27.6.02

Ironia



Botecos sujos, sinuca, antros sórdidos e prostitutas. Motéis baratos, caminhadas em bairros barra pesada. Álcool, álcool, álcool. Amizades duvidosas e outras que não deixam dúvidas: não prestam. De todos, só me acompanham sempre meu cigarro caubói (sem filtro) e meu isqueiro dourado.

Drug dealears, pó, fumo, pico. Doideiras. Teto preto, náusea. Vômitos na rua e desmaios em casas desconhecidas. Festas ininterruptas. Viagens, bebedeiras, ressacas colossais. Sono? O que é sono? Não dormir por dias e dias e dias. De tudo, sempre comigo, meu cigarro caubói (alcatrão e nicotina sem intermediários, direto no pulmão) e meu isqueiro dourado.

Discussões, brigas e mortes. Pegas automobilísticos, seguidos de pancadarias generalizadas. Facas, tacos de beisebol, pistolas. Tiros na madrugada, feridos, um corpo irreconhecível de um abusado. Turmas, gangues e facções. Sempre do meu lado, meu cigarro caubói (fumo na língua) e meu isqueiro dourado.

Não fui morto em assalto, nem esfaqueado por uma puta ou por um cafetão. Nenhum deputado mandou me matar, não sofri acidentes automobilísticos, não fui espancado até a morte. Não fui atropelado bêbado, não me afoguei no meu próprio vômito, não tive uma overdose, não me suicidei (?).

Estou num leito, prostrado. Morrendo de efisema.

21.6.02

O Sono de Nicolau


Samara vivia em função de Nicolau. Passava dias a fio ao pé da sua cama, esperando que Nicolau acordasse do seu longo sono. Desde que Nicolau adormecera, Samara mudou radicalmente sua vida, largando seus os estudos, seu trabalho, sua vida. Seus muitos planos de gente normal haviam sido abdicados antes: filhos, carro, uma casa melhor. O sono de Nicolau adormecera Samara de uma forma mais cruel. Tinha apenas 24 anos.

Samara e Nicolau viviam da parca pensão dele e da caridade de parentes e amigos. Não precisavam de muito. Samara tinha umas três peças de roupa e Nicolau duas, que eram trocadas uma vez por semana. O contato de Samara com o mundo era mínimo. Se resumia a encontrar alguém para tomar conta do marido enquanto ia à mercearia para a compra dos ralos mantimentos que precisavam, ao banco, uma vez por mês, para retirar a pensão do marido e à missa de domingo, onde rezava para que Nicolau despertasse. Samara já se desacostumara com as pessoas de um modo geral. Detestava ser constantemente alvo de comentários nas ruas. E além do mais, tinha mesmo que ficar ao lado de Nicolau, para beijá-lo assim que acordasse.

Samara e Nicolau moravam numa casa modesta, com sala, quarto e uma pequena cozinha. Poderia ser ainda menor, visto que o único cômodo realmente importante era o quarto. Era lá que o casal vivia suas esperanças e suas decepções. Viviam sim, porque Samara vivia por Nicolau, enquanto ele dormia. Na sua cabeça, planejava o que fariam com o resto de suas vidas.

As vezes, Nicolau parecia fazer algum movimento. Quando acontecia, Samara se levantava, olhos já marejados de sonhos, e se ajoelhava na sua frente. Pegava a mão de Nicolau e apertava com força, como se pudesse passar sua energia para o marido, fazendo-o abrir os olhos. Mas ele nunca acordava. As primeiras vezes em que isso ocorreu, ela sentava-se, resignada, e continuava esperando. Com o tempo, ela começou a ficar irritada e depois colérica com isso. Nessas horas ela pensava na injustiça do destino, não só com ela, que sabia não fazer mais que sua obrigação de esposa, mas com o marido. Chegava, mesmo sendo católica fervorosa, a duvidar dos critérios ou da própria existência de Deus. O arrependimento da sua ingratidão com o Criador vinha depois em forma de lágrimas. E quando Samara chorava era daqueles choros copiosos, que duravam dias.

