24.10.02

Engrenagem


Tentei fugir dessa máquina devoradora de vidas chamada tempo negando por completo sua existência. Não digo esse tempo-relógio, que de uma forma ou de outra, seguimos como escravos por pura falta de opção. Falo de algo mais complexo, daquele tempo-física, de que tanto falou Einstein, ou o tempo-filosofia, que tanto preocupou os antigos gregos.

Suas engrenagens invisíveis não são menos mortais porque etéreas. No seu status de "abstração", o tempo é, mesmo imperceptível, voraz e implacável. Nada resiste à sua fome. Cidades, pessoas e até monumentos erigidos com sua ajuda, como uma montanha, por exemplo, não representam nada diante da sua perenidade.

Passei a ignorar o tempo e seus efeitos. Via os dias, os meses e os anos passarem por mim, mas os imaginava - e eu os tratava como - meros subalternos do tempo, eram compartimentações do tempo criadas pelo homem, esse ser temporal e falho. Não lhes dava a mínima importância.

Por incrível que pareça, minha artimanha fez efeito. Ignorar o tempo me rejuvenesceu. Via todos à minha volta envelhecerem, seguindo o curso normal da putrefação cronológica de suas carnes, o que não ocorria comigo. Perguntavam-me sempre o que fazia para manter a aparência jovial por tantos anos. Eu respondia que ignorava o tempo. Os pobres ignorantes sempre riram dessa resposta.

Os primeiros contratempos foram, como vocês podem imaginar, o falecimento de várias pessoas que me eram muito próximas. Meus pais foram antes, como naturalmente haveria de decidir o feitor tempo. Mas quando minha esposa - contava com alguns anos a menos que eu - morreu encarquilhada e seca enquanto eu mantinha minha aparência de meia idade, comecei a notar a vingança sutil do tempo. Depois foi meu filho, que até faleceu cedo (tinha cerca de 50 anos), mas mesmo assim poderia passar facilmente como meu irmão mais velho.

O que o tempo não esperava ao me lançar essa maldição era a minha impassibilidade. Ao me tornar atemporal, eu simplesmente não conseguia mais me ater aos velhos laços sentimentais e emocionais que a humanidade rotineiramente se enreda. Senti a perda dos meus entes queridos? Claro, mas não era nada que me chocasse tanto.

E o tempo foi passando e eu, imbatível, segui ignorando sua existência. Vi guerras e pazes começarem e recomeçarem, demonstrando que mesmo sendo tirano, o tempo não é o melhor dos mestres para os homens. Vi os prodígios da ciência e da tecnologia mostrarem que o tempo, o mais paciente das divindades, também auxilia seus súditos. Tudo passava por mim, e enquanto mais eu aprendia, mais ansiava por conhecimento.

Mas eis que, séculos e séculos depois, o tempo finalmente me jogou em uma armadilha de onde não existia uma saída. Ele engendrou, pacientemente, essa forma definitiva de me dobrar, me obrigando a uma humilhante desistência.

Com todo meu conhecimento acumulado, eu era a pessoa mais sábia do planeta. Não que eu alardeasse esse fato, não queria a fama, que só me traria aborrecimentos. Meu conhecimento era apenas para mim, e eu desfrutava egoisticamente dele. Não escrevi livros nem treinei discípulos nas técnicas de superação do tempo. Eu era um ser uno e essa unidade me bastava. Mas sempre fui ávido por conhecimento e estava cada vez mais dependente de aprender. Essa foi a minha ruína. Depois de séculos e séculos de aprendizado e estudos, simplesmente não havia mais nada que eu não soubesse. Eu esgotara as dúvidas, o que decreta o fim das respostas.

Estava desesperado, mas sabia exatamente o que me restava fazer. Não havia mais sentido continuar vivendo. Eu decidi me matar. Quando eu ia executar o desmedido ato, o tempo, corporificado como nunca ninguém havia visto antes, me apareceu.

- Você viu onde seu orgulho lhe trouxe. Agora você sabe tudo, inclusive que de algumas engrenagens, não existe escapatória.
- Você tem razão. Eu mesmo me encurralei. Não me resta nada a fazer além de me matar.
- Não. Você não vai se matar. Isso seria uma dádiva para alguém que ousou desafiar o tempo. Você sabe o que eu quero, não?
- ....Sei. Sei exatamente o que você quer. Eu devia imaginar que você, cruel como sempre foi, iria me obrigar a esse tipo de humilhação.
- Acha mesmo que eu sou cruel? Será mesmo que ainda resta uma lição para você e justo eu, o tempo, aquele com quem você declarou guerra, terei que lhe ensinar? Eu não sou cruel, eu sou justo. Tudo tem seu ciclo. Você errou exatamente aí. Não compreendeu que tudo é parte de um único mecanismo. E que seu funcionamento depende que cada um dos seus elementos - ou engrenagens, se assim preferir chamar - esteja no seu devido lugar. Você cometeu o crime de parar essa máquina. Você nem tem idéia do mal que você causou. Na sua soberba, você quase abalou as estruturas do real. Não se pode fugir do tempo. Se você não fosse tão prepotente perceberia que, no fim, tudo que existe é eterno. Claro que não têm a eternidade efêmera que você encontrou.
- Eu percebo. E desisto. Sei o que você fará...pode me punir.

