30.1.03

Chaos...


- Peixes são tão bonitos! Alguns são até gostosos...Mas como fedem no prato!
- Você fala isso porque nunca comeu carne humana minha filha!


Honestamente? Toda propaganda é trocadilho. E trocadilhos fedem. Prefiro piadas: como aquela da conversa entre um tijolo e a tijola, terminando o relacionamento. Eles eram muito unidos, mas havia um ciumento entre eles...

Eu odeio aquela velha coroca que mora na minha rua. Mas adoraria ser seu genro.

Eu sou um cara higiênico. Sempre que chego em casa, faço questão de lavar as minhas mãos...É quase compulsivo, as vezes fico horas lavando-as, com variados tipos de sabão. Mas por mais que eu as lave, nunca consigo tirar esse cheiro de civilização delas...

Não diga "não, nunca", esta noite, de novo. Estes somos nós. Lamente-se por isso, mas não queime suas fichas. Não essa noite. Não de novo.

Quando deletamos algo do computador, simplesmente acabamos com algo que não existe, algo que não é real. É o mesmo que acontece quando apagamos uma memória. Mas apagar uma memória é bem mais complicado: não temos uma tecla DEL no cérebro...

No fim, há razões que a própria razão desmerece...Isso não faz sentido, e ainda por cima é um trocadilho. Por isso, não acredite no que eu falo. Eu mesmo tenho isso como um costume salutar...

29.1.03

Prosa do Desespero


Eu quero escrever algo como quem vomita. Estertorar o que há de bom nas palavras, morrer com elas. Tingir de rubro-sangue as paredes: perdigotos e frases vermelhas manchando o alvo de muros que nos encerram. Quero o ódio da sintaxe.

Quero palavras que rasguem esse céu azul, que tirem as pessoas da praia com sua torrente de eloquência numbica. Não restariam surfistas na ressaca de oratória. Suas ondas seriam muito fortes.

Quero palavras que transformem as púberes garotinhas hedonistas e fúteis, eternamente abraçadas aos seus ursinhos de pelúcia e gemendo à noite por seus astros em posters de parede em putas. Quero a devassidão das metáforas e a maldade dos solilóquios.

Guerras seriam criadas com as prosódias proferidas pela minha boca. Quero ser o inimigo público número um, caçado por todos os filólogos empedernidos e policiais truculentos. Farei de seus próprios dicionários e armas meu escudo.

Quero as últimas palavras do condenado. Quero minhas as palavras moribundas.

28.1.03

Notícias Impopulares


Não compro os jornais atrás das manchetes. De nada me importam as decisões da equipe econômica ou as novidades nos fronts internacionais. Não. O que me interessa é o cotidiano, as notas de pé página, os tijolinhos culturais, os anúncios de produtos que não vendem, as notícias que ninguém quer ler. Quero a parte comezinha dos diários.

Como a notícia sobre a pobre D. Amália, notória em sua vizinhança pela sua enorme criação de gatos. Um dia, D. Amália sumiu. Depois de dias sem dar as caras na rua, os vizinhos – sempre preocupados!– resolveram arrombar a porta da D. Amália. Encontraram-na caída no chão. Estava morta.
Quando a vizinhança percebeu o sumiço de D. Amália, a primeira teoria sobre seu sumiço era de que seus gatos haviam devorado seu corpo enquanto a velhota dormia. Coitados. D.Amália morreu de indigestão: havia comido seus 37 gatos sem um motivo aparente.

Outra parte do jornal que achei muito interessante, mas que passou desapercebida pela opinião pública em geral, foi a reclamação da Associação de Moradores da Rua Dorival, (a AMADOR) num dos subúrbios da Central do Brasil. Há dias que um bueiro estava transbordando, tornando o lugar, já tão abandonado pelas autoridades, insuportável. O cheiro estava deixando os moradores da localidade enjoados, e grande parte dos habitantes da Rua Dorival não conseguia mais respirar direito. O inusitado da história é que bueiro estava despejando Channel n° 5 pelas ruas, e não esgoto não tratado.

Tem também o anúncio do Motel Boa Cama com sua incrível promoção: Pague o período de 4 horas entre 13:00 e 16:30 e ganhe um almoço executivo. “Porque no Boa Cama, comer são as DUAS melhores coisas do mundo!”.

É esse tipo de artigo que eu procuro nos jornais. O mundo é mundo há muito tempo para mim. Prefiro esses microcosmos desconhecidos, essas zonas fronteiriças ao nada, onde o que acontece só interessa porque não tem importância.