Outras vezes, Nicolau nem precisava mover -– ou parecer que moveu – uma palha para Samara chorar. Nem ela notava quando começava o pranto, aliás. Podia estar lendo uma revista qualquer ao lado do leito, ou vendo um programa na pequena TV que ficava na mesinha do quarto. Ela só notava que estava chorando quando sentia o gosto salgado das lágrimas na boca. Samara não tentava impedir esse choro quando vinha, nem tentava entendê-lo. O choro, de vez em quando, a aliviava, de nem sabia o que.

Saber, sabia, mas não queria pensar nisso. Sabia que perder sua vida aos 24 anos era injusto, que não viajar, não estudar, não amar como todas da sua idade fazem normalmente era a maior das injustiças. Mas sabia também que Nicolau não escolhera adormecer, que era igualmente injusto para ele dormir sabendo que tinha uma mulher que o amava e que jurara permanecer ao seu lado na saúde e na doença e acordar abandonado, num hospital qualquer. Sabia disso tudo. Mas assim como Nicolau não escolhera dormir, Samara não havia escolhido essa vida. Eram muitas dúvidas. Samara preferia não pensar nisso, para não enlouquecer.

O tempo foi passando, Nicolau dormia e Samara velava seu sono. Nenhuma alteração na sobrevivência dos dois, salvo a lenta decomposição dos objetos. Suas peças de roupa ainda eram as mesmas, mais rotas, a cama de Nicolau estava mais funda, achatada sob o peso imóvel dele. Mas o que havia envelhecido mais era a própria Samara. A coluna já curvada de tanto estar sentada ao lado de Nicolau, a vista cansada de pouco ver a claridade do dia, a pele esbranquiçada, as rugas e sulcos no rosto, como valetas para as constantes lágrimas. Ninguém lhe daria menos de 40 anos, apesar de nem aos 30 haver chegado. Por outro lado, Nicolau parecia o mesmo. Tirando a alvura da pele, ele parecia até mais saudável que antes de cair no sono. Antes de começar a dormir, Nicolau exibia sempre o rosto extenuado do trabalho árduo e mal remunerado. Agora, pelo menos, e não poderia deixar de ser, parecia descansado. Samara o alimentava bem, fazia exercícios para suas juntas, e cuidava como podia de suas vestimentas, que eram bem mais apresentáveis que as suas. Ao desatento que olhasse o casal, bem poderia lhe parecer mãe e filho.

Isso não incomodava Samara. Até porque, seu contato com quem pudesse lhe avisar sobre essa situação era agora raríssimo. Desistira de ir à missa. Intimamente, desistira de Deus, só que agora não mais se arrependia. Ela não O maldizia ou coisa que o valha. Depois de um tempo, Samara simplesmente se esquecera Dele, ou melhor, esquecera o que Ele era. Ao banco parou de ir, depois que um sobrinho começou a trabalhar na mercearia. O moleque, já tendo idade para fazer as retiradas da pensão, fazia isso. E já deixava toda a quantia na venda, em troca dos víveres que mantinham a ela e a Nicolau. Ele mesmo levava as compras para tia, e deixava as encomendas na cozinha. Fazia meses que não via a Tia Samara. O resto família já a abandonara antes disso, depois das insistentes tentativas de tirá-la daquele claustro imposto por ela mesma. Aos convites para sair ou para se divertir um pouco ou para pegar um pouco de sol, Samara apenas respondia:

– Tenho que estar do lado do meu marido quando ele acordar. Tenho que beiijar meu Nicolau quando ele acordar.

A paciência da família chegou ao seu limite. Se Samara, na flor da idade, quisesse isso para ela, não poderiam fazer nada. E não fizeram mais nada.

