30.4.03

O buraco



Apartamento na Zona Sul. O dia azul resplandecente do lado de fora não combina em nada com o ambiente. As paredes amarelas de tanta nicotina, os livros e papéis amontoados, o computador com seu zumbido perpétuo. No centro da sala, uma mesa, duas cadeiras, uma garrafa de uísque na metade. Antônio e Luis Cláudio estão em silêncio. O copo do Antônio meio cheio, o de Luis, meio vazio. Antônio esperou que esse momento nunca chegasse. Mas finalmente chegou.

- Você tem certeza, Cláudio?
- Claro, Tonico. Você sabe que sim. Ou você achou que eu estava brincando?
- Confesso que não pensei nada no momento. Eu nunca levo muito a sério as loucuras que você diz...
- Pois devia.
- É.

Luis acende o terceiro cigarro em menos de 10 minutos, ignorando a cara de reprovação do amigo. Antônio não conseguia acreditar no que estava prestes a testemunhar. Era uma loucura, mas ele havia prometido a Cláudio. E Cláudio sempre cobrava suas promessas.

- Eu tinha te falado, Tonico. E você prometeu estar comigo nessa hora. O prazo acabou.
- Mas....você não pode se entregar dessa forma, Cláudio. E o tratamento?
- O tratamento que se foda! Mais uma sessão e eu morreria mesmo..
- O médico te deu três meses...
- E hoje acaba o prazo. Eu sempre achei engraçados esses prazos dados pelos médicos. Eu sempre imaginei qual seria minha reação quando recebesse uma data limite como essa. Três meses! Na minha cabeça, no dia exato em que acabasse o prazo, eu cairia fulminado no chão. Não gosto dessas imprevisibilidades. Se eu me fosse antes, tudo bem. O doutor foi bem claro: no máximo três meses de vida. Não vou ficar brincando de moribundo. Ele me deu três meses e disso eu me recuso a passar por aqui.
- Não fale besteiras, Cláudio. Você pode melhorar...
- Há! Eu já passei da fase de me enganar, Tonico. Não fique se enganando também...

A promessa tinha que ser cumprida. Antônio achou a idéia ridícula na hora, mas o dia D havia chegado e Luis realmente cobrou a dívida. Enquanto via Luis acabando com mais um copo de uísque, Antônio se lembrou das coisas que já havia passado com Luis. Era seu melhor amigo, desde crianças. E agora Luis, com a maior das calmas, quer dar um fim nessa amizade de forma definitiva.

O que mais deixava Antônio revoltado nem era a desistência (covardia?) de Luis. Desde que soube da gravidade da sua doença, sabia que ele não aguentaria o tranco de viver o pouco que lhe restava de vida como um enfermo, um doente terminal. O que revoltava Antônio era a crueldade de Luis ao cobrar a promessa. Ainda mais esse tipo de promessa. Desistir da vida, ignorando todos os que o amavam já era um bruto egoísmo. Mas cobrar esse tipo de promessa, do seu melhor amigo, já era sadismo. Mas apesar da ingrata incumbência que recebeu, ele não discutiria com Luis. Eram seus últimos momentos. Se fosse para ser liberado da promessa, que isso partisse de Luis.

Luis encheu de novo seu copo, deu uma longa talagada, uma forte tragada no cigarro e tossiu.

- Cof, cof...Você sabe qual é a coisa que quanto mais dela se tira, mais ela cresce?
- Ih...já está bêbado?
- Claro que estou, merda...Responde logo...Se é que você sabe.
- Claro que sei. É o buraco.
- Isso. O buraco. Depois que eu decidi, por conta própria, arranjar um buraco só pra mim, tentei traçar um paralelo entre um buraco e a vida.
- E teve sucesso?
- Não...- rindo - Talvez a vida já seja um buraco, quando nascemos. Nós vamos a preenchendo, dia após dia, tentando dar um sentido a ela. Mas no final das contas, somando os dias, nos acabamos com o buraco. Nos enchemos o buraco/vida todo dia, até que não haja mais o buraco, até que ele esteja completamente cheio.
- Que besteira...
- É...eu sei...- rindo novamente.

