. Ela ligou para o trabalho e nada, para a família e nada, para os amigos e nada. Não sabia onde ele poderia estar. Logo hoje ele foi resolver de aprontar uma dessas. Eles tinham um almoço marcado com a Marizete e o Edu. Onde andaria esse homem???




Wanda aceitou a proposta por 30 mil, recebendo mil por dia. Mil por dia era muito mais do que ela conseguia tirar, mesmo nas melhores épocas. Ela perguntou se ele traria algum tipo de mudança. Ele disse que a única mudança que era importante para ele nessa hora era a que fazia em sua própria cabeça. Wanda não deu importância à resposta. Já conhecia esses tipos esquisitos. Pediu para ver a grana e ele mostrou na sacola. Ela nunca tinha visto tanto dinheiro junto e pensou que o sujeito devia ser mesmo louco de andar por aí com aquela grana toda e pior ainda, mostrar para um garota de programa, na sua própria casa, que estava tão endinheirado. Ou ele tinha muita autoconfiança ou era mesmo maluco. Ele era mais estranho que a maioria.



No segundo dia desaparecido, ela resolveu dar queixa na polícia. Soube que seu marido tinha encerrado sua conta bancária e que não parecia nem um pouco preocupado com isso. Na delegacia, desconfiaram de um sequestro relâmpago, apesar de dois dias ser um tempo longo demais para ele não aparecer. A imagem do seu marido apareceu em todos os jornais e na TV. O engraçado é que ela nem conseguia ficar muito triste. Mas reparou que a foto usada na divulgação o deixava mais magro.




Wanda viveu os melhores dias da sua vida, assim como ele. Ela foi a melhor das mulheres e a amante mais devota. Ele gastou todo seu dinheiro com ela, em noitadas, presentes e viagens em profusão. Estava falido e feliz. No fim do prazo, ele se levantou, olhou Wanda deitada ao seu lado, e imaginou que, mesmo não tendo nada além de uma transação comercial com ela, achava que tinha sido mais feliz e que de certa forma a amava mais que àquela mulher com que havia se casado, há pouco mais de 9 anos. Foi embora sem fazer barulho, levando apenas o que tinha trazido no dia em que chegou ao apartamento. As roupas que comprara, os equipamentos de áudio e vídeo e outros eletrodomésticos foram deixados para traz. Wanda não acordou com sua saída.

Como se não tivesse demorado mais que alguns minutos, ele voltou para casa. Sua mulher ficou surpresa, mas se refez do susto em pouco tempo. Não teve arroubos de felicidade, mas também não foi indiferente. Pediu explicações, no que foi prontamente atendida. Após ouvir a história daquele homem com quem havia vivido tanto tempo, viu que não o conhecia. E se ele tinha o direito de procurar a felicidade, ela também tinha. Deixou-o na cozinha. Alguns minutos depois, voltou, mala em punho. Deu um tabefe na cara do seu marido e saiu, sem dizer palavra.

Nesse momento, ele teve a impressão de ter compartilhado primeira vez algo de real com sua esposa.



Wanda acordou sozinha na sua cama. Percebendo o que havia ocorrido, chorou. Ele não havia sequer dito seu nome para ela.


13.9.02

O literato


Amava tanto as palavras que resolver ter um contato maior com elas. Já não bastava apenas a visão ao lê-las ou a audição, ao ouvi-las. Queria que as palavras fossem percebidas por todos os seus sentidos. Precisava tocá-las, então deu-lhes volume. Precisou cheirá-las, então aromatizou-as. Mas o que ele queria mesmo era sentir o paladar das palavras.

Não começaria de forma abrupta. Começou engolindo letras e pontos. Então ele comeu o S, só para começar. Achava a forma sinuosa da letra apetitosa. Engoliu a letra de uma só bocada, lambendo os cantos da boca. Achou delicioso. Para rebater, engoliu um ponto de exclamação. Como sobremesa, um ponto e vírgula.

Depois de adaptado à dieta de letras, partiu para as palavras. Sempre desejou sentir o gosto da palavra "saudade", alardeada como uma das mais bonitas da língua portuguesa. Deliciosa. Ironicamente escolheu "delícia" como próximo prato do seu cardápio lexical. Também gostou.

Diferente das letras – as quais havia adorado todas – algumas palavras eram saborosas, outras não. O sabor da palavra "sutileza", por exemplo, era melhor que o da palavra "esdrúxula". Descobriu depois de algum tempo seguindo essa alimentação que certas palavras combinadas com outras podiam melhorar o gosto de ambas. Fazia receitas com as palavras. Os pratos eram as frases.

"Ora direi ouvir estrelas", "Já podeis da pátria, filhos" ou "Ser ou não ser, eis a questão" eram pratos mais pesados que "Alvorada, lá no morro, que beleza" ou "Olha que coisa mais linda". Catalogou as frases após degustá-las. Ditados eram ótimos petiscos. A poesia era excelente como uma salada ou uma entrada leve e a prosa era sempre o prato principal.

Sabendo como as palavras e frases combinavam em sua mesa, o caminho lógico era partir para os grandes jantares: os livros. Foi responsável por lautos banquetes, sempre bem acompanhado por Catulo, Camões, Cervantes, Dumas, Shakespeare, Machado. Era feliz, e melhor, bem alimentado.

Até que um dia ele comeu demais. Havia exagerado, tendo como refeição alguns filósofos alemães e uma ou outra página de Kafka. Passou mal. Correu ao banheiro e não teve outra saída: regurgitou todo seu lanche.

A ironia da coisa é que seu vômito ganhou o prêmio Jabuti do ano.

12.9.02

Ata-me


Ata-me
Assim
Ao seu mistério

Castra-me
Em mim
Minha luxúria

Ama-me
Enfim
Se eu te amo

Mata-me
Por fim
Porque eu mereço

11.9.02

O escultor de montanhas




Meu trabalho leva séculos, milênios. A paciência é minha maior virtude. Moldo meu material com calma, levando em consideração cada uma de suas arestas, cada uma de suas fendas. Esculpo cada uma das minhas obras com afinco e dedicação, gerando peças monumentais.

Eu esculpo montanhas.

Tenho como ferramentas os elementos. Cordilheiras inteiras, com sua beleza grandiosa, criadas, vagarosamente, pela erosão. Mares, rios e chuvas cavando seu corpo; o vento espalhando seus fragmentos, pouco a pouco; o calor do fogo da lava, moldando seu interior; e a terra, a grandiosa terra, a mãe de todos os elementos, alma do meu labor, compondo tudo.

Dedico minha vida ao meu trabalho.

Sou alheio aos homens e seus corpos frágeis e mortais e suas obras insignificantes. A eternidade está ao meu lado e crio minhas obras sob o signo da perenidade. Gerações e gerações vêm e vão e sequer parte do que faço pode ser percebido pela humanidade. E eles, demonstrando sua eterna tolice e arrogância, ainda ousam me desafiar, quando desafiam o que crio. Quantos já feneceram, ao tentar galgar seus cumes? Quantas cidades, com suas frágeis montanhas de concreto, foram engolidas com um simples expelir da seiva quente dos meus picos? E quantos não foram soterrados por seu mar sólido, que descendo de seu topo destrói tudo que não tem sua força?

Minhas obras são maiores que os homens.

Eu sou o escultor de montanhas. Não procuro reconhecimento. Nada além do resultado do meu esforço pode me recompensar. Meu trabalho remonta ao início dos tempos e no fim deles ainda estarei na minha lida. O que mais poderia me envaidecer?

Eu e minhas esculturas estamos nas bordas do tempo.

Oração


Acordei e fiz uma oração. Minha oração não se destinou a um deus velho e de barbas brancas que nos criou à sua imagem e semelhança, tampouco para o seu filho que se sacrificou por nós (?) sem que eu houvesse lhe pedido algo, e por isso mesmo não me julgo devedor de nada. Menos ainda para o Espírito Santo ou para o mistério da Santíssima Trindade, pois de mistérios a minha vida já está cheia. Não orei também pelas milhares de vítimas do terrorismo – seja ele oficial e aceito de bom grado pela comunidade cristã ocidental ou executado por xiitas – nem pelas crianças que morrem de fome nos quatro cantos desse planeta moribundo.

Orei, admito, para mim. Da forma mais egoísta que alguém já pode ter orado. Eu me permiti fazer isso. Não suporto mais qualquer tipo de dogma estabelecido. Misturo o sagrado e o profano, pecador confesso e convicto que sou. Rezei por meu próprio benefício, narcisisticamente. Orei para algo que não compreendo, mas sinto que existe. Não lhe vejo a face ou seus milagres, não o amo acima de todas as coisas e ainda assim, filho pródigo e ingrato, espero sua benção.

E não me arrependo nem em pensamento por isso.

10.9.02

Línguas


Então eu dou um beijo nessa boca e minha íngua invade sua boca e a sua língua invade a minha boca e assim vai, língua na língua, numa fala sem palavra, porque não precisamos de palavras nessa hora. E a volúpia das bocas e línguas nem precisa tomar conta dos nossos corpos atados, o beijo em si se basta e toda a volúpia cabe nesse espaço onde as duas línguas se cruzam. Sentimos o gosto um do outro e esse gosto é o mais saboroso que se pode provar.Dente, céu da boca, lábios, tudo fundido de uma forma única, tato e paladar, sentidos agora sem plural, uma sensação só, que desejamos nunca se separem, que esse momento não se acabe nunca.

Mas acaba.

E sua língua rollingstoneana começa a soltar palavras, como se essa fosse sua premissa básica, com se ela não tivesse sido criada para qualquer outra função, como se não soubesse fazer outra coisa. A torrente de sons e fonemas afoga nossos ouvidos, convidando a audição antes intrusa em nossa confraria de dois sentidos, sublimando com a urgência com que as ondas sonoras se propagam da sua boca tudo o que havia de volúpia.

Maldita é essa língua agora. Maldita é a língua que fala.

Umbigo

Os ventos da mudança
Vêm de todos os lados
E eu, sentado,
Espero
A impaciência e o enfado
Hão de me conseguir
O que quero
São meus aliados
Nessa de ir e vir

Eu espero
As guerras e as torres que caem,
Confesso,
Não me abalam
Só aguardo o que me vem
Preciso desse egoísmo
Para ir além

Hai Kai


Fim de inverno
O pássaro que canta
Antecipa a estação

9.9.02

A chegada


…e num dia de chuva, quando ele nem mais esperava, ela chegou. Sua chegada era o que ele mais desejava. Há muito precisava dela, mais que tudo. Foram anos de uma angustiante espera. Acordava com ela na mente, passava o dia ansiando por ela, perdia o sono a desejando. Depois de alguns anos, desistira de esperá-la. Pelo menos acreditava nessa desistência. Em seu íntimo, ainda tinha fé na sua chegada.