Depois disso, o tempo se esvaiu no ar. Assim que ele desapareceu, comecei a sentir minha pele esgarçar, me senti cansado e com a visão turva. Essa era a vingança definitiva do tempo. Ele iria me envelhecer. Ele cobrava agora os anos que lhe roubei. E vou sentir, literalmente, na pele, seu passar. Em sua marcha normal, o tempo é, na medida do possível indolor. Ao passar rapidamente, ele dói. Uma dor que apenas um criminoso como eu merece sentir. Eu vou morrer, mas só depois de sentir o peso dos milhares de anos que vivi desabarem sobre minhas costas.

Incurável


Então eu sou o errado
Eu sou o pária
O sem valor

Se é assim, eu assumo
Eu sou mesmo
Sou o plano que deu errado
A piada não entendida
A dívida não paga

Eu não quero saber da cura
Quando sei que essa doença
Não tem remédio

23.10.02

Estrago



Largou o lar sem a menor cerimônia, fugindo com um motoqueiro barbudo e cabeludo, cheio de piercings e tatuagens. Mais que a fuga, o chifre e o abandono de dois filhos pequenos para criar, o que irritou mesmo a parte abandonada foi o mau gosto da parte abandonante. Ele fora trocado por um estereótipo. Pior, um estereótipo de mau gosto, kitsch, brega. Isso, ele nunca perdoaria.

Sempre fora um cara comedido, educado, centrado. Ela era mais doida mesmo, mas não imaginaria nunca que seria a esse ponto. Mas ele devia ter desconfiado. Nas suas últimas discussões, ela sempre procurava leva-lo à loucura, era visível que ela queria que ele perdesse completamente o bom senso e a esbofeteasse. Ele chegou a ameaça-la na última briga.

- Infelizmente, você não é homem pra isso...quem dera fosse!


Ela saiu, trancando a porta do quarto. Ele saiu para arejar as ideias. Esteve mesmo a ponto de cometer o bárbaro ato de espancar uma mulher, a mãe de seus filhos. O que ela queria afinal de contas? Um marido, bom pai de família e responsável, ou um troglodita qualquer, que a esmurrasse pelo menor motivo?

Quando ele voltou, encontrou o armário do quarto meio vazio. Ela tinha ido embora, e levara suas roupas. Deixou um bilhete, explicando que não aguentava mais a monotonia dele, que ele era um chato e que fugira com contínuo do escritório dela, o motoqueiro cabeludo. No final da carta, ela ainda disse que esperava que agora, finalmente, ele tomasse uma atitude de homem.

Não tomou.

O tempo passou, mas não o ódio que ele sentia da mulher foragida. Um dia, sem mais nem menos, completamente sem aviso, ela aparece à porta de casa. Estava bonita, poderia dizer que a temporada com o brutamontes a fizera rejuvenescer.

- Você veio para ficar? - ele perguntou
- Vim ver as crianças. Do jeito que você é palerma, elas poderiam estar morrendo de fome...
- Se você realmente se preocupasse com isso, teria aparecido antes. 3 meses são mais que suficientes para uma criança morrer de fome.
- Sei disso...mas pelo menos comida você conseguiria arrumar, tenho certeza...
- Não preciso das suas ofensas. Responda: você veio pra ficar ou não?
- Não. Vim só ver o estrago que causei à sua vida.

Ele nem se deu ao trabalho de responder. Entrou no quarto e quando voltou, já chegou disparando o revólver que vinha trazendo na mão. Acertou três tiros no peito da mulher.

No chão, ela morria. E apesar da dor que devia estar sentindo, sorria.


4.10.02

Persistindo

Não,
Ainda não acabou.

Ainda não foi dito tudo
Ainda não matei a fome
Ainda não estou curado

Não,
Ainda falta um tempo

Falta crescer o bastante
Falta a vergonha na cara
Falta o pingo de senso

Não, ainda não
Quando acabar, eu aviso.