Luis matou o que restava de uísque no seu copo em um gole. Antônio até acharia engraçada a cara dele depois de engolir a dose, estivessem em uma situação. Luis acendeu um cigarro na guimba do anterior e se levantou da cadeira.

- Está na hora, Tonico...- falou Luis, olhos marejados.
- Cláudio...
- Limpa essas lágrimas da cara...isso não pega bem, Tonico. Um homem velho desses chorando como uma criança. Dá cá um abraço e POR FAVOR, não me venha tentar me convencer a mudar de ideia de novo....
- Cláudio...isso é loucura!
- Eu sei....mas a vida é louca. Quem sabe se a morte não tem mais lógica...

Os dois se abraçaram. O abraço mais longo e fraternal que já deram.

- Tonico...Sei que parece crueldade te obrigar a fazer isso. Mas é o mais certo pra mim. E eu precisava do meu grande amigo, meu irmão aqui. Em tudo que eu fiz de importante na minha vida, sempre tive você do meu lado....Você entende?
- Entendo, Cláudio...
- Tudo bem...é a hora...A gente se vê um dia...
- Assim eu espero.
- Adeus, Tonico.
- Adeus, Cláudio.

Luis foi até a janela, abriu-a e olhou o céu e o mar por uns momentos. Ainda com o cigarro na boca sentou no parapeito da janela.

- É um lindo dia pra morrer...

28.4.03

Ode à vingança


Não vale a vida
Nada, não isso, mas não esmoreço
Cada dia, uma vingança
E sei que a esperança cobra seu preço
Te odeio, não morra ainda
Porque a cada seta de sol, a cada lança
Emitida, mesmo de longe, cria a chaga
Já natimorta, em convalescença infinda
Companheira constante, dorida

Te odeio sim, e nem o choro de dor
Em torrente, perene, apaga
O que temos de arcar como tributo
Não morra ainda, ainda há o que penar
Não havia o que proibir no fruto
Não havia no começo pecado no ar
Não havia a culpa no início da saga
Não havia mesmo sequer quem culpar
Se meu ódio não deixa de ser uma forma de amor

23.4.03

Umbigo


– Pois agora o que eu quero é cuidar somente de mim...
– Muito altruísta da sua parte essa decisão.
– Não vejo porque você acha isso tão errado! Quero um tempo pra só pensar em mim. Isso é egoísmo?
– Bem, pelo Aurélio, essa é a definição de egoísmo...
– Você não me entende mesmo...
– Entendo, entendo. Você não quer mais saber de ninguém, fazer favores pra ninguém e isso inclui me deixar sem o jantar e abandonar seus deveres de esposa.
– Deveres de esposa?!?! Em que século você está?
– Tá bom...me expressei mal. Mas que você podia fazer o jantar, podia.
– E porque VOCÊ não pode fazer?
– Ahn...minha total inépcia na cozinha é uma boa razão?
– Não faça dramas. Você não é tão ruim assim cozinhando. E se você achar mais fácil, tem miojo no armário...
– E agora miojo é janta?
– Você está ou não com fome? Quem tem fome come o que tem...
– E de que adianta eu trabalhar e comprar carnes variadas, hortifrutigranjeiros e temperos mil que VOCÊ pede se eu tenho que chegar em casa e ter que me virar sozinho no fogão ou então comer macarrão instantâneo?
– Você pode fazer a comida que você quiser...Quando eu cozinho, você não me ajuda em nada, e nem pensa em se oferecer. E eu também trabalho e ajudo nas compras. Não jogue isso na minha cara...
– Olha, vou ser sincero...Não entendi nem gostei nada dessa sua idéia de “cuidar só de você”.
– Eu preciso desse tempo! Eu quase não faço nada do que eu gosto. Faz meses que eu não leio um livro! Eu chego do trabalho e tenho que cozinhar pra você...
– E eu faço o que eu gosto?!?! Até parece!!! Chego do trabalho morto também e...
– Você ainda tem o seu futebol na quarta...
– Opa! Não meta o futebol no meio da conversa! Minha pelada é sagrada!
– Tá vendo!!! Você tem sua “sacralidades”...eu também quero ter!
– Mas tinha que ser na hora do jantar isso?!?!?
– Não...pode ser às 3 da manhã, se você achar melhor...
– Quem está fazendo drama agora?
– Olha, não estou pedindo seu consentimento. Estou comunicando. Minha decisão está tomada...
– Que legal isso...Por que você casou comigo? Pra brincar de ditadora?
– Não...casei com você porque te amo. Mas preciso cuidar mais de mim. Agora quero pensar só no meu umbigo...apenas nisso...
– Hmmmmm...
– Que foi?
– É por isso? Por causa do seu umbigo?
– É. Só vou pensar no meu adorável umbigo...
– Nisso eu concordo...Seu umbigo é mesmo adorável...
– Você acha?
– Claro....olha só...um buraquinho tão delicado merece mesmo um cuidado especial...Passaria dias só olhando pra ele...
– Só olhando?...Pode tocar se quiser...
– Boa idéia....