E ela chegou. E depois de alguns minutos de regozijo, sentiu algo estranho. Não estava feliz, mesmo tendo em suas mãos algo com o que sonhara durante tanto tempo.

Percebeu que, depois de tanto tempo, era a espera que o mantinha vivo. E o anticlímax da sua chegada foi o bastante para perceber que nada mais fazia sentido.

6.9.02

O Sorriso


A garotinha me olhou de dentro do ônibus escolar do Centro Educacional da Lagoa. Eu estava de óculus escuros, e talvez isso tenha lhe tivesse despertado a curiosidade. Ela me deu um sorriso, mesmo sem saber que eu a estava observando.

Se ela soubesse da raiva imbecil que tenho dela. Uma raiva sem propósito e burra, proveniente da inveja que senti da sua melhor sorte financeira, da sua infância recheada de brinquedos e guloseimas aos quais nunca tive direito, das suas bochechas rosadas, da sua educação excelente desde o maternal, do leque de opções que ela terá no futuro e que eu não tive e nem tenho mais tempo de ter.

A garotinha sorriu para mim. Eu não retribui o sorriso.

5.9.02

Retas





Por mais distantes que estejam duas retas paralelas uma da outra, o infinito é sempre seu ponto de encontro.




4.9.02

Uma outra manhã


Aspirei todas as lágrimas num dia de sol. Ainda gotejava o orvalho da fria noite anterior e nem os pássaros ousavam sair dos seus ninhos. Revi cada ato dessa vida que me esbofeteava a cara a cada manhã e finalmente compreendi porque cada queda é uma nova conquista. Saí nu pelo quintal da casa, fazendo questão de deixar as roupas junto com as culpas vãs que me vestiam na cama.
Quando voltei à casa, já era outra manhã, um outro dia.

3.9.02

Antraz


Existe essa amiga que ama as palavras e as utiliza muito, muito bem. Ela só escreve em prosa. Diz que não gosta de poesia. Coitada. Se soubesse que cada uma de suas frases, até aquelas que são mais displicentemente jogadas no texto, é repleta de imagens quase táteis. Se soubesse da poesia que sua prosa é carregada, como parágrafo, cada linha, cada palavra é um labirinto repletos de variáveis. Se soubesse como ela inverte o senso comum a cada novo escrito e se soubesse que essa é a função da poesia, revelar novos sentidos para as coisas que nos acostumamos a só ver a olho nu. Se ela percebesse que ela abre novos caminhos, novas visões, novos sentidos a cada nova leitura que nos proporciona…Se ela soubesse…

Se ela soubesse não diria que não gosta de poesia…ela nunca falaria esse tipo de besteira.

Acato


A cada
canto
do quarto

A cada
manto
da cama

A cada
canto
acalanto

A cada
"acato"
que faço

Um pranto

2.9.02

Audácia


Eu, logo eu, falho e desnecessário como sou, cometi a audácia de me imaginar capaz de criar algo. EU, que nem consigo conviver com o que criam para mim, me meti tentar inventar mundos e histórias, atos e pessoas. Nem meu mundo, minha história e meus atos eu controlo!!! Tsk, tsk, tsk…

Que ousadia…

Fuga


Pensei que todo o problema era não conseguir correr até minha pernas virarem geleia. Não ter o fôlego necessário para seguir desabaladamente até o fim do dia, para ficar longe dos olhos de quem eu detesto e quero o máximo de distância.

Mal sabia que para conseguir fugir eu devia era desaprender a andar. Desaprender a me mover. Até como pensar eu deveria esquecer como se faz. Devia virar um objeto, inanimado, no canto mais escuro da minha casa e deixar o tempo passar, com sua poeira inevitável, suas teias de aranha e suas lembranças inúteis.

De outra forma, não há fuga possível de dentro do seu próprio esquife.

30.8.02

MERDA!


Me aconselharam ir à merda. Claro que eu não sabia o caminho. Até queria ir mesmo, deve ser um lugar diferente, e apesar do cheiro, provavelmente é mais interessante que essa pasmaceira que insiste em reinar por aqui. Fui até a rodoviária, comprei a passagem e esperei o ônibus que iria à merda chegar.

Esperei três horas no ponto de ônibus, e nada. Cansei. Nem à merda eu consigo ir. Vou mandar tudo pra puta que pariu em breve…

Será que ainda tem passagem pra lá?

O bingo


Chovia gritantemente no centro da metrópole e ele, desgraçadamente, não tinha levado um guarda chuva. Isso não o surpreendia, era o cara mais azarado que conhecia. Saiu de casa com um sol do agreste no couro; ao sair da estação do metrô, Deus havia produzido "O Dilúvio – parte II" sem avisá-lo. Rotina para ele.

Entrou numa transversal à principal avenida da cidade. Estava completamente ensopado, como se tivesse surtado e resolvido tomar um banho com as roupas no corpo. Entrou no primeiro prédio que encontrou, nem viu o letreiro. Importante era se abrigar da chuva torrencial.

Entrou em um saguão amplo e muito iluminado, com neons para todos os lados e luzes espocando na sua cara. Como ainda era tarde e não existem boates naquele região, viu que entrara num bingo. Eh, logo num lugar onde não se vive sem ter sorte. Muito azar. Ficou na dúvida entre enfrentar a fúria dos elementos do lado de fora ou arriscar a ter um enjoo vendo as pessoas velhuscas que arriscavam suas aposentadorias no local. Preferiu a pneumonia inevitável e já ia saindo quando ouviu um anúncio saindo de auto falantes muito bem camuflados:

"Atenção! Vai começar o sorteio do grande prêmio! Procurem seus lugares! Segurança, fechem as portas!"

Não entendeu o porque de fecharem as portas, mas antes que isso ocorresse, resolveu sair. Ao chegar perto da porta, o leão de chácara – um sujeito que deixou o termo "leão" ridículo. Melhor seria "rinoceronte de chácara" – barrou sua passagem. Argumentou que não ia participar do sorteio, que odiava bingos, que tinha um compromisso inadiável. Foi inútil. O segurança o conduziu, não muito delicadamente, até uma mesa. Na mesa havia uma velhinha, dessas com o cabelo roxo. Sua pele tinha a textura igual a pele da Cleópatra. Isso, claro, se ela ainda fosse viva. Usava aquelas "roupas de velha" que de tão antigas já pareciam estar na moda de novo. Ela não faria feio numa rave, com aquela indumentária e aqueles cabelos. E claro, os enormes óculos escuros que escondiam metade do seu rosto vetusto e borrocado de maquiagem. Ela não demorou a tentar ser simpática.

– Nossa, meu filho…você é muito novo para estar aqui! Acho que nunca vi alguém tão novo nesse bingo.
– Pois é, minha senhora…eu nem queria estar aqui, mas não me deixaram sair…
– Você está aqui por engano? – falou a velha com uma cara parva de espanto.
– É...Por que?
– Meu Deus!!! Mas isso…

A velhota foi interrompida pelo apresentador, que anunciou o início do bingo. Os números começaram a girar e a ajudante do apresentador tirou a bolinha. Ele tentou perguntar para senhora o que afinal estava acontecendo.

– Shhhhh! Quero ouvir o número…Silêncio!!!

Achava que isso já era demais. Ameaçou levantar, mas ao seu primeiro movimento, sentiu o peso da "pata" do segurança em seu ombro. Não tendo outro jeito, pensou em se divertir. Pegou a cartela à sua frente e prestaria atenção no sorteio.

– Ateeeeeeeenção!!!! E o primeiro número é o 32!!! Será que dona Henriqueta consegue hoje o rim que ela tanto precisa????

Não havia entendido. Um rim? Como assim, um rim? Não aguentando a curiosidade, interpelou a velhota de novo. Sussurrou-lhe no ouvido.

– Mas minha senhora?!?! Que diabo de bingo é esse que dá como prêmio um rim???
– Você não sabe mesmo o que está fazendo aqui, não?
– E tem algo pra eu saber? Isso é um bingo!!!

Então a velhinha explicou-lhe a natureza daquele bingo. Ali, o grande prêmio não eram carros, eletrodomésticos ou dinheiro. Eram órgãos. Órgãos humanos. A mecânica era a seguinte: a pessoa que completasse primeiro sua cartela ganhava, da pessoa que tivesse menos números em sua cartela, o órgão que ela precisasse. O órgão era extraído ali mesmo no bingo, numa sala nos fundos do prédio.

– A senhora bebeu? – ele falou, meio exaltado.
– Shhhhh….as pessoas querem ouvir os números!
– A senhora é louca! – disse, dessa vez em voz baixa.
– Claro, claro…

Ao concordar com ele, a velhota tirou seus enormes óculos. No lugar onde deveria haver um dos olhos, existia um buraco horrendo.

– Eu já perdi uma vez, meu filho…

Aquilo já era loucura demais para ele. Ele se levantou e partiu em direção á porta, decidido. Nem viu de onde surgiu o soco no estômago. Caiu no chão, gemendo e olhando o tornozelo do rinoceronte de chácara, ouviu seu delicado pedido para que voltasse ao seu lugar. Não via saída. Tinha que participar mesmo da brincadeira. Só temia, como sempre, seu azar. E além do mais, depois daquele soco, ele bem precisava de um baço novo.

43, 56, 21, 19, 33 – ponto! – 15, 31, 11…os números eram cantados, um após o outro, e ele tinha apenas uma pedra na cartela. A situação estava ficando desesperadora. A velhota ao seu lado, por exemplo, precisava de apenas mais quatro números para arrancar-lhe os olhos da cara. E ele ouvia cada novo número, cada nova comemoração nas outras mesas e nada de saírem seus números com pavor.

20 – opa! – outro número para sua cartela. Ele já estava ouvindo os velhos a sua volta falando que só faltavam 2 ou 3 pedras e que finalmente iam conseguir um rim, um fígado, etc. Se essa situação não se resolvesse em pouco tempo, seu coração estaria inutilizado, o que poderia ser uma pena para o vencedor. 03 – eba!!! – mais um.

O suor descia pela sua nuca. Ele tremia. Olhava para trás, pensando num plano de fuga que se revelava inviável com aquele brutamontes o vigiando de perto. Mais duas pedras e ele, com certeza, sairia mais leve do bingo do que entrou. O apresentador se pronunciou.

– Três pessoas estão por um número para ganhar o prêmio. Duas pessoas têm apenas 3 números e serão os "gentis" doadores…Chegou a hora de chamar nossos queridos ajudantes! Que entrem os "médicos"…

Abriu-se uma porta lateral e no meio de uma cortina de fumaça e efeitos visuais entraram dois sujeitos vestidos como médicos prontos para uma cirurgia. Só que sua roupa era preta, como as de um carrasco. Um trazia um bisturi na mão e outro um tubo de oxigênio.