Samara não percebia, mas era tão dependente de Nicolau quanto ele dela. Até mais, visto que ele não podia fazer escolhas, mas Samara sim. Dependente porque o que ela sentia por Nicolau não era mais amor. Tinha um obsessão por ele. Ou melhor, pelo seu despertar. Samara não amava mais Nicolau. Ela tinha apenas a certeza que o homem que ela escolheu para passar o resto de sua vida, o homem que ela conhecia tão bem, que sabia ser forte como nenhum outro, não ficaria entrevado para sempre numa cama. E ela se agarrou a essa idéia como sua tábua de salvação. Samara não percebeu que ela mesmo havia se entrevado, numa cadeira, ao pé da cama de Nicolau. Sua tábua de salvação se transformou em sua âncora.
Samara não sabia mais o que faria se Nicolau acordasse. Talvez, se ela pusesse reparo no que sua figura se transformou, soubesse exatamente o que fazer. Ela não era mais a Samara com que Nicolau se casara. E não era a sua ruína física que contava. Era sua decadência moral, sua fraqueza como pessoa, sua atitude covarde em não viver a sua vida sem Nicolau. Samara não tinha mais o frescor no olhar, o brilho no sorriso. Era um arremedo do que fora. Sua devoção desmedida havia passado, há muito, dos limites. Ela não poderia abdicar de viver por Nicolau. Se ele acordasse agora, ele ficaria mortificado com a visão da mulher que amava. E se culparia por isso, e a chamaria de orgulhosa e egoísta. Porque só o orgulho faria alguém carregar essa cruz de esposa–mártir a ponto de se destruir como pessoa e só o egoísmo explicaria o fato de Samara não imaginar que Nicolau nunca se perdoaria de ter feito isso a ela. Mas Samara não pensava nisso. Samara não pensava mais em nada.

Até que um dia, Nicolau acordou. Samara nem percebeu os primeiros movimentos dele, tão lentos foram. Foi o grunhido de Nicolau que tirou Samara do seu torpor. A principio ela pensou que seus ouvidos a enganavam, se recusando a acreditar que Nicolau tenha tido alguma reação. Mas olhando para aquele rosto já decorado em cada um de seus poros na mente, ela via, sim, que se mexia. Podia ver com que dificuldade Nicolau tentava abrir os olhos, e não conseguia. A própria voz, depois de anos sem serventia, parava na garganta, estrangulando o que poderia ser um pensamento. Samara não acreditava no que via, não esperava por isso e não tinha ideia de como agir. Ela pegou a mão de Nicolau, e sentiu, depois de tanto tempo, vida. A vida voltava a Nicolau, e Samara, que esperara tanto por isso, não sabia o que fazer. Diferentemente de antigamente, Samara não tinha vontade de chorar. Nem de rir. Samara só sabia, agora, que sua vida teria uma grande mudança. Não sabia se para melhor ou para pior.

Depois de alguns minutos de muda agonia, Nicolau conseguiu abrir os olhos. Ainda não falava, mas com os olhos entreabertos, reconheceu Samara. Tentava balbuciar algo, mas sua voz débil só emitia barulhos incompreensíveis. Samara chegou perto do rosto do homem que conhecia tão bem e tentou ouvir o que ele dizia. De nada adiantou, não havia o que entender naquela tentativa de fala. Quando ela se afastou um pouco, Nicolau conseguiu dizer algo – Samara! – desmaiando com o esforço logo em seguida. Samara caiu prostrada em sua cadeira, não tendo certeza se o que acontecera era real ou um sonho. Será que Nicolau voltara de vez? Será que agora ela poderia beijar o marido que ama – ama? – tanto, que zelou por todo esse tempo? Será que ele vai ser grato por sua abnegação, vai reconhecer o sacrifício dela por ele? Será que agora, depois de tanto tempo, Samara poderá voltar a viver?

Fazia anos que Samara não sabia o que era ser feliz. E ela estava agora. Se levantou de pronto e foi ao banheiro. Tinha que estar limpa para Nicolau, tinha que estar bonita para o homem que, sim, ama. Ela chega ao banheiro, abre o armário e repara que maquiagem, coisa que ela já pouco usava antes de Nicolau adormecer, era algo que não tinha há muito. Fechou o armário e se olhou no espelho, procurando ver o que poderia fazer por ela mesma, depois de tanto tempo. Então ela viu seu reflexo ao mesmo tempo que pensava em si própria pela primeira vez em anos. E Samara não acreditou no que viu. Aquela no espelho não era ela, não podia ser. Aquele rosto encarquilhado, aqueles olhos vazios, aquela boca sem vida. Para a morte, não existe maquiagem, não existe disfarce. Porque foi isso mesmo que acontecera. Ela, Samara, perdera sua vida em algum momento, e não se deu conta disso. Estava morta, mais morta até do que Nicolau jamais esteve. O que poderia essa velha fazer por ele, um homem que acabara de acordar de uma longa noite de sono, mais ainda assim apenas uma noite, que ainda tem as mesmas esperanças e sonhos de anos atrás? Para Nicolau, a vida passou num piscar de olhos; para Samara, a morte chegou aos poucos, dia após dia, sugando sua vida devagar.