25.1.03

O Esconderijo do Verbo


O esconderijo do verbo está naquela frase que você não disse que deveria ter dito. Ele se escondeu ali, no meio da sua garganta, criando um nódulo temporário, impedindo que suas cordas vocais vibrassem. Você tinha a frase ali, pronta, como dizem, “na ponta da língua”...só que ela não chegou até a língua.

O verbo se escondeu no meio dos fios telefônicos, um pouco antes de você ouvir o clique seco do outro lado.

Sujeito esperto que é, o verbo cria suas distrações, se utilizando do mimetismo. Ele cria uma distração, no momento em que aparece o silêncio constrangedor entre duas pessoas que não sabem o que dizer uma para outra.

Mas o verbo também sabe ser amigo, ao evitar que você xingue seu patrão quando ele te sacaneia ou te humilha na frente dos outros. Você sabe que o certo seria mandar seu chefe pro meio do inferno, mas sem achar o verbo certo, você não manda em nada.

O esconderijo do verbo fica nas entrelinhas do tudo.

23.1.03

Indisposição

Acordou estranhamente indisposto. Não queria levantar da cama, apesar da sua mulher o chamar para o trabalho. Não estava doente. Só não queria levantar da cama.

Não queria levantar da cama para ir pro seu emprego maçante de concursado federal, repartição, carimbos, memorandos, litros de café. Não queria o beijo de despedida dessa mulher que dormia ao seu lado a vinte anos, não queria ouvir “saudadinha, benhê”, aquela frase que ele detestava e ouvia da estranha que dormia a seu lado há tanto tempo toda vez que ele saía de casa para o seu trabalho maçante. Nunca reclamara do seu trabalho maçante, nem da estranha que dividia sua cama, nem do “saudadinha, benhê”, nem de nada. Ele não reclamava nunca. De nada.

Não sabia como tinha virado esse parvo, esse moleirão, que aceitava todas as pancadas que sua vida lhe proporcionava todo dia. Ele era feliz, antes. Não lembra bem até quando ele tinha sido feliz. Fez um esforço mental para se lembrar.

Quando ele era criança, com certeza ele era feliz. Rodar pneu na rua, subir em árvore, soltar pipa. Uma vida simples e comum, de moleque. Ele se esforçou pra se lembrar de cada passagem feliz que teve na vida, desde sua mais tenra idade. Era o que ele podia achar de consolo para essa vida que o havia dominado.

E se lembrou de tudo. Tudo mesmo. Ficou na cama. Não atendeu aos chamados da estranha que vivia com ele. Não foi ao seu trabalho maçante, nem ligou para avisar. Ele estava vivendo de novo. Na sua cabeça apenas. Era o que restava para ele.

E lembrou de cada dia, cada hora, cada momento, com precisão. E assim ficou. Dias, semanas, meses.

Ele ainda estava se lembrando do que tinha vivido com 10 anos de idade e sua barba já estava enorme. Suas articulações estavam travadas. Ele não se levantou da cama. Durante anos. Médicos, espíritas, equipes de TV. Todos foram ver o homem que dormia por anos, sem razão aparente.

Eles não sabiam. A razão era uma só. Ele estava vivendo. De novo.

17.1.03

O Desencontro

O Desencontro é uma encruzilhada onde todos sabem chegar, mas lá não há placas. Segue-se o caminho que o viajor decide. Mas ele invariavelmente está errado.

Todos que chegam à Desencontro esperam algum tempo, no meio da rua, por algo que não sabem ao certo o que é. Alguns se preocupam inutilmente com um possível atropelamento, que nunca vai ocorrer. Os carros não passam em Desencontro. Esses, de espírito mais prático, são os que mais sofrem para sair de Desencontro. Deve ter algo a ver com sua fisiologia.

Milhares de pessoas vão todos os dias à Desencontro, mas, misteriosamente, nunca há mais de uma pessoa na sua encruzilhada. Saber o que fazer em Desencontro é algo que se deve fazer só.

Algumas pessoas vão mais de uma vez à Desencontro. Depois de passar por essa experiência nem sempre agradável, eles tentam fazer um mapa de seus caminhos, mentalmente, e fazem diagramas em papeis e os levam consigo, para conseguir achar uma saída rápida. É um trabalho desnecessário. Nunca se sabe a hora exata de ir à Desencontro. E – novamente eles – os de espírito prático, que carregam seus guias amarrados às suas roupas, ao chegar em Desencontro têm uma terrível decepção: suas plantas, relembradas e desenhadas em papel manteiga com tanto cuidado se transformam em desenhos circulares, de muito pouca ou nenhuma utilidade.