– Pelo menos eles anestesiam o doador – falou a velhota – Me diz uma coisa: você usa óculos?

Ele se controlou para não esganar a velha. E quase voou no pescoço enrugado da senhora quando ela disse que estava torcendo contra ele. O outro doador era bem mais velho. Ele só desejava que todo seu azar ficasse acumulado nos olhos. Aí a velhinha ia ver o que é bom para tosse.

O globo girou com os números, a assistente de palco apertou a alavanca, pegou a bolinha e passou para o apresentador. O apresentador fez mistério, rufaram tambores pelo sistema de som, metade dos anciãos presentes estavam prestes a ter um ataque cardíaco e então é cantado o número.

– 07!!!!

O grito de bingo veio junto com o grito de alívio dele. Pela primeira vez na vida dera sorte em alguma coisa! Na sua alegria, nem reparou o desespero do sujeito que foi recolhido pelos "médicos" de preto, nem a decepção na cara da velhota ao seu lado, que chorava por não ter ganho o prêmio, borrando apenas um lado do rosto.

Se levantou, cantando. Logo após o anúncio do vencedor, abriram as portas do bingo. Ele passou pelo segurança tirando sarro, mostrando-lhe a língua. A chuva tinha passado, tudo estava perfeito. Ele chegou a imaginar uma nova vida, longe da sua contínua má sorte, uma vida onde as coisas começassem a dar certo para ele. Estava com o espírito leve, flutuando pela rua, praticamente.

Estava tão feliz que se distraiu e atravessou a principal avenida da cidade com o sinal aberto ao tráfego. Foi colhido por um ônibus. Ficou entre a vida e a morte. Depois de 2 semanas na UTI, veio a falecer. Ele precisava de um transplante. E não arranjaram nenhum doador para ele.

29.8.02

Solene


Não é porque te entrego, solene
As rédeas do que faço
Nem por querer colorir meus dias
Com o significado oculto do que dizes
Que lhe devoto admiração
Tão longe é o contato
Que nem existe
Mas celebro, dia a dia
O que temos
Não é mensurável
Nem tátil
Mas sua força tênue
É o que me faz singrar as palavras
Como um mar revolto
Não me obrigo a vasculhar sentidos:
Corto meu cabelo com fogo
Rasgo minhas veias com o vento
E o sangue que agora flui intenso
É minha humilde oferenda

28.8.02

A Salada


– Quero comer jabuticaba!

Quando casei com a Paula, não imaginava que ela era o tipo de mulher que teria desejos na época da gravidez. Ela sempre foi uma mulher séria, não acreditava em crendices e nem se deixava influenciar pelas besteiras que suas amigas esotéricas falavam. Não que ter desejos esquisitos durante a gestação fosse coisa esotérica. Tá mais pra crendice popular mesmo, coisa dos nossos pais e avós.

Começou de leve, eu nem percebi que eram "desejos" na acepção gestante da coisa. Era um cachinho de uvas durante a novela, uma pizza portuguesa antes do jantar, nada de muito anormal. Mas quando ela começou a pedir coisas que não era habituada a comer ou que nunca sequer tinha visto, eu logo vi o que era. Foi por volta do 4 mês que eu comecei a sacaneá-la:

– Tsk, tsk, tsk…Logo você, minha filha, com desejo?
– Não é desejo! Qual o problema de querer umas carambolas?
– Não haveria nenhum problema se não fossem 3 da manhã!

Como vocês podem ver, os horários começaram a parecer absurdos também. Não me importava, nunca precisei acordar cedo mesmo e eu achava até engraçado suas manias. A cada dia, era uma coisa diferente. E eu sempre me esforçava pra conseguir o que ela queria. Depois do 5 mês, conversando com a minha mãe, ela soube da lenda dos "desejos não realizados". A praga era o nosso querido filho nascer com cara de nespera ou de bife de fígado, caso ela não conseguisse comer as iguarias desejadas.

O tempo foi passando, e pra meu tormento, os pedidos começaram a se sofisticar. E não interessava a hora. Podia ser às 11 da manhã ou as 3 da madrugada, eu tinha que largar o que estava fazendo e me virar para conseguir o que Paula queria. No sétimo mês ela entrou numa fase "gourmet": um dia era um Parfait de salmão, outro um ravioloni de estragão ao molho nantua com cavaquinha e pistache, outro um bobó de camarão carregado no dendê…Além de variados, seus desejos estavam começando a ficar caros demais. Mas eu não podia ficar regateando num momento como esse. Não seria nada legal ter um filho com as feições de um tartar de atum com crème fraîche.

E não pensem que isso foi o pior. Quando Paula estava prestes a dar à luz, no meio do nono mês, ela me acorda, por volta da meia noite e me faz o pior de todos os pedidos. Ela queria uma salada de rins. Perguntei o que diabos era uma salada de rins e ela me ditou a receita, vinda diretamente de sua cabeça alucinada. Era uma mistura de rins de várias espécies de mamíferos e aves levemente cozidos, temperada com várias iguarias orientais raríssimas e verduras e legumes, quase todos fora de época. E tinha que ser naquela hora. Uma demora a mais e nosso filho nasceria roxo e com cara de víscera.

Anotei com rigor científico todas as dicas do..ahn…prato inventado pela minha esposa. Saí de casa a cata de todos os ingredientes, regateei com açougueiros, acordei feirantes, esmurrei portas de delicatessens e no fim, estava quase tudo pronto para o preparo. Quase, porque o rim de javali estava em falta no lugar onde eu comprava carnes exóticas. Eu já era amigo do açougueiro, tamanha era a minha freqüência em seu matadouro chique. Ele já me quebrara o galho milhares de vezes, mas dessa vez ia ser impossível.

Fui pra casa preocupado. E se ela reclamasse da falta do ingrediente? Ela era capaz de parir um rim ali, na minha frente. Resolvi acreditar que tudo era psicológico e ia fazer a salada de rins sem avisá-la da falta do rim de javali. No meio de tantos rins e temperos, ela não ia conseguir indentificar a falta de algo que ela nunca havia provado na vida.

Fiz o prato, levei pra Paula, que comeu tudo com muito (irch) gosto. Antes de dormir, como que lendo minha mente, ela me pergunta se eu tinha arranjado todos os ingredientes. Eu, claro, disse que sim, que ela ficasse tranqüila. Só pedi que ela não exagerasse tanto no próximo, ou quem teria o filho seria eu.

Não dormi bem. Tive sonhos horríveis, como um em que Paula dera luz a um par de rins, e o médico ainda batia nos órgãos, para fazê-los chorar. Em outro, um javali me perseguia com um dos seus rins fincado em uma das suas presas. Acordei desesperado. Não com os pesadelos, mas com uma dor isuportável no baixo ventre. Paula acordara junto comigo. A bolsa havia rompido.

Corremos para a maternidade, eu gemendo no carro de um lado, Paula do outro. No hospital, Paula foi para um quarto e eu fui parar em outro. Estava, vejam vocês, com uma crise renal braba. O médico me disse que, por algum motivo desconhecido, os pequenos cálculos que deviam estar nos meus rins se moldaram, virando uma única e grande pedra. E ela estava tentando sair pela minha uretra, o que causava a dor. Ela tinha que ser destruida, o mais rápido possível. Teria que fazer uma radiografia para ver o tamanho exato do cálculo.

No outro quarto, meu filho nascia, saudável e, o que era melhor, com feições humanas. No meu quarto, a imagem na tela computadorizada mostrava o enorme cálculo que tentava rasgar minhas tripas. Tinha a forma de um feto.

27.8.02

Revelação


Esse garoto, que eu e minha esposa demos tanto carinho, tanto amor. Nunca faltou nada para esse menino. Agora eu me pergunto se a culpa é minha, se as minhas viagens me afastaram demais do garoto. Será que se eu não fosse sargento da marinha isso tudo teria acontecido? Não…a culpa não podia ser minha, não mesmo. Eu dei para esse menino a melhor educação que eu poderia ter dado. E ele me responde dessa maneira...me traindo. Porque, sim, isso era traição. Eu já tinha na mente o futuro brilhante que ele teria na marinha, teria sido tudo o que eu não consegui ser…E ele me dá essa punhalada…Isso TEM que ser culpa da mãe dele. Sempre mimou muito esse menino…boa coisa não podia dar…




Ah, meu Deus…Claro que eu ainda vou amá-lo. Ele é meu filho. Essa revelação não muda em nada o meu amor por ele. Mas por que, Deus, por que?!?! Eu nunca deixei faltar nada pra ele. Ele estudo sempre onde quis, sempre teve os amiguinhos que quis, nunca o proíbi de nada. Mesmo quando o brucutu do seu pai estava em casa – nas raras vezes em que ele estava em casa – e não deixava você sair para onde quisesse, eu te deixava ir, não importando o quanto eu fosse ouvir dele depois. Ah….juro, não vou deixar de amá-lo, meu filho…E vou respeitar essa sua…tendência…mas me preocupa sua alma…Isso é anti-cristão…pense em Deus e como ele vai encarar essa sua vida em pecado!!!!




Não sei como eu posso estar me controlando dessa forma. É muita coragem desse…moleque falar isso para mim e eu não lhe arrebentar as fuças. Que disparate! Mas a culpa é minha, só pode. Se fosse no meu tempo, meu pai já teria me convencido a retirar o que eu disse com duas bordoadas. Mas eu sou muito controlado…E isso é até bom…eu podia matar o garoto.




Já até imagino o que seu pai vai falar pra mim. "Você mimou demais esse garoto!"…ele sempre diz isso. E, agora, começo a achar que ele tinha razão. Mas o que eu podia fazer? Eu te amo mais que amo a mim mesmo, meu filho.Não há nada que você não me peça que eu não faça na hora. Mas…isso!!!!…Já é demais…E meus netos? Eu que planejava ser avó em pouco tempo, cuidar daquelas criancinhas tão bem como cuidei de você…e agora? Terei cuidado bem de você
mesmo???




Não vou mais falar com ele. Não vou mais olhar para ele. Para mim, ele está morto. E é bom ele sumir da minha vista rápido…ou ele acabará morto para todo mundo…




Meu Deus…Onde eu errei? Não…foi a ausência desse pai dele…meses e meses viajando, sem um exemplo masculino dentro de casa…Esse que eu chamo de marido, que sempre colocou a sua carreira a frente da família…E se não fosse meu filho, minha cria, saída do meu, MEU ventre, eu teria colocado um par de chifres nele. Com MEU filho, eu já tinha alguém pra amar e cuidar, não precisava dele pra mais nada. Já meu filho, MINHA criança, precisava dele. Precisava de um pai por perto, pra educá-lo, mostra-lhe o que é certo…e onde ele estava? Viajando. Sempre.