Não havia nada que pudesse oferecer ao seu marido. Samara já sabia o que fazer, apesar de saber o que isso significava. Para ela, não havia mais salvação. Para Nicolau, ainda restava uma opção. Samara foi até a cozinha e preparou a última refeição que daria ao marido adormecido. Fez com todo esmero a sopa preferida de Nicolau, uma sopa de feijão que ele adorava comer depois do trabalho. Procurou, no meio das compras trazidas pelo sobrinho, o remédio que havia encomendado para os ratos que estavam rondando sua cozinha. Pegou um pouco do pó, colocou na sopa de Nicolau e levou para sala. Ele estava dormindo, mas diferente dos anos de sono silencioso, ressonava. Samara sentou-se no leito que vigiou por tanto tempo, se chegou a seu marido, ajeitando a cabeça de Nicolau no seu colo, e carinhosamente, lhe deu uma colherada da sopa. E depois outra e outra e mais uma. Ela sente o corpo de Nicolau se contorcer, de leve no começo, depois mais fortemente. Nicolau engasga, lutando desesperadamente para respirar. Com o esforço, seu olhos se abrem, agora fora de sua órbita normal, os olhos de um condenado. Samara vê mais uma vez o rosto que tanto amou um dia, olha direto nos seus olhos, sente a força da mão de Nicolau – mãos que já a apertaram muitas vezes antes, há uma eternidade atrás – mais uma última vez, e pela primeira vez em muito tempo, sente o quanto o ama ou melhor, amou. E chora mais uma vez. Mansamente.

Nicolau pendia em seu colo quando Samara deixou o prato ainda na metade cair ao chão. Ela se levantou, ajeitou o corpo de Nicolau na cama, colocando-o na posição em que permanecera durante muito tempo. Foi até a cozinha, pegar um pano para limpar o quarto, quando ouve seu sobrinho chamá-la, pela porta. Ele diz que estava passando e que ouviu o barulho de algo se quebrando e pergunta se não poderia ajudar em algo.

– Não, meu filho, não foi nada. Deixe que eu me viro.

– Tem certeza, tia Samara? Por que a senhora não me deixa entrar para ver o que houve?

Samara vai até a porta e abre, meio alheia à presença do sobrinho. Ele vai até o quarto e vê que tudo estava tudo normal, exceto pelo prato de feijão caído. O garoto pergunta mais uma vez se a tia não quer ajuda. Samara diz que não, pra ele não se incomodar. O cheiro de casa é de coisa velha, do mofo dos anos, quase sufoca o sobrinho de Samara. Com piedade nos olhos, ele pergunta se não seria bom a tia dar um passeio de vez em quando, pegar um sol, ver pessoas. Samara apenas responde:

– Tenho que estar do lado do meu marido quando ele acordar. Tenho que beijar meu Nicolau quando ele acordar.

17.6.02

A Solidão


Ela surge de repente. E, apesar de ser quem é, vem sempre acompanhada. Ela cobre nossos olhos com sua penumbra espessa, nos impedindo de ver quem quer que seja. É assim que ela age, por mais contraditório que seja: mesmo cercado por pessoas por todos os lados, sua cegueira nos domina.

E quem a acompanha, fiéis escudeiros que são? O desespero, a náusea, a sensação de se estar perdido no mundo. A raiva, a impotência, a inveja. E pior, a tristeza, cruel e fria.

Seu domínio não é permanente, claro. Chega um dia em que, como que acordando de um longo pesadelo, as nuvens não estão mais no horizonte. Algo leve revigora o ar, alterando sua própria essência. Foi-se o manto, tão lépido como surgiu. E é possível até esquecer sua ignóbil companhia.

Até quando? Nunca saberemos. Mas essa eterna fuga para o mais distante possível dos seus vetustos braços é o que nos move, é nosso motor, é o que nos faz erguer a cabeça do travesseiro, todo santo dia. Não temos garantias nem devemos nos enganar com isso. Podemos tanto ter êxitos sucessivos na escapada como podemos ser eternas presas fáceis. Isso faz parte da caçada. O que não podemos nunca é desistir de tentar, se deixar e ir para o abate. Temos de ser eternos revoltados, temos de nos rebelar sempre. Devemos continuar na corrida, porque ela sempre vem célere. E, as vezes, não faz prisioneiros.