Muitos dizem que os caminhos que se seguem à Desencontro são sombrios. Outros dizem que Desencontro leva à uma reta tranquila, com um destino feliz. Cada um acha a melhor maneira de sair de Desencontro.

Mas todos devem ir lá um dia.

16.1.03

Amigos para sempre


Nunca soube qual era o grande problema em sumir com um corpo. Um corpo! Um corpo é feito de carne! Existem milhares de coisas que podemos fazer com carne para que ela desapareça sem deixar vestígios. Carne é mole, macia. Você pode queimá-la, amassá-la, derretê-la com ácido ou picá-la em pedacinhos. Pronto, lá se foi o corpo.

Nos filmes os assassinos sempre são pegos quando se acha o corpo. Bom, as vezes não é por acharem o corpo, mas se você pensar que sem corpo não há crime, entende-se a importância de se dar um sumiço no morto.

Comecei a pensar nesse assunto depois que havia me decidido a matar alguém. Essa primeira decisão já me tomou algum tempo. Tinha alguns pudores em cometer tal ato, mas no final das contas me resolvi. Se formos pensar bem, só vivemos uma vez e eu acho que devemos experimentar de tudo enquanto temos tempo.

Queria sentir a sensação de acabar com a vida de alguém. Vocês vão pensar que eu sou um sádico maluco ou apenas um psicopata. Não é nada disso. Considero-me até uma pessoa calma e pacífica. Mas a vontade de cruzar a fronteira – estabelecida pela sociedade – entre o bem e o mal me excitava bastante. Restava apenas saber como fazê-lo de modo perfeito. E isso implicaria, é claro, em não ser pego. A experiência de passar um tempo na prisão não me apetecia tanto.

Minha primeira ideia era a de simplesmente esfaquear alguém no meio de uma rua movimentada do centro da cidade e sair correndo. Sou um cara de estatura mediana, sem traços característicos. Se eu dobrasse a primeira esquina me misturaria na multidão e nunca mais seria visto. Abandonei esse plano ao ver que ele não tinha um pingo de sofisticação. Não seria diferente de dezenas de assassinatos cometidos pelos pivetes todos os dias. Meu crime teria que envolver algo de intelectual.

Pensei então que o principal seria escolher uma vítima perfeita. Tinha que ser alguém cuja suspeita do crime nunca recaísse sobre mim. Alguém que eu não tivesse o menor motivo para fazer qualquer mal. Confesso que não demorei muito para achar a pessoa ideal. Mataria meu melhor amigo.

Não fiquem chocados! Eu nunca consegui ter essa ligação afetuosa profunda com ninguém. Pra ser sincero, acho as pessoas, em sua maioria, completamente enfadonhas. E o César, apesar de ser o meu melhor amigo, era terrivelmente tedioso. Era o tipo de cara que se acha o máximo. Para ele, cada frase que saía de sua boca era uma verdade absoluta e inquestionável. Acho que o que mais me incomodava nele era que ele era muito parecido comigo. E se ele resolvesse ter a mesma ideia que eu? Eu seria uma vítima em potencial para seu crime perfeito.

O que me fez escolher o Cesar definitivamente foi uma das suas frases de efeito que ele falou numa conversa entre amigos. Não havia ainda escolhido meu morto perfeito, até que ele lançou a pérola:

– Escolham sempre bem seus amigos. Eles podem ser eternos!

A frase estúpida e a cara de superioridade que ele fez após tê-la dito foram sua sentença de morte. Ele não só seria uma vítima ideal como merecia morrer.

Restava saber como matá-lo e como dar um fim em seu corpo. Não seria cruel com Cesar. Não se esqueçam, ele era meu melhor amigo. Ele não tinha culpa de ser uma boa pessoa para ser assassinada. Resolvi então dar-lhe um presente de despedida: ele morreria no mar, que ele tanto adora. Por ser sempre meu amigo e me ajudar a realizar uma experiência importante para mim, ele ganharia um passeio de barco, um dos seus passatempos preferidos.