(…)




Nunca pensei que uma simples revelação como a minha fosse causar tanto mal, ou melhor, trazer tanto mal à tona. Eu não percebi que a hipocrisia era o que levava o casamento dos meus pais adiante. Não queria a separação dos dois. Não foi essa minha intenção depois de falar a simples frase "Mamãe, eu gosto de garotos"…Não queria que minha mãe ou meu pai se culpassem. Não é nem questão de culpa. Como, culpa? Culpa de que? Se eu gostasse de garotas, de quem seria a culpa? Agora minha mãe vive sozinha, depois que seu anúncio de que ia se separar de papai o matou do coração. Vive na igreja, o dia todo. Diz que rezando pela minha alma. O que eu posso dizer para ela é que da minha alma, cuido eu. Vivo com quem eu amo, não incomodo ninguém…por que deveria temer o fogo do inferno? Por que sou feliz?


Saldo negativo


Tinha ouvido falar que investir em emoções era a mais nova tendência do mercado. O boato dizia que os rendimentos eram muito bons e a liquidez era excelente. Foi lá, tirou tudo o que tinha no banco, seus fundos de renda fixa, vendeu commodities e investiu tudo em emoções variadas.

Só que o mercado virou. Tinha gasto milhões em emoções como amor, esperança, amizade, lealdade e emoções correlatas. As ações desses sentimentos caíram vertiginosamente. Se deu bem quem investiu em rancor, ganância, ódio, mais fartas e sempre em alta nos dias de hoje.

O saldo negativo na sua conta bancária nem o afetava tanto. Mas quando teve que vender seu último papel de "esperança" para ter com o que alimentar a família, ele viu que não tinha outra solução: se jogou do 13º andar do prédio da Bolsa.

26.8.02

Asas


vertigem . [Do lat. vertigine, 'remoinho'.] S. f. 1. Med. Estado mórbido em que o indivíduo tem a impressão de que tudo gira em torno de si ( vertigem objetiva), ou de que ele próprio está girando ( vertigem subjetiva).
(…)
3. Fig. Desvario, loucura. 4. Tentação súbita.


No começo é o desejo. Daqueles que consomem a pessoas, dos que as fazem andar nas nuvens, que tira todos os pés do chão. O flutuar é bom, apesar de absorver muito as partes. Perde-se a perspectiva então.

Sem perspectiva, a vista das alturas pode chocar os estômagos mais sensíveis. Passa-se mal. A sensação do voar ainda é excitante e não se quer perdê-la de jeito nenhum. Mas o vício do voo é o mais contraditório de todos os vícios. Fica-se preso ao prazer da liberdade.

Quando o hábito de voar já não sacia mais, quando vê-se que os grilhões estão mais fortes que as asas que se ganhou, ocorre o seguinte: não se suporta mais o ar. O único desejo que se tem é manter os pés no chão. Chega-se a se odiar o ato de voar, vertigens começam a acontecer. Antes o mundo girava em torno dos graciosos voos. Agora, gira-se, como um satélite, sem vontade, na órbita de um astro desconhecido. Tudo o que se deseja nessa fase é uma âncora, algo que possa manter o corpo preso ao solo.

O que não se percebe é que essa âncora em pouco tempo se transforma, do dia para noite, em novas asas. E que o turbilhão que suga para o ralo do desejo só para para depois lançar todo seu conteúdo no céu começou novamente a girar.

Revolução


Apesar de ser uma situação tétrica, merecedora de uma solução imediata, não adiantava reclamar. O presidente não se encontra. Nem em seu luxuoso gabinete, cercado de segurança e isolado de todos os problemas, nem se encontrava em suas ações. Dizer que trocava os pés pelas mãos era um bruta eufemismo em se tratando da figura. Ele era, sem rodeios, uma verdadeira mula.

E sua visão obtusa do mundo infectou seus assessores diretos, seus ministros, todo o legislativo e o judiciário. O caos era inevitável em meio a tanto descaso e incompetência. Até o próprio presidente reconhecia que o limite estava próximo. Mas o que ele, coitado, poderia fazer?

Seu desastrado pronunciamento em rede nacional foi o responsável por tudo o que aconteceu. Disse que sabia ser o principal responsável pela penúria do seu povo, mas que a culpa não era só dele, que em países como o que governava, os problemas que os afligem remontam de muito tempo, e no caso desse país com vocação de colônia, mesmo com as riquezas para ser metrópole, são males que vêm desde antes da Revolução Francesa. Disse que seu governo e sua nação estava presa numa espiral história inevitável e irreversível. Como Pilatos, lavou as mãos.

Depois do pronunciamento, o povo se revoltou. Chegaram como podiam à capital do país e, munidos com paus e pedras, tomaram o poder. Não foi de forma pacífica.

Como Luis XVI, o presidente morreu degolado.

23.8.02

A peixaria


Durante mais de 60 anos, a peixaria dos Hermelindos nunca amanheceu fechada. Desde sua fundação, o patriarca Josefo Hermelindo tinha como filosofia "banca aberta, peixe vendido". Não importava se estava chovendo, se era feriado ou dia santo. Todo dia era dia de trabalho.

Os Hermelindos eram muito famosos no vilarejo de Marataúzes, Espírito Santo. Tinham a fama de exímios pescadores e de serem gente de muita fibra. Eram muito amigos de quem eram seus aliados e inimigos mortais dos seus desafetos. Só uma coisa rivalizava com a fama de homens do mar dos Hermelindos: sua cabeça quente.

Carmelo era o atual patriarca do clã. Neto de Josefo, Carmelo já corria pelos seus 60 anos, e não saía mais na sua jangada. Deixava isso por conta dos seus 3 filhos e alguns netos que já tinham idade e corpo para puxada do arrastão. Carmelo tinha plena confiança em Cícero, Jonas e Celso, sua prole. Tendo parado de ir para o mar, Carmelo ficou responsável pela peixaria. E como seu avô, nunca deixou de abri-la, por motivo nenhum.

Confiava e amava os filhos, mas seu xodó era seu neto mais velho, Carmo. Era o primogênito de Jonas, que homenageou o pai batizando o filho com tal nome. Tinha 17 anos e pelo viço do corpo, seria tão forte como fora o avô na juventude. Apesar de ainda novo, já se destacava nas pescas e manobrava a jangada como poucos. O apego ente neto e avô era tanto que despertava ciúmes. Principalmente em, surpreendentemente, Jonas.

Jonas nasceu em um época de dificuldade para os Hermelindos, por isso foi o menos adulado dos filhos. Se achava um injustiçado, seu pai nunca lhe demonstrou muito afeto e isso o ressentia muito. Quando Carmo nasceu, ele viu a parcela de amor que lhe cabia por parte de seu pai ser transferida para seu filho. Tomado pelo rancor, muitas vezes Jonas tratava mal o próprio filho. Isso só reforçava as ligações entre Carmelo e seu neto, que o procurava a cada novo destempero do pai.

Até que um dia – dia em que nuvens negras vinham pelo sudoeste anunciando que uma tempestade se aproximava – deu-se a tragédia. Conversavam os três, avô, pai e neto, sobre a pescaria do dia anterior. Contavam casos e histórias de antigas jornadas ao mar e se divertiam. Apesar de estar rindo, Jonas sentia uma pontada em seu coração toda vez que via o olhar que seu pai lançava a Carmo. Um olhar de afeto profundo, que ele nunca teve o prazer de ser o objeto. Estavam decidindo se iriam ou não à jangada, tentar pescar algo na parte da tarde. Pescador experiente, Carmelo não achava seguro. O vento era de chuva da braba, dizia, não convinha arriscar. Na empolgação da juventude, Carmo desdenhou da opinião do avô, dizendo que poderia ir, nem que fosse por pouco tempo, voltaria antes da borrasca cair sobre o litoral. Carmelo abraçou o neto, afetuosamente, e disse que sabia que ele era um Hermelindo de verdade, que era muito mais corajoso que seu pai, Jonas, mas que isso seria uma imprudência que ele não permitiria que fosse cometida. Ao ouvir isso, Jonas sentiu algo lhe subir à cabeça, já era demais. Se seu próprio pai era incapaz de lhe demonstar afeição, não aceitaria ser humilhado, ao ver sua coragem ser comparada com a de um fedelho.

Jonas estourou de vez. Cuspiu, de uma vez só, toda a mágoa que sentia do seu pai. Falou da infância abandonada que teve, da indiferença que sempre sentiu vir do pai, seu maior ídolo. Que sabia que Carmo era muito mais querido que ele. Mas não deixaria que seu pai comparasse a sua coragem com a do filho. Se ele achava Carmo mais corajoso, ele teria uma prova do quão corajoso ele poderia ser.

Jonas correu até a jangada pegou o arrastão e iria pro mar, não se importando com as vagas que já começavam a rebentar na praia. Carmo foi atrás do pai, implorando para ir junto, ele ajudaria. Ao encostar no ombro do pai, Carmo levou uma bofetada que o atirou longe. Carmelo não aguentou ver aquela cena parado e foi em direção dos dois, gritando com Jonas, falando para que ele nunca mais batesse em Carmo. Então ele disse:

– Pode deixar, pai. Nunca mais vou bater nele.

Partiu pro mar encapelado, apesar dos protestos do pai. Carmelo teve que segurar o neto para que não entrasse no mar atrás do pai. Foram vendo a jangada se perder no horizonte negro. E começara a chover. Quando não mais podiam ver a barca, Carmo se desvencilhou do avô e foi para mar. Gritando no meio da tempestade, pediu desculpas ao avô, mas precisava buscar o pai.

Carmelo recebeu toda a tormenta. Ficou na praia esperando pelo filho e pelo neto até o tempo amainar. Horas depois, só chegaram à costa destroços de uma jangada. Parecia muito com a dos Hermelindos.

No dia seguinte, Marateúzes acordou de alguma forma diferente. O ar ainda era límpido e o mar, acalmado depois da tempestade, acariciava a praia de leve. Mas definitivamente, algo havia mudado.

Naquele dia, algo estranho aconteceu. A peixaria dos Hermelindos estava fechada.

22.8.02

Piedade


Não tenho pena das vítimas da fome
Nem dos flagelados pelas guerras
Nem dos pais que perdem seus filhos

Não tenho pena dos aleijados e deficientes
Nem dos que são solitários
Nem dos que têm doenças terminais

Não tenho pena dos sem teto
Nem dos sem terra
Nem dos desempregados

Eles estão vivos
E de alguma forma
Podem compensar suas penúrias

Dignos de pena mesmo
São os pobres de espírito

Tenho pena dos preconceituosos
E dos invejosos
E dos intolerantes.