14.6.02

A Fuga


Na verdade acho que ela não merecia o que eu fiz…a culpa foi minha e nem essa confusão que nubla meu raciocínio é desculpa pro que eu fiz…bom, talvez ela merecesse um castigo…mas não, não isso, não essa brutalidade toda, esse descontrole…mas eu falei pra ela não me chamar de louco…falei,falei, falei pra ela não me jogar na cara meus problemas, não se aproveitar da ajuda que me deu pra me humilhar…vagabunda…não, não, não ela não merecia isso…não isso…

Afinal de contas, ela cuidou de mim…me tirou da merda em que estava afundado até o pescoço…não queria ser internado, mas eu precisava…como eu a odiei por isso…quantos planos de vingança eu fiz…todo dia…todo santo dia naquele quarto, naquela cela…pensando em como me vingar…mas ela não merecia…fui eu quem voltou com as drogas, sem ela saber…depois de todo esforço que ela teve para me tirar disso, para me deixar limpo…mas o fraco aqui entende isso?…claro que não…sou um merda…um merda…um cara sem um pingo de caráter…mas eu disse pra ela não me chamar de louco…eu falei…mais de uma vez….

Eu não fugi da clínica…eu estava curado…eu precisava e podia sair…ela até me buscou, naquele carro importado dela…ela sabia que eu me sentia oprimido pela grana dela…o psicólogo deve ter conversado com ela…ela tinha que saber que nossa vida teria que ser diferente depois do tratamento…e ela mudou?…não…não mudou nada…e quando eu precisava, onde ela estava? ... trabalhando…sempre trabalhando…ganhando a grana pra suprir seus luxos, seus supérfluos…suas pequenas fugas…cada um tem as suas fugas…e tinha a minha…e ela me tirou dela…mas ela me jogou de novo pra ela…mas ela não merecia isso…isso não….

Merecia sim…ah, como merecia…ela me tirou de lá e me largou no mundo de novo…estúpida…burra, burra, burra…eu não podia ficar ali…vendo ela viver pro trabalho e me largando…eu a amava…ela me amava também…mas foi burra…eu a amava, mas ela era burra….

Pagar o tratamento não era desculpa…podíamos ter ido embora dessa cidade…poderíamos ter ido pra bem longe,…do maldito dinheiro, dos fornecedores de fuga…eu pedi isso a ela…e ela podia ir?…não…não podia…tinha que ganhar o maldito dinheiro dela…."dinheiro nosso"?…pois sim…dinheiro dela…e ela tinha que me humilhar…NÃO ME CHAME DE LOUCO…NÃO ME CHAME DE LOUCO… eu pedi pra ela…eu implorei…e a burra parou?…não…ela não parava nunca….

Não queria brigar com ela…mais um dia sozinho naquele apartamento enorme, trancado e eu me matava…o que custava?…não pedi uma mudança definitiva…pedi férias…longe dali…bem longe dali…ela pensou o que?…que me trancar ia me impedir de arranjar o que eu quisesse?…louca, burra, burra, burra…eu tenho amigos…meus amigos me ajudam a fugir, mesmo estando trancado nesse apartamento enorme…
Ou ela achou que o pó não passava embaixo da porta?…ou ela achava que eu não tinha o telefone dos meus amigos?…mas isso não é desculpa…ela não merecia…não merecia…bom…um pouco só…é um pouco…

Eu estava bem…quando saí da clínica, eu estava bem…mas ela me deu apoio?…não…quando eu mais precisava…ela só trabalhava…só trabalhava…ela me deixava caminhar na praia…no começo…mas ela tinha que me ver andando com meus amigos, não tinha?…tinha que voltar mais cedo do trabalho…sempre o trabalho…acabando comigo…e acabando com ela…agora, pelo menos…

Ela não podia me trancar…não sou um animal…não era, pelo menos…já bastou a clínica…ela queria me deixar louco de novo…não…nunca fui louco…ela não podia me chamar de louco…eu não sou louco…grades nas janelas…sem facas, sem giletes…estúpida…eu eu ia me matar?…por que faria isso?…burra…não me tranque…não me chame de louco…