(Smack)

– Hmmm....olha...o que você quer comer?
– Que tal aquele bifinho com fritas?
– Tá bom...acho que você está merecendo....
– Só isso?
– Só...não quero abusar...anh...pode ter uma saladinha?
– Tudo bem...Eu faço, meu amor...
– Quer ajuda?
– Não....você é péssimo na cozinha...

21.4.03

A entediante rotina de um morto vivo


Eu morri no dia 23 de fevereiro de 1996, em uma noite que ventava muito, se me lembro bem. Confesso que não guardei na memória todos os detalhes do dia do meu passamento. Peço que não me julguem por isso. Se vocês pensarem bem, não aparecem muitos defuntos com uma memória de elefante por aí.

Acontece que eu continuo vagando por aí, sem que minha morte tenha alterado muito minha rotina. Tenho o mesmo emprego, os mesmos amigos e faço quase tudo que costumava fazer quando vivo. Claro que como morto eu deixei de fazer algumas coisas que eu não gostava. Agora certas obrigações que eu tinha não faço mais. Nem morto!

Rá! Eu não era tão irônico assim quando estava entre os vivos....

O que mata em estar morto (há!) é o tédio. Meus dias, que nunca foram muito excitantes mesmo, agora estão mais parados ainda. Para mim, eles passam sem diferença entre um e outro. É como viver – viver? – reeditando o calendário, com dias, semanas, meses, anos iguais. O que é novo não me alegra e eu desprezo. O que é velho já me encheu a paciência e não presto mais atenção.

Talvez isso seja o inferno. Mas o que mais me amedronta é que, se céu e inferno realmente existem, eu não mereceria o castigo eterno. Sempre fui uma pessoa boa. Bom, basicamente boa. Nunca fiz mal a ninguém. Posso até ter desejado o mal pra algumas pessoas, mas isso não conta, não é? Ou pelo menos não deveria contar.

Então, se eu não mereço a danação perpétua, devo estar no paraíso. E se isso é o paraíso, seria melhor ter feito algum mal enquanto vivia. Pelo menos ia me divertir mais naquela época. Se eu for um defunto sortudo, talvez eu esteja no purgatório.

Mas eu nunca acreditei nessas transcendentalidades esotérico–religiosas. Acho que a resposta para minha inusitada situação é uma só: eu morri e esqueceram de me enterrar.

15.4.03

Os três goles na morte


Eu estava viajando sem destino pelo interior do país, numa época em que estava com um espírito aventureiro. Ia sem mapas ou muita grana, pegando um ônibus ali, arrumando uma carona aqui, e dormindo onde podia. Levava comigo uma barraca e quando estava em lugares muito isolados, a solução que eu tinha era acampar para passar as noites.

Às vezes, a solidão me incomodava. Passava dias sem ver sequer uma pessoa, e sentia falta de alguém para conversar. Apesar de uma das razões da viagem ser dar um tempo da humanidade, depois de alguns