Tenho pena dos donos da verdades
E das mentes decadentes
E dos que se mantêm na ignorância

Tenho pena dos sem esperança
Dos sem sonhos
Das pessoas-zumbi

Esses não têm jeito
Respiram, andam e falam
Mas não estão vivos há muito

Silêncio


Acordou no silêncio do seu quarto. Estava escuro. Seu relógio-despertador-digital-de-última-gereção, que sempre acabava com o melhor do seu sono não estava funcionando. Não sabia que horas eram, se era dia ou noite. Se sentia estranho. Há quanto tempo estava dormindo? Horas? Dias? Semanas? Não sabia. Não se lembrava sequer como havia chegado ao seu quarto. Aliás, seria esse mesmo o seu quarto?

O breu era tão denso que poderia ser cortado com uma navalha. Só o movimento de suas pálpebras denunciava que estava acordado e com os olhos abertos. A escuridão era total. Pensou, rindo, que talvez estivesse em um buraco negro, onde até a luz era atraída. Pensando melhor, viu que nada tinha de engraçado na sua situação, que no fim das contas, ele nem sabia qual era.

Abriu os braços, tentando encontrar algo que pudesse tocar. Nada. Estendeu até onde pode seus membros e não sentiu nada. Nenhuma parede, nenhum móvel, nenhum objeto por perto. Decididamente não estava no seu quarto. Tentou levantar, tirando primeiro as pernas da cama. Não sentiu o chão. Esticou suas pernas e mesmo assim seus pés só tocaram o vazio. O desespero se abateu sobre ele. Não poderia estar flutuando. Ou poderia?

Aguçou o ouvido. Nada. Nem um ruído. Mesmo que estivesse nos recantos mais ermos da cidade onde morava, não ficaria sem ouvir o eterno murmurar da metrópole. Onde diabos estaria? O que havia acontecido afinal de contas? Tentou achar alguma coisa na cama onde estava. Se virou e foi aí que percebeu. Estava, decididamente, encostado em alguma superfície. Mas não saberia definí-la: seus contornos, sua densidade, sua área. Não sabia se era macia ou dura. Sua cabeça latejava.

Não sabendo o que fazer, teve a atitude normal nas pessoas à beira do desespero. Ele gritou. E da sua atormentada garganta, só saiu o silêncio.

20.8.02

O Quadro


Era a pessoa mais alegre do mundo. Tinha seus problemas, é claro, como toda a humanidade. Mas seus amigos nunca o viram triste ou acabrunhado. Era a alma de qualquer festa, todos adoravam sua companhia, era o que chamavam de "pessoa alto astral".

Mesmo quando ficava triste, ele não demonstrava. Nunca o viram reclamando da vida ou maldizendo qualquer coisa. Escondia de todos seus queixumes. Detestava incomodar os outros com o que julgava serem problemas só seus. Seus amigos mais próximos até reclamavam disso. Achavam impossível que ele não quisesse desabafar algo, queriam ajudá-lo, sem saber sequer se tinham algum motivo para isso. Falavam que não podiam dizer "amigo é pra essas coisas" logo para ele, o maior de todos os amigos de todo mundo.

Tudo ia bem na sua vida. Resolveu fazer uma loucura: chamou seu melhor amigo, um pintor, e pediu que retratasse sua alegria em um quadro. Colocaria no centro da sua sala, para deixar exposta sua felicidade para os que o visitassem. Planejou a "inauguração" do quadro para seu aniversário, quando chamaria todos os seus amigos e lhes daria pequenas reproduções da tela de presente.

Seu amigo começou a pintar no dia programado. Ele estava bem disposto, mais feliz até que de costume. Tudo foi bem até o terceiro dia da pintura. Chegou em casa com – inacreditável – o rosto tenso. Seu amigo perguntou o que houve. Arranjara uma briga no trabalho. Pela primeira vez na vida, tivera uma discussão, e com pessoas que via todos os dias à anos. Pedira demissão. Não queria mais ver seus companheiros de serviço. Seu amigo notou que no dia ele manteve a mesma pose, exceto pelo rosto. Algumas rugas que nunca tinha notado estavam lá. E o sorriso era meio forçado.

Nos dias seguintes, o pintor começou a notar mudanças drásticas no amigo. Ligaram para ele do trabalho, pedindo que ele reconsiderasse sua decisão de ir embora. Seu amigo passou uma descompostura em que ligou, não voltaria nunca mais ao trabalho. Até xingou a pessoa que havia ligado. Quando outros amigos, de fora do seu antigo emprego, ligavam, dizia que não queria ver ninguém, que tinha problemas. Imediatamente, todos que ligavam se prontificavam em visitá-lo, querendo conversar, ver no que poderiam ajudar. Não aceitava a ajuda e quando insistiam, chegava a ser grosso com eles. O pintor não entendia o que poderia estar havendo com ele, a imagem da temperança. Agora era um sujeito irascível. E estava cada vez mais difícil encontrar qualquer traço de alegria para pintar.

Piorando a situação, os convites para sua festa, que já haviam sido entregues, começavam a voltar. Alguns alegavam problemas pessoais para não irem. Outros, os que tiveram alguma desavença com o ex-alegre, apenas devolviam o convite. Alguns até o ofendiam depois da devolução. Cada recusa em ir a sua festa o afetava profundamente. Vivia gritando pela casa, soltando impropérios para Deus e o mundo. Seu amigo pintor, agora o único admitido em sua casa até o dia da festa, não o reconhecia mais. Para pintar o quadro, começou a ver fotos antigas do amigo, agora que só faltava o rosto para o fim da pintura.

Uma semana antes do dia da festa, no dia planejado para o término da pintura, chegou mais um convite devolvido. Era o penúltimo. Foi a desculpa para ele destruir tudo que existia na sua frente. O pintor teve medo do amigo, nunca vira ninguém tão furioso em sua vida. Quando não havia mais nada quebrável na sua frente, ele se dirigiu para o quadro, gritando que, de alguma forma, o quadro roubara seu emprego, seus amigos, sua felicidade. O pintor se interpôs entre o amigo descontrolado e sua obra. Chamou-o de louco, disse que ele precisava de ajuda. Brigaram. Como nunca em sua vida sequer havia se chateado com alguém, muito menos se estapeado com outra pessoa, o pintor facilmente subjugou o amigo. O pintor foi até ao quadro e tirou o manto que o cobria. Estava pronto.

No chão, ele viu seu rosto, como não via há muito. Era a expressão da felicidade plena, tinha literalmente a felicidade estampada no rosto. Ficou chocado por um momento, sem saber o que fazer, sem saber o que havia ocorrido. Um quadro tão belo não podia ser a razão de tanta desgraça. O pintor arrumou suas coisas e partiu. Disse que não poderia mais ser amigo dele. E jogou um envelope em cima dele, no chão. Era o último convite para sua festa.

16.8.02

Concepção


Estou gerando palavras
Que nascerão em breve

Minha cabeça
Cornucópia de ideias

É origem e gênese
Não se encerra em si

Mão, papel, caneta
São o motor

Meu cérebro
Pariu o escrito

15.8.02

Raso


Acordou sentindo-se superficial. Não no nível das ideias, onde até se destacava. Sentia-se leve no corpo, como se fosse uma folha de papel.

Teve medo de sair de cama e com o impulso tomado ir parar no teto. Sentia que tinha apenas duas dimensões. Se alguém se dispusesse, poderia pegá-lo e fazer dele um rolo, como uma planta de arquiteto em papel vegetal.

Se aventurou em levantar. Não saiu flutuando como temia, mas ainda se sentia leve, sem peso. Se vestiu. As roupas lhe dariam alguma massa, pensou. Não funcionou. A vestimenta que lhe cobria a nudez adquiriu suas propriedades corpóreas.

Começou a se desesperar. Resolveu não sair de casa. Só de imaginar o que poderia lhe acontecer na rua – o vento, as trombadas com as pessoas nas calçadas – tremia. Esperava sinceramente que esse problema acabasse rápido.

Mas não acabou. As horas, os dias, as semanas foram passando. Ele dormia, acordava, voltava a dormir e continua praticamente etéreo. Não sabia mais o que fazer. Não comia mais, não atendia o telefone. E o mais revoltante: ninguém deu por sua falta. As semanas viraram meses. Ele não definhava, mesmo sem se alimentar. E mesmo desaparecido, nada de procurarem por ele.

Desenvolveu uma teoria. Perdera a massa porque era, metaforicamente uma pessoa rasa. Começou a achar que não havia mesmo porque alguém procurá-lo. Todas as suas amizades eram superficiais, assim como seus assuntos, seus gostos, sua vida. Era uma espécie de ironia do destino.

Resolveu se matar. Abriu a janela do quarto, que desde sua mutação vivia fechada pelo medo que tinha das correntes de vento no 13º andar, e resolveu se jogar. De um pulo só, saiu flanando pela janela. Como ele esperava, seu corpo não caiu. Ergue-se no ar, como uma pipa contra o vento. Ao se ver voando, pensou que de repente sua vida até que valia a pena. Desistiu de se matar. Mas o que faria agora?

Pássaro de primeira viagem, não conseguia controlar seu voo. Seguia a vontade das brisas, as vezes indo acima dos arranha-céus, as vezes dando rasantes pelas avenidas repletas de carros e civilização. Quem o via, julgava ser um boneco de ar. Bem feito, mas um boneco. Cansado e meio enjoado das suas acrobacias involuntárias, começou a gritar por socorro. Mas ninguém o ouviu.

Uma corrente de ar quente o elevou, mais alto que nunca. O desespero e a falta de ar o fizeram desmaiar. Da rua, as pessoas apontavam para o balão que ia tão alto. Não conseguiam ver-lhe a forma.

14.8.02

Vida


A despeito dos lenços acenando
E dos choros de adeus
O barco parte

Não importam as vagas
Ou os caprichos das marés
O barco segue

Do outro lado
Há um porto
Novas pessoas choram
De alegria

O barco chega

13.8.02

Esfínge


Nunca esperei que isso fosse acontecer comigo, conosco aliás. Te encontrei – ou terá sido o contrário – tão casualmente. Acho que, no final das contas, são esses tipos de encontro que são os definitivos. Ou não, se analisarmos nosso momento agora.

Você fala, fala, e não diz nada. Sim/não, ser/não ser…Você não se decide. Talvez esse seja seu problema. Talvez esse seja o nosso problema.

Não me venha com essa dialética. Você está usando minhas armas, como sempre. O problema é que você é melhor com elas que eu mesmo. Eu me entrego sempre, esse é meu verdadeiro mal. E fui logo me entregar pra você, com seus mistérios, seus encantos escondidos…

Ah…sua verborragia me cansa, sabia?