Trancado eu tinha que fugir…a burra deixou o telefone…eu tenho amigos, estúpida…burra, burra, burra…eu a amava..eu a amo…ela não podia fazer isso…não me tranque, por favor…vou ficar lou…eu não sou…eu não sou…eu não sou…

Meus amigos me deram a fuga…por debaixo da porta…dias e dias e dias…ela notou…eu parei de reclamar…estava agitado….queria foder com ela a noite inteira…foda-se se estava preso…fica comigo…eu fico preso, mas vamos transar…até amanhecer…e mais…mas não…ela tinha que dormir….tinha trabalho de manhã cedo…menos sexo…mais fuga…

Ela achou a fuga em casa…me xingou…filhodaputadepoisdetudooqueeufizporvocê…e mais, e mais…eumeacabodetrabalharpratesustentartedeixarsaudávelevocêvoltapraessamerda….eu não quero seu dinheiro, sua puta…burra…desculpe,desculpe…estou pirado…estou pirando aqui…vamos embora…vamos fugir…vamos pra longe…por favor….

Mas não…você não podia…e me xingava…fraco, fraco, fraco…isso eu aceito…sou mesmo…mas não me chame de louco…eu não sou louco…NÃO SOU LOUCO…eu não queria te bater…mas você merecia…e ainda continuou me xingando…burra…eu não queria…não queria…isso você não merecia…bom…talvez um pouco….

Eu não queria pegar no seu pescoço…eu não queria te deixar roxa, com a língua pra fora…eu te amo…não brinque assim…acorda…acorda…ACORDA, PORRA…não faz isso comigo…não faz isso comigo…não…não…nãonãonãonãonãonãonão…

E agora…estou sozinho…estou trancado…e depois que você arrancou o fio do telefone, estou sem voz…estou ilhado…com meu amor…mas ela me deixou…mais uma vez…eu fiz ela fugir…fugir, fugir, fugir…acorda, amor…acorda…onde está a chave?…estou enlouquecendo….

Operação


E quando ela terminou seu relacionamento com ele, ele decidira não mais amar. Refletiu e constatou que não vale a pena. Quando tudo são flores, é ótimo. Mas a tristeza da morte do amor não compensava. Também viu que não existe amor eterno. E resolvera que não queria mais carregar o peso de um amor defunto nas costas. Nunca mais.

Ele sabia que o amor surge do nada, e que era algo inesperado e incontrolável. O que fazer para evitar que surja o amor? Teve uma ideia. Arrancaria do peito seu coração.

Não queria meter médicos nessa história. Achou, com muita propriedade, que seria difícil encontrar um cirurgião que não se opusesse à essa ideia. Sabia que teria trabalho, mas ele mesmo se encarregaria da retirada do órgão. Um dia, chegando em casa, pegou uma faca e a esterilizou. Deitou-se, e começou a incisão. Nem pensara em anestesia ou qualquer outro paliativo para a dor. Achava que o sofrimento que sentia por amor era muito mais doído. Um cortezinho no peito seria moleza. Doeu muito mais do que esperava, mas era suportável. Viu seu sangue escorrer pela mesa onde estava deitado e tentou amenizar a hemorragia com as toalhas que havia reservado justamente para isso. Estancou como pode seu sangue e começou a abrir sua caixa toráxica. Era um trabalho hercúleo, tanto pela rigidez que não esperava encontrar em seu corpo como pela posição esdrúxula em que se encontrava. Mas foi em frente.

Sentiu seu coração pulsando e pensou mais uma vez se essa era mesmo a melhor solução. Lembrou de toda a felicidade que ele já lhe proporcionou e quase se arrependeu. Mas foi só pensar em todo sofrimento, dor e raiva que esse músculo lhe causou e tomou a decisão. Arrancou-lhe de um puxão. Essa dor foi mais forte. Quase não tinha forças para costurar o corte em seu peito. Mas no fim, deu tudo certo. Fraco pela falta de sangue, desfaleceu logo após terminar a sutura.

Ele se tornou uma pessoa mais tranquila. Não sentia mais aquele palpitar incômodo quando via alguém que já esteve dentro do maldito coração. Ficou um pouco mais amargo e taciturno, mas compensava. Seus amigos não acreditavam na operação que havia realizado em si mesmo, mesmo quando colocavam o ouvido em seu peito mudo. Para esses mais céticos, a solução era levá-los à sua casa. Guardava, em cima da sua tv, a prova: seu coração em um vidro com formol.

