28.5.02

A Mancha 28/05


Aquela mancha no chão
Da praça, rodeada de curiosos
Aquela mancha vermelha
Espessa
Que brilha sob o pálido sol
Aquela mancha que traz consigo
A marca de uma promessa mal feita
E lamentos fora de hora
Aquela mancha
Nódoa inesperada
No caminho dos carros
Aquela mancha, que deixou
Mulher e filho
Aquela mancha, que levou
Embora vida e esperança
Foi tudo que restou da criança
Desperdiçada
Não há choro, não há vela
Não há mais nada
Além de uma roda de curiosos


16.5.02

Desprezo


Não desprezo ninguém
Apesar de algumas não merecerem mais que isso
É preciso ser um monge para desprezar algo
É preciso ter sangue de barata
É preciso ser como o frade que mora no mosteiro
E que em seu clautro, não fala, não vê e não ouve
Pela simples falta do que falar, do que ver, do que ouvir
Desprezar o nada é fácil
Eu não
Eu amo com raiva
E odeio com ardor

15.5.02

Desnecessário


Afligem meu coração
Meu time e a seleção
A fumaça no pulmão
O assalto à armada mão
Conseguir o ganha-pão
Tudo quanto é problemão

Ele não precisava nada
Com sua rotina atribulada
De levar essa punhalada

10.5.02

Exercício do esquecimento


Para esquecer alguma coisa, primeiro você deve fazer o sacrifício de mentalizar a tal coisa. Por mais sofrimento que a coisa te traga, mentalize-a com afinco. Ao mentalizá-la, vá reduzindo, fisicamente, o pensamento. Procure tornar o pensamento em uma forma geométrica – sólidos esféricos são os mais indicados – que vá, aos poucos, perdendo massa. Se você escolheu uma bola, mentalize essa bola até que ela não tenha mais que alguns milímetros de diâmetro. Desloque a esfera para o topo do cérebro e procure expelí-lo. Nessa parte, é importante muita concentração, geralmente é melhor fechar os olhos com força. Quando você sentir que a bolinha está bem no cimo do cérebro, simplesmente exploda com ela. O pensamento foi-se.

É comum ter que realizar essa operação algumas vezes para que o efeito seja satisfatório.


8.5.02

Mutação


Queria poder trocar de casca
Como as cigarras
Essa que insiste em me cobrir
Apodreceu

Teoria monetária do poema


O poeta foi ao banco
Tirar o extrato da vida
Descontando os débitos
As contas à pagar
(coração, saúde,
preocupações mil)
Viu o que sobrou no papel:
Era a poesia

Zumbi


Os corpos e coisas foram criadas unas, indivisíveis. Algumas poucas delas conseguem sobreviver ou funcionar bem quando partidas, esquartejadas. Não foram criadas para isso: morrem quando lhes falta parte.

Uma pessoa pode viver bem sem um braço, sem um olho, até sem o estômago. Terá lá suas deficiências, mas não sucumbirá, pura e simplesmente por isso. Mas existem partes nossas que não podem ser retiradas.
Eram duas pessoas, mas depois de um tempo, tornaram-se uma só. Não se concebia um sem o outro, sua associação era automática. Eram felizes, inclusive se levarmos em conta os desentendimentos. Nessas horas, era como se uma doença que se abate sobre um organismo, que o afeta até encontrar a cura para a peste.
Iam juntos. Até que um dia uma das partes, insatisfeita, foi-se. Não houve rusgas. Foi calma a partida, mas nem por isso menos dolorosa. Primeiro, a estupefação da parte abandonada. Não esperava pelo golpe. Um tempo depois, ao assimilar o que houvera, ficará em choque. A apatia era agora seu estado normal. Saia com os amigos, ficava em casa, viajava e era tudo a mesma coisa, aquela tentativa de escapar do inescapável, uma fuga inútil. Não poderia se esconder de algo que estava dentro/fora dela.

Perguntaram porque a parte não procurava esquecer a outra, porque não lutava para superar a perda, porque não tentava viver.

Ele simplesmente não podia. Ele estava morto.