Lá vem você com seus vocábulos guardados para nossas discussões. Não faça pose para mim. Sei da sua inteligência, sei o quanto você é esclarecida. Sei também que isso só realça seus segredos. Você é minha esfinge. Eu não te decifrei e agora você me devora. O mal é que não sou digerível: por isso você me vomita.

Não sou sua esfinge, amor. Não tenho segredos, nunca os tive. Sou transparente. Em momento algum te desafiei com meus mistérios inexistentes; nunca te ameacei com meu apetite. Não sou antropófaga. Não te devoro, nem física, nem psicologicamente. Se você foi vomitado? De certa forma, posso até concordar com isso. Você é indigesto.

Tudo bem. Nada de mitos para justificar o fim. Descobrimos agora onde errei, onde erramos. Você não tem estômago.


9.8.02

Shopping


Acordou de manhã e soprou o sono que ainda tinha. Somente ele fazia companhia à sua cama alemã, vencedora de um prêmio de design europeu. Esfregou os olhos, se espreguiçou e levantou. Foi até o banheiro. Banho quente (jacuzzi), barba (lâmina inglesa), escovar os dentes (Crest). Saiu renovado. Tomou um café da manhã saudável: frutas, suco, frios. Se arrumou. Se sentia bem e precisava se sentir assim para fazer o que pretendia.

Se arrumou com esmero. Colocou o melhor terno – aquele que ela adora – passou gel no cabelo, colocou o sapato italiano comprado na, agora mais que nunca, distante lua de mel. A gravata era da mesma procedência. Se vestiu como ela sempre pedia que se vestisse. Ele odiava se vestir assim, como um janota qualquer. Mas a ocasião exigia.

Colocou o Ray-Ban que havia ganho de presente dela no 1º aniversário de casamento. Se olhou no espelho. Estava realmente elegante. Ela adoraria. Isso, claro, se ela fosse vê-lo. Ela foi embora, e ainda levou a mala que ele havia comprado em Nova York para as férias na Riviera.

Pegou sua Walter PPK – era fã de James Bond – e apontou para sua cabeça. Antes de disparar, imaginou a cara dela vendo seu Armani sujo de sangue.

7.8.02

Desperdício


Desperdício é perder o contato com quem se gosta. Não só o contato físico, que no final, a despeito do que pensam as mentes lascivas e sexistas, nem é o mais importante. Falo de um contato mais sutil. Algo como mentes em sintonia, ou algo do gênero. E foi gratuitamente, assim, do nada – ou nem tão do nada assim. Erro eu, erra você, no fim erramos todos e perdemos a direção. Não que antes houvesse alguma estrada a ser trilhada, algum caminho em comum. Poderíamos, ao menos, poder mandar tchauzinho um para o outro, cada qual em sua trilha. Hoje? Nem isso. Não há mais diálogo, não há mais nada.

Será mesmo algo irreversível? Será que o que tínhamos é algo morto, putrefato, enterrado em catacumbas seculares? Não quero crer nisso, não mesmo. Mesmo as mais distantes paralelas se cruzam no infinito. E lá, nesse lugar hipotético, nesse Éden imaginário, estaremos tão perto que nossas mãos acenando poderão se tocar.

5.8.02

Carnaval


O pierrot escondeu minha colombina
Fugiu do baile com ela na mão
E para mim, abandonado e pobre folião
Nada além de confete e serpentina

Evoé, Momo
Como se na Quarta de cinzas
Não fosse eu o morto

Quem está por trás da máscara
Que pierrot é esse que brinca
E fica feliz com meu mal?

Minha fantasia, rasgara
Na minha folia, ele afinca
A lâmina com que cortou meu carnaval

Olê, olê, olê, olá
Sumiu minha colombina
De nada vale o que sobrar

31.7.02

Sordidez


Ele sempre desejou ser um dos personagens dos contos do Rubem Fonseca. Achava glamouroso a violência, os detetives canalhas, as tramas e lugares sórdidos. Até a escatologia o atraía. Era meio estúpido, a despeito do seu ótimo gosto literário.

Vivia pensando em ter os diálogos mordazes do personagens de Fonseca. Não que tivesse a mínima chance de ter algum. Não conhecia pessoas mordazes e as que fugiam um pouco do comportamento obtuso que lhe era peculiar, não lhe davam atenção. Quando dava a sorte de encontrar alguém cínico ou irônico gostava de criar discussões, onde sempre era irremediavelmente arrasado pelos seus interlocutores. Como a sagacidade não era seu forte, demorava a responder aos argumentos dos conhecidos um pouco mais eloquentes. Gaguejava, suava e era sempre humilhado, servindo de chacota nas rodas que frequentava.

Tinha um empreguinho medíocre, onde executava uma função medíocre, de forma idem. Se prestassem bem atenção no seu serviço, o descobririam completamente desnecessário. Tanto que passava grande parte do seu expediente fumando no corredor, pensando em prostitutas, assassinatos, policiais corruptos e respostas loquazes para qualquer situação. Ficava angustiado com sua modorrenta vida e pensava em dar uma guinada radical em sua rotina. Só não sabia o que fazer pra que isso ocorresse.

Começou a beber todos os dias, talvez por influência de um dos personagens de "Feliz Ano Novo" ou "O Cobrador", não sabia. Aparecia bêbado no trabalho, e se antes suas ocupações no escritórios eram nulas, agora ele estava atrapalhando o serviço alheio. Ficava horas seguidas no corredor, fumando sem parar. Um dia, seu supervisor lhe chamou para uma conversa. Sua conduta havia se tornado incompatível com as regras da empresa. Deveria passar no dia seguinte para assinar o aviso prévio.

Era um emprego de merda, como costumava pensar, mas era sua única fonte de renda e, além da leitura obsessiva dos livros do Rubem Fonseca, tudo o que tinha que para fazer na vida. Saindo da firma, bebeu mais e foi, ébrio, para casa. Foi direto ao quarto do pai. Sabia onde seu velho escondia um velho 38 e pegou-o. Voltou para o bar e bebeu a noite inteira.Desmaiou de bêbado, no banco da praça, abraçado ao embrulho com o revólver. Sentia no tato o glamour que a arma trazia. Ia, finalmente, mudar sua vida.

Chegou trôpego e fedendo ao escritório. Foi direto à sala do seu supervisor. Vendo seu lamentável estado, o supervisor lhe recebeu com uma chuva de impropérios. Ele sentiu seu sangue, infestado de álcool, subir-lhe a cabeça. "É agora" , pensou, "vou mudar minha vida!". Partiu para cima do supervisor, acertando um soco no meio do nariz. A cara estupefata e o sangue que jorrou da fronte do supervisor o deixaram feliz. Os protestos do supervisor só serviram para aumentar sua fúria. Ele nem precisou do revólver, já posto em sua cintura. Pegou o abridor de cartas e enfiou na jugular do supervisor, um jorro vermelho manchando sua camisa. "Ainda não acabou", pensou.

Saiu para o corredor. A secretária foi sua segunda vítima. Vendo a camisa dele suja de sangue, começou a gritar. Foi interrompida pela bala que lhe atravessou o olho direito. A cena o deixou feliz: a secretária chorava um pranto rubro, apenas por um olho.

O estampido chamou a atenção das pessoas. Um segurança, correndo em sua direção, levou um tiro no abdômen e outro no braço, caindo agonizante. Um contínuo tentou tirar a arma da mão dele, sendo reprimido por um golpe no rosto. Enquanto chutava o rosto caído do contínuo no chão, outro segurança apareceu, acertando-lhe o ombro com uma bala. Revidou com impressionante precisão, transformando o peito do segundo segurança uma massa de carne sanguinolenta. O contínuo, se recuperando do golpe, consegue segurar suas pernas e derrubá-lo. Ele caiu já atirando no contínuo, abrindo um buraco em sua testa. Seu ombro alvejado estava em brasa, tinha apenas uma bala, estava caído no chão com as pernas presas por um contínuo morto. Enquanto o número de pessoas que chegavam ao lugar aumentava consideravelmente, ele pensou "Ainda não"…

O terceiro segurança escapou daquela que foi a última bala do velho 38 que ele carregava. Em seguida, tudo foi muito rápido. Levou um chute no rosto do terceiro segurança e nem viu que cinco pessoas se amontoaram sobre seu corpo, golpeando-o por todos os lados.

***

Seria julgado pela morte de quatro pessoas e pela tentativa de assassinato de mais duas. Seu pai, homem com certa influência, lhe arranjara um ótimo criminalista. A linha de defesa era a da insanidade do réu. Ele estava sentado, impassível. Não se podia imaginar o que passava por sua conturbada cabeça. O advogado dele era realmente bom, fazia sua defesa de forma perfeita. Se ele, além de ótimo advogado fosse telepata, leria na mente do seu cliente o pensamento incessante: "ainda não, ainda não, ainda não, ainda não, ainda não, ainda não…"

Inesperadamente, ele pede a palavra. O juiz assentiu, e, pela primeira vez na vida, ele foi brilhante. Com argumentos bem pensados e uma oratória convincente, explicou os motivos dos seus crimes e alegou não ser louco. Seu advogado, vendo seu caso indo por água abaixo, tentou fazê-lo se calar. Seu pai só voltou a sentar contido pelos policiais no tribunal. Agora tinha certeza que seu filho enlouquecera.

Foi condenado a três penas máximas. Foi levado diretamente para o presídio, ficando em um cela superlotada. Em poucos dias, notando sua boa condição e nascença, começou a ser maltratado pelos outros presos. Fora espancado e humilhado várias vezes. Fizeram dele a diversão da cela, a mulher de todos, sem direito sequer a ter um protetor. Limpava toda a cela sozinho, levava bordoadas de todos, sem motivo aparente, as vezes o deixavam sem comida, como castigo nem sabia porque.

Estava feliz.

29.7.02

Narciso e o amor


Mesmo que a expressão "os opostos se atraem" carregue em seu cerne muito de verdade, não podemos deixar de levar em consideração o lado narcisísta do amor. Não existe amor possível sem que o objeto da nossa admiração não nos reflita, por pouco que seja. Temos a necessidade de nos reconhecer no objeto que amamos. Não há amor sem que não nos encontremos no outro, se quando encararmos o lago que ele é, não vejamos nossa própria face.

Se não temos um referencial nosso em quem amamos, o próprio amor se esvai. Narciso sem lago, sem reflexo, o amor onde não nos identificamos é seco, como um espelho d´água vazio. O amor olha para seu leito sedento e não se vê. Morre a míngua, esturricado, língua pra fora implorando por um lugar onde possa mergulhar e cumprir seu destino de afogado.