Havia uma amiga que era a mais cética de todas, e mesmo vendo o pote, não acreditava na sua história. Era uma amiga muito próxima e antigamente, muito querida. Antigamente porque não nutria mais esse tipo de sentimento, a afeição, por ninguém. Talvez, se ainda tivesse aquele músculo pulsando em sem peito, até se apaixonasse por ela. Mas ele não tinha mais coração.

Ela não acreditava que alguém pudesse viver sem amor, que dirá sem um coração! Investigou a história a fundo. Passava dias e dias com ele, querendo comprovar se realmente ele não tinha mais sentimentos. Ele não se abalava com a amiga. Ela estar ali ou não não mudava em nada sua vida. Essa vida estéril, sem amor, sem vida mesmo, que ele levava estava amargurando a amiga. Ela tinha que tomar uma atitude, achar uma solução. Pensou, pensou, pensou até que encontrou a saída.

A amiga convidou-o para sair e combinou de apanhá-lo em sua casa. Ela chegou mais cedo e ele ainda se arrumava. Ela esperou na sala. Ele pronto, foram jantar. No meio da refeição, a amiga pega na mão dele e se declara perdidamente apaixonada por ele. A vida triste que ele levava a havia tocado profundamente. Não conseguiria mais viver sem ele. Ela perguntou o que ele achava disso. Para surpresa dele, que esperava dizer que não poderia ajudá-la, se viu forçado a dizer que também a amava. A confusão em sua cabeça foi brutal. Como ele, sem coração, podia estar apaixonado? Sentia tremores e, inacreditavelmente, uma vontade incontrolável de chorar. E ele chorou. Ela o abraçou e se beijaram. Depois foram para casa, como um perfeito casal.

De manhã, ela teve que ir embora. Ele estava feliz. Confuso, mas feliz. Não entendia como poderia voltar a amar. Mas, definitivamente, estava amando. Ela se despediu com um beijo, deixando-o sozinho em sua confusão.

Mas assim que ela foi embora, descobriu o que houve. O pote não estava mais em cima da tv. Ela havia roubado seu coração.

10.6.02

Vozes


Levantou da cama sobressaltado, ouvindo vozes na sua cabeça. Era um sujeito cético até a raiz do cabelo, mas esse tipo de coisa – que estava ficando recorrente demais pro gosto dele – começava a incomodá-lo. Incômodo, no caso, era sinônimo de receio, medo, pavor, pra ser mais exato. Depois de acordar com uma voz de criança cantando no seu ouvido, ele abriu os olhos pra ver se tinha algum rádio ligado no quarto. Não tinha. Olhava para todos os lados, ofegante. Ele tinha certeza: era só em sua cabeça mesmo.

Voltou a deitar, imaginando se tinha poderes mediúnicos, se ia começar a "receber" santos ou pretos velhos ou exús ou que quer que fosse recebível. As vezes, tinha dúvidas do que era o pior, se o medo desse "dom" e sua desconhecidas implicações ou a vergonha que seria se ele acabasse tendo que ir a um terreiro pra ver o que afinal tinha. E se ele fosse e, no meio daquele batuque, ele começasse a rodar como um peru tonto e pedisse charutos e cachaça? Como ficaria a imagem dele?

A muito custo, conseguiu dormir de novo, algumas horas depois. Não por ter se tranquilizado ou pelo silêncio dentro da sua cabeça. Dormiu de exausto, de tanto esperar pela quietude na sua cabeça. Ele sabia que não poderia continuar assim. Assim que acordasse, iria resolver esse assunto.

Claro que ele foi a um médico. Sem crendices, ora diabos!, dizia. Foi a um neurologista. Pediu-lhe alguns exames, receitou uns remédios e pronto. O problema estaria terminado e…..nada, Não terminou. Nem as várias caixas de comprimidos tarja preta deram um fim às vozes. Foi a um psicólogo. Conversaram muito, fizeram regressão – em vidas passadas, fora soldado prussiano – receitou-se mais uns remedinhos. Sem efeito, novamente. Parecia que conversa não era a melhor maneira de acabar com o eterno diálogo na sua cabeça.