Precisava arranjar um álibi para mim. Saí falando que ia fazer uma breve viagem, que resolveria uns problemas na Serra e à noite estaria em casa. Fui à marina e aluguei um barco com um nome falso. Paguei pelo dia inteiro, comentando com o encarregado que iria dar uma volta pelo litoral e que pegaria uns amigos em outras marinas. Assim ninguém acharia estranho se eu saísse com um amigo e voltasse só. Depois liguei pro celular do Cesar, convidando-o para almoçar. Disse que tinha alugado uma lancha, que iríamos ter uma refeição marítima.

– Por que isso tudo? Feliz com alguma coisa?
– Estou sim, Cesar. Vou fazer algo que sempre tive vontade de fazer e nunca pude. E você vai me ajudar nisso. Mas só vou te contar dentro do barco.
– Olha...Não me venha com homossexualismo, viu...Tenho muito trabalho no escritório e não vou ter tempo de te enrabar.
– Você é um humorista de mão cheia, Cesar. Estarei te esperando na porta do seu prédio, à uma e meia.
– Tá bom, amoreco...


Esse papinho rotineiro só reforçou minha vontade. Estava tudo pronto. Eu finalmente me tornaria um assassino. E o que era melhor, impune. Peguei Cesar no trabalho e corri para marina. Ele estava curioso e eu, como era de se esperar, ansioso. Fui calado até a marina, apesar dos insistentes pedidos para que eu explicasse o porque daquele meu sorriso. Entramos no barco servi o que seria a última refeição do Cesar:

– Você chama isso de “almoço”?
– Para de reclamar. Pode ser fast-food, mas pelo menos você está comendo com uma vista maravilhosa...E nem pagou nada por isso.
– Ta bom, feladaputa...agora me conta logo o porque de tanta alegria...
– Ok...fique de costas...quero te mostrar uma coisa.
– Ih...vê lá o que você vai fazer!!! Agora, olha só...virando viado depois de velho..


Quando ele se virou, acertei com um remo na sua nuca. Ele desmaiou imediatamente. Vi que sua cabeça sangrava. Não queria que ele morresse assim. Enrolei sua cabeça com um pano e comecei a executar o que tinha planejado como seu grand finale. Uns vinte minutos depois, ele acordou.

– Caralho, seu filho da puta!!! O que foi isso!?!?!?! Ficou maluco!!! Me desamarra!!! Vou te encher de porrada!!!
– Não, Cesar, não vai não...agora eu vou te explicar a razão da minha felicidade hoje.


Eu havia o amarrado firmemente com uma corda. E junto, amarrei um belo peso, de uns 15 quilos, só por precaução. Contei pra ele com detalhes tudo o que já contei para vocês. Expliquei-lhe minhas motivações, meus motivos e até o porque da minha escolha por ele. Apesar da minha eloquência, ele não ficou tão entusiasmado com meu plano como eu fiquei. Mas não tinha esperanças quanto a isso. Empurrei Cesar, que se debatia como um peixe–espada capturado, até a borda da lancha. Resolvi lhe dizer umas últimas palavras.

– Cesar....eu gostaria de dizer que não é nada pessoal, mas no fim das contas, até é. Sabe com são as coisas: como você mesmo disse, devemos saber escolher os amigos.

Quando fui atirar seu corpo ao mar, não percebi que uma ponta da corda ficou agarrada ao meu pé. Ao cair no mar, fui junto com Cesar, que se aproveitando da oportunidade, enlaçou seus braços amarrados ao meu pescoço. Isso, podem ter certeza, não estava nos meus planos. Afundamos uma vez, e eu, tentando me soltar do abraço que me seria mortal, acabei trazendo Cesar à tona junto comigo. Ele se segurava no meu pescoço com todas as suas forças, e enquanto nos digladiávamos, pude ouvi-lo gritar, antes de afundarmos pela última vez:

– Os amigos podem ser eternos...

10.1.03

Fórmula para se criar tempestades


Para se irritar o dia, basta esperar que ele surja radiante e não se dê a mínima para seu esplendor. Ficar na cama, imóvel, fingindo mal disfarçadamente um sono que não existe, é a maior das afrontas para um dia de sol. Para que a provocação se torne mais evidente, espere o dia lhe lançar um olhar de soslaio e pisque, enquanto finge dormir. O cinismo desse ato vai acabar com todo o bom humor do dia, fazendo com que ele desenvolva nuvens, primeiro aquelas brancas, bonitas, no fundo do horizonte. Se você tiver paciência bastante para continuar com a encenação, até o meio da tarde, o que era um dia lindo se transformará em pavoroso dia de chuva.