26.7.02

Liberdade (Tardia)


Com uma corda
Enforquei meu amor Tiradentes
Ele queria – Veja se concorda!
Me fazer inconfidente
Peguei uma foice
E esquartejei esse amor
Como se um naco de carne fosse
Espalhando seus pedaços ao redor
Para que eu sempre me lembrasse
E que fosse meu exemplo maior
Exposta minha dor, na minha face
Não me meteria mais com seu mistério
Nem me envolveria com seu segredo
Fiz isso para não viver o despautério
De punir meu coração com o degredo

25.7.02

Uno


Quem nos visse
Se surpreenderia
Acharia impossível
Que isso existisse
E exclamaria
Diante do inverossímil
Perdendo o bom tom:
Casal tão indivisível
Em cheiro, cor, som
Tão unida parceria
Só desafiando a física
Da primeira lei de Newton

24.7.02

Ontem, a noite


Cortei o dia no seu talo
Realizando assim o infinito

Fatiei em gomos
Cada uma das minhas esperanças vãs

Madruguei no morro
Só pra perder o medo do só

Corromper era a palavra
Que gritava de dentro dos meus ouvidos

Anunciei as boas novas:
Uma mordida na maçã do dia

Espelho de circo


E de repente
Você olha para o lado
E vê que quem você ama
Não tem mais nada em comum
Com você

O reflexo não bate
Nesse, que era seu espelho

Constatação

As pessoas à minha volta
Tropeçam no amor
Enquanto andam nas ruas

Para mim
Sobram as merdas dos cachorros
Deixadas nas calçadas

Exterminador


Ele entrou na boate, do alto do seu metro e noventa, como entraria o Exterminador do Futuro. Mirava todas as mulheres com seu olhar predador, assassino, já roubando a atenção de todas. Seus olhos azuis atraiam todas de forma inexorável. Ele era o dono da situação. Estava em seu ambiente.

Ele encontra depois de alguns minutos a vítima da noite. Ajeitou seus cabelos louros de mariner e partiu em direção à sua escolhida. Ela era perfeita: morena, cabelos longos lisos, todas as curvas realçadas pelo seu tubinho preto, indefectível. Ele sabia o que fazer, tinha as palavras e gestos exatos, decorados nas milhares de horas na caça. Chegou do lado da vítima e a abordou.

Incrível, não deu certo. Ele ficou surpreso. Porque diabos ela não caía na sua armadilha, tão bem armada, como sempre? Teve que usar, depois de muito tempo, um plano B. Nada. A presa era arredia. Isso tornava a caça mais interessante e ela não era uma vítima que se poderia deixar fugir. Hoje não seria o dia da caça. Não mesmo.

Plano C, plano D e nada ainda. A presa estava saindo da sua armadilha e ele não tinha nada o que fazer. Estava ficando desesperado. A caça já pedia licença, queria dar uma volta, beber alguma coisa. Ele pediu para acompanhá-la. Ela disse que não precisava. Tinha gostado dele, mas não ia rolar nada. Ele insistiu, quase passando do assédio para a grosseria. Ela dominou a situação, conseguindo se desvencilhar dos seus braços fortes. Antes de ir, ela lhe deu um prêmio. Fora um bom caçador, e por isso, lhe deu um beijo, de leve nos lábio. Saiu rápido, antes que ele tivesse uma reação.

Ele estava acabado. A noite para ele já não tinha mais sentido. Ficou cabisbaixo, até curvado. Seus hipnotizantes olhos azuis estavam opacos. Mesmo esse arremedo do antigo caçador ainda atraia outras vítimas, que eram solenemente desprezadas. Ele estava aprisionado.

No outro lado da boate, ela olha para pista com seu olhar selvagem. Ele dera o azar de não ter acompanhado a entrada triunfal dela. Veria que o olhar dela era igual ao dele.

22.7.02

O Êxtase do Tempo


Toca agora
A leve flama
Do tempo

Com seu tato
Percorre suas fibras
E tessituras

Sente o seu volume
Veja ele lentamente
Amalgamar-se

Aos seus sentidos
E como ele se apodera
Do seu corpo

Agora que és uno
Com o tempo
Sente seu êxtase

19.7.02

Desde que Shakespeare inventou o mundo


Otelo era pai de Bianca e Catarina. Se preocupava com o destino das duas, claro. Enquanto Bianca, sua caçula era a extroversão em pessoa, Catarina era arredia como um cavalo xucro. Ambas já estavam em idade de casar, E Bianca, inclusive, já havia tido vários noivos. mas Otelo era metódico: na casa dele, havia de se seguir as regras. Casa-se primeiro a mais velha, depois a mais nova.

Bianca, cansada dessa história, tratou de arranjar um garoto de programa para que se passasse por pretendente da irmã. Seu nome era Romeu, e por coincidência, era filho de uma família que vivia às turras com a família de Otelo, os Monteletos. As desavenças entre as duas famílias começaram por um motivo bobo: Otelo queria que sua primogênita se chamasse Julieta. Hamlet Monteleto, na época melhor amigo de Otelo, roubara-lhe o nome da filha, batizando a irmã mais velha de Romeu com esse nome. Depois desse dia, nunca mais se deram bem.

O problema todo começou quando Romeu, esquecendo o trato meramente comercial, se apaixonou por Catarina. E pior ainda, o tiro havia saído pela culatra: Quem se apaixonou pelo jovem scort boy foi a mulher de Otelo, Desdemona.

Romeu não queria nada com a Mona (apelido da esposa de Otelo) e Catarina não queria nada com Romeu. E como o pretendente não largava do seu pé, Catarina, percebendo a paixão de sua mãe por ele, os intriga com Otelo, seu pai. Enfurecido pela suposta traição, Otelo mata Desdemona, com um tiro na cabeça. O próximo seria Romeu.

Catarina – que de tão ruim, nem se abalou muito com a morte da mãe – leva seu pai, em plena sanha vingativa, até à casa dos Monteleto. Lá, encontrou Romeu sendo amparado por sua irmã, Julieta. Bianca havia avisado ao Romeu que seu pai tinha a intenção de matá-lo e contou sobre o assassinato de Desdemona. Atormentado pela culpa, Romeu havia tomado um frasco inteiro de barbitúricos. Estava agonizando nas mãos de sua irmã. Otelo, vendo que sua vingança fora consumada sem precisar matar outra pessoa, vai embora, junto de sua filha Catarina. Não chegaram a ver Julieta cortar os pulsos, por conta da tristeza de ver seu irmão morrer em seus braços.

Bianca além de avisar Romeu, havia chamado a polícia para prender seu enlouquecido pai. Otelo chega em casa e a vê cercada de viaturas por todos os lados. Entra na sala e, vendo sua caçula conversando com o delegado – ao chão ainda jazia o corpo da sua esposa – percebe ela a delatara. Tomado pelo ódio, lhe disfere três tiros, antes que qualquer policial pudesse fazer algo. Bianca morre e Otelo é preso, onde ficou o resto dos seus se lamentando pelas mortes que causou num momento de loucura.

Catarina ficou sozinha, como queria e rica como nunca imaginou que ficaria por conta da herança da mãe. Não tinha arrependimentos e, finalmente, estava feliz. Sobre tudo que havia ocorrido em sua vida, costumava dizer que os homens são assim mesmo: "Fazem muito barulho por nada".

16.7.02

O Troco


– É pegar ou largar. Não posso fazer mais nada.

Depois do cobrador falar a inesperada e absurda proposta, ela e ele tiveram que concordar que até tiveram sorte. Eles podiam nem saltar no mesmo ponto, o que geraria uma certa confusão. E, se o ônibus não tinha troco e eles podiam levar o deles unidos em uma única nota, qual era o problemas deles trocarem o dinheiro numa banca qualquer? Desceriam juntos mesmo. E era melhor que levar o famigerado vale-transporte como troco.

Ela e ele desceram no mesmo ponto, meio sem graça, meio sem ter o que falar um para o outro. "Um absurdo não terem troco, não?" , "Pois é!" e nada mais havia a ser dito. Ela tinha que comprar um maço de cigarros. Ele notou que ela olhava o volume que ele carregava no bolso da camisa e ficou na dúvida se perguntava se ela queria fumar. Afinal de contas, ela precisava comprar cigarros, o que além de saciar seu vício, seria a alforria dos dois. Dinheiro trocado, cada um seguiria seu caminho.

Entraram no primeiro boteco que encontraram. Pra azar deles, não vendiam o Marlboro Lights que ela fumava. Ele comentou que era um curiosa coincidência: fumava a mesma marca. O silêncio constrangedor depois da frase dele só foi quebrada com a explicação do próprio. Não tinha ofertado um cigarro pois ela ia comprar. "Sem problemas!", ela respondeu. Estavam ambos atrasados pra o trabalho, mas ele fez questão de acompanhá-la até encontrar sua marca de cigarro.

Duas bancas de jornal e outro bar depois e a busca ainda seguia. Ela pediu um cigarro para ele. Pagaria assim que conseguisse comprar seu maço. Ele se recusou. E riu pra ela. E o sorriso foi retribuído. Conversando, viram que tinham várias outras coisas em comum além de pegarem o mesmo ônibus e consumirem a mesma fumaça. Idades próximas, gostos parecidos, sem compromissos os dois. Tinham afinidades.

No terceiro bar, a busca acaba, até com uma certa relutância por parte dela e dele. Ele lhe ofereceu um café, não aceito, ela quis lhe pagar o cigarro, idem. Ele perguntou onde ela trabalhava e se ofereceu para acompanhá-la. Ela não aceitou de novo. Estavam atrasados. E ele iria para o outro lado da grande avenida. Ela ofereceu a ele seu telefone. Ele aceitou.

Almoçaram no dia seguinte, começaram a pegar o mesmo ônibus sempre, com horários combinados, saiam, com certa regularidade. Sem perceber, gostavam um do outro. E muito.

Depois de felizes anos juntos, sempre diziam que "Dinheiro traz felicidade, sim!". E tudo começou por causa de cinquenta centavos…

15.7.02

SP


Fui para a grande cidade, conhecê-la. Não contava com sua beleza concreta, seus labirintos de prédios tão próximos, a espera de que um minotauro moderno o guarde. Não contava com a vista enorme a minha disposição, onde pude ver toda sua grandeza e imponência e além. O frio das suas ruas largas, o vento que dava potência a esse mesmo frio, a tremedeira inevitável. A classe de teus moradores e a maior classe de algumas moradoras. Seus palácios em lugares inesperados, seus filhos ignorados em lugares mais que esperados. A sua miscigenação exposta em nossas caras de forma brutal, seus milhares de sotaques, peles, rostos. Um mundo inteiro dentro de uma cidade que é um mundo.

E apesar do contato com seu lado bom, apesar da ignorância mantida do seu lado ruim, a vontade de voltar persiste apenas por um motivo: não encontrar quem se queria.