Dois mil anos de avanços médico–científico não resolveram seu problema, Decidira, relutante, a empregar métodos pouco ortodoxos de cura. Foi num centro espírita. Durante o culto, as vozes permaneceram num silêncio respeitoso. Mas foi colocar os pés na rua, parece que suas vozes resolveram colocar o papo em dia. Nessa noite, as conversar na sua cabeça foram tão animadas que não pregara os olhos. Sua última esperança era seu maior temor, um terreiro de macumba. Só de imaginar os efeitos de um ponto de umbanda sob as vozes o fazia tremer. Mas ele foi.

Surpreendentemente, assim que os atabaques começaram a ser tocados, ele começou a ouvir leves risadas em sua mente. Mais dois minutos, e as gargalhadas que ouvia dentro da sua cabeça o obrigaram a sair correndo do terreiro. Na rua, desesperado, ele berrou, implorando que as vozes se calassem. Inesperadamente, o clamor surtiu efeito. Até chegar em casa, não ouvira mias um pio.

Foi um silêncio restaurador. Chegou a acreditar que tinha resolvido seu problema. Vã ilusão. Ao deitar a cabeça no travesseiro, elas voltaram, e bem animadas. Conversavam sobre o terreiro. Ele não teve outra opção: perguntou qual era o problema com elas, as vozes. Explicou que, já que tinham que conviver juntos, seria melhor não atrapalharem tanto sua vida. E fez até a ameaça de acabar com a moradia se elas não se comportassem. Disse que acabaria estourando seus miolos se continuassem bagunçando tanto sua cabeça. Apesar de perturbadoras, parece que as vozes eram sensatas. Ficaram em silêncio depois da conversar que tiveram com ele. Depois de meses, tivera uma noite de sono tranquila.

Hoje ele coexiste com as vozes. Claro que ele ouve uns sussurros em horas inapropriadas, e tem que coibir com alguns "shhhhhh" quando começa a ouvir algum risinho. Estavam se dando até bem agora. O único incômodo foi que, com a intimidade criada, ele era frequentemente visto conversando sozinho. Na maior animação.

Profissão de fé


As vezes faço pra aparecer
Pra exibir tal sensibilidade forçada
Que nem é tanta assim

Outras, faço por puro rancor
Elas vêm, gotejando ódio
Fonte minando veneno

Faço também por necessidade
Nas vezes em que elas ribombam na minha cabeça
E se não saem por bem
Explodem por mal

As vezes eu simplesmente não faço.

4.6.02

Diálogo


– Oi! Tudo bom?
– Não…mas o senhor não tem nada a ver com isso.
– Desculpe?!?!
– Não nada a ver no sentido de "não te interessa", e sim no sentido de "o sr. não tem culpa".
– Mas o que você tem?
– Ahn, agora eu teria que falar o mesmo, só que no primeiro sentido…
– O que?
– Nada, esqueça.
– Posso te ajudar?
– Não. Eu pedi sua ajuda, meu senhor? Pareço precisar de ajuda? Eu nem conheço o sr.!!!
– Calma, filho, não precisa ser mal educado!
– Ah, tá, desculpe. Mas o senhor pode puxar papo com outra pessoa, por favor?
– Nem poderia, não…estou sentado do seu lado…
– Sinta-se a vontade para mudar, senhor!
– Não precisa, filho…eu me calo

******************************************************

– O senhor me desculpe…estou cheio de problemas e não estou muito pra conversas hoje…
– Tudo bem, filho…vou respeitar isso e me conservar em silêncio
– Obrigado…descontei no senhor algo que não tem nada a ver contigo
– Sem problema
– Não costumo ser tão grosso. Queria realmente que…
– Tá bom, filho, já entendi
– O senhor ficou chateado comigo, né?
– Isso não vem ao caso…Queria silêncio, lhe dei meu silêncio. Não precisa se justificar
– Tá, entendo…mas não queria que…
– Filho…chega. Não quero mais conversa…
– Como assim?

– Ei? Não precisa me ignorar também.

– Nossa…quanto rancor! Assim o senhor acaba tendo um ataque cardíaco!
– ERA O QUE ME FALTAVA! Primeiro não quer conversa; agora, fica falando como uma matraca…e ainda me roga uma praga? Ah, me desculpe, meu filho, mas vou descer agora…

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– Nossa…que velho mais mal educado!!! O problema do mundo, hoje, é esse….essa total falta de diálogo!!!