11.7.02

Homem de Gelo


Depois da terceira desilusão amorosa em 2 meses, decidiu se tornar uma pedra de gelo. O processo era complicado. Tinha de abandonar o calor de todo tipo de emoção que restasse em seu corpo, trazendo com isso seus vários efeitos colaterais: rigidez das articulações, queda de cabelos e unhas, tremedeiras, entre outros, mais graves. Chorar, por exemplo – processo quase inevitável de ocorrer quando se expurgam todos os sentimentos de um corpo – poderia ser extremamente desagradável. As gotas congeladas descem pelo rosto, ainda em processo de congelamento, causando queimaduras.

Depois de haver sido esvaziado de todo tipo de emoção, já tinha a pele translúcida e congelada. Após reaprender a se locomover, apesar de suas articulações duras, teve que comprar uma roupa impermeável para não inundar sua casa. Dormia no freezer, local que aliás, teria que passar boa parte do tempo. Ele encarou o processo de transformação em gelo com altivez e determinação. Mas esqueceu-se desse detalhe. Teria que viver em uma câmara frigorífica, como um pedaço de carne resfriada. Esqueceu-se da contrapartida de ser uma pessoa congelada: derreteria em pouco tempo. Sem emoções, frio, sendo gelo, definharia, aos poucos. Como não queria viver recluso em uma geladeira, se deixou derreter.

Na sala sobrou um impermeável encharcado. E só.

10.7.02

Anjo


Eis que, por um acaso do destino, sua nave, que fugiu a tempo da destruição do seu planeta, caiu no meio da praia de Ramos, numa quarta-feira de cinzas ensolarada. Eram seis da manhã e ninguém percebeu. Alguns bêbados acordaram com o estrondo da queda, mas viram apenas uma alegoria de escola de samba fumegando na areia. Nada que merecesse sua atenção.

Dentro, uma criança. Bonita, risonha, olhos azuis profundos. D. Maria, negra, viúva e lavadeira, voltando da ala das baianas no desfile da Portela, viu aquela criança largada e achou uma judiação o que fizeram com o bebê. Levou o moleque pro barraco. Deu-lhe o nome Carlos.

Carlos cresceu forte e sem nenhuma doença. Desde novo, mostrou-se forte como um touro, e parecia precisar menos de alimento que seus esquálidos 4 irmãos adotivos. Sempre que a comida era pouca, fazia questão de dar seu minguado prato para os irmãos. Todos o adoravam.

Adorava a praia e parecia sempre mais forte quando sentia o calor amarelo do sol. Nadava sem medo nas poluídas águas da Baía de Guanabara. Enquanto seus irmãos e amiguinhos apareciam sempre com uma mazela qualquer depois de se aventurarem nas praias do subúrbio (tinha micoses e coceiras em profusão. Até hepatite uns haviam pego), Carlos nunca se abalava. E ficava horas nadando.

Adorava futebol e como era muito veloz e forte, em pouco tempo era o craque do time do bairro. Em um teste no Botafogo, seu time de coração, foi aprovado com louvor. Entrou direto duas categorias acima da sua idade. E ainda era o melhor jogador, disparado. Depois de efetivado, usava sempre uma camisa com a estrela solitária no peito. Se sentia bem com o uniforme.

Teve uma carreira meteórica no esporte. Desde as divisões de base, sempre foi titular absoluto da seleção brasileira. O interesse dos times internacionais foi inevitável e impossível de ser impedido. Foi jogar na Holanda, ainda com 14 anos.

Lá, sentiu muita saudade do Brasil. Seu rendimento não caiu, mas ele ficava triste e não se integrava ao grupo. Numa noite, desejou ter asas e voar em casa, rapidamente, só para beijar a mãe. Seu desejo, milagrosamente, se realizou: alçou voô e, chegou em algumas horas no Brasil. Quase matou a todos de susto. Voltou, voando de novo, para Holanda horas depois. Como sumiu sem avisar, foi punido no clube. Mais um motivo para ficar triste.

Ligou para mãe, que ainda não entendia como ele poderia ter chegado em casa na noite anterior, explicando o que acontecera. Estava muito deprimido de novo. A mãe lhe prometeu uma lembrança inesquecível e que o deixaria muito feliz. Aguardou, ansioso.

Semanas depois, recebeu a encomenda de D. Maria. Um colar, com uma carta. Explicava nela que fizera um cordão para o filho. No pingente, um cristal verde que estava grudado na alegoria onde ela encontrara Carlos, ainda bebê. Pediu que nunca tirasse ele do peito.

O presente deixou Carlos muito feliz. Não se desgrudava do colar, nem no banho. Mas nem tudo eram flores. Misteriosamente, Carlos caíra de rendimento. Não corria bem, não tinha forças, sentia tonturas no campo. Até doente, coisa que nunca havia acontecido, ele ficou. Baixou de cama, por semanas.

A doença era mais grave do que esperavam. Nem os maiores especialistas europeus conseguiram diagnosticar o problema do projeto de craque. A doença era um mistério. Carlo estava magro, pálido, uma sombra do que era. Sempre que se sentia pior, segurava o pingente: sentia a força de sua mãe adotiva na pedra verde.

Ele piorou. Pediu para voltar ao Brasil, para casa. Os médicos, desnorteados, recomendaram isso à diretoria do clube. Quem sabe não melhorava com umas féria junto à família?

Não melhorou. Aliás, piorava a olhos vistos. D. Maria ficou desesperada. Há poucas semanas, viu seu filho querido chegar saudável, como um anjo, de dentro das nuvens. Agora, o via definhar. Levou rezadeiras, benzedeiras, macumbeiras, todo o tipo de ajuda que podia oferecer. Não adiantou.

Carlos morreu dois dias depois de voltar para casa. Nas mãos, o pingente verde que a mãe lhe dera. Foi enterrado junto com ele.

O Precipício


Fumou um cigarro
Parou
Olhou a imensidão
E o precipício à sua frente

O salto
Era a morte certa
Mais ainda assim
Sedutor

Pensou nos poréns
Eram vários
Mas valia viver
Sem eles?

Esmagou o cigarro
Fechou os olhos
E pulou:
Ligou para ela

9.7.02

Arma Branca


Ser vivo é viver
Me recuso a apenas existir
Vivo, recluso; Não compactuo
Com esse mundo
Repleto de seduções decadentes
Não toco mais essa estrada
De limites
Minha luta é surda
Discreta
Minhas armas não têm porte
E se não funcionam sempre
Não é por isso que não vou
Dispará-las:
Todo dia puxo seu gatilho
Apesar do alvo distante
Se minha visão se turva
Miro no meio dos olhos
O tiro pode não ser fatal
E nem minha intenção é de morte
Quero apenas feri-la
Então eu pego essa vida machucada
E a curo com minhas próprias mãos

3.7.02

O poeta marginal


O poeta marginal
Rouba o sentido das palavras
E as usa a seu bel-prazer

O poeta marginal
Pode amanhecer o dia quadrado
E respirar as pedras dos calçamentos

(Não o quadrado,
Figura geométrica
Com quatro lados iguais

Nem as pedras,
Com certeza,
Invadem seu pulmão)

O poeta marginal
Tem que ser preso
Ele é um subversivo.

Transubstanciação


"A fé remove montanhas!", era o bordão de Tião. Católico fervoroso, a fé, por muitas vezes, era seu único alimento no agreste onde morava. A seca parecia um sinal do abandono Dele. Todos da sua grande família – mulher, sogra, seis filhos, cachorro sarnento e lombrigas nas crianças – já pensaram nisso, alguma vez. "Ele não olha mais por nós", era o que estava escrito nos seus olhos ao contemplarem o solo rachado como seus pés.

Mas não Tião. Tião tinha fé. Muita fé. Ia a missa todo domingo, se confessava e comungava sempre com o padre Pedro. Rezava fervorosamente nos cultos, por mais comida, por mais saúde, por alguma chuva. Ele parecia não ouvir sua voz débil de subnutrido.

Um dia seus filhos começaram a cair como moscas. Primeiro Tonho, depois Bené, depois Ritinha. Filomena, sua mulher, desistira Dele de vez. Se Ele olha pelo cachorro e não olha pela suas crias, pra que continuar confiando?

Tião não. Ele ainda acreditava nEle. E rezava. Um dia, na missa, foi comungar. Estava desesperado. Já havia perdido três dos flhos, e Ciro, o quarto filho, parecia que atenderia Seu chamado a qualquer momento. Então Tião rezou e rezou e rezou, mais humilde e mais fiel que nunca. A hóstia estava em sua boca. Ele só pedia um sinal, qualquer coisa. Queria uma prova de que Ele não os abandonara.

Tião começa a sentir algo estranho no boca. A hóstia, que tinha sido seu único alimento no dia, começa a esquentar. E pior, crescer de volume. Já estava do tamanho de uma mexirica quando ele não teve opção além de – heresia! – cuspi-la.

No chão, borbulhando, crescendo sem parar, a hóstia vira um corpo. Era o sinal. O Deus de Tião nascera do seu próprio escarro.

2.7.02

Passado


Sempre me achei o preferido
E até era certa minha presunção
Até que passei a preterido
Sem premeditação
Aconteceu, e eu não previa

A sensação que prevalece
É de ter me tornado pretérito

27.6.02

Ironia



Botecos sujos, sinuca, antros sórdidos e prostitutas. Motéis baratos, caminhadas em bairros barra pesada. Álcool, álcool, álcool. Amizades duvidosas e outras que não deixam dúvidas: não prestam. De todos, só me acompanham sempre meu cigarro caubói (sem filtro) e meu isqueiro dourado.

Drug dealears, pó, fumo, pico. Doideiras. Teto preto, náusea. Vômitos na rua e desmaios em casas desconhecidas. Festas ininterruptas. Viagens, bebedeiras, ressacas colossais. Sono? O que é sono? Não dormir por dias e dias e dias. De tudo, sempre comigo, meu cigarro caubói (alcatrão e nicotina sem intermediários, direto no pulmão) e meu isqueiro dourado.

Discussões, brigas e mortes. Pegas automobilísticos, seguidos de pancadarias generalizadas. Facas, tacos de beisebol, pistolas. Tiros na madrugada, feridos, um corpo irreconhecível de um abusado. Turmas, gangues e facções. Sempre do meu lado, meu cigarro caubói (fumo na língua) e meu isqueiro dourado.

Não fui morto em assalto, nem esfaqueado por uma puta ou por um cafetão. Nenhum deputado mandou me matar, não sofri acidentes automobilísticos, não fui espancado até a morte. Não fui atropelado bêbado, não me afoguei no meu próprio vômito, não tive uma overdose, não me suicidei (?).

Estou num leito, prostrado. Morrendo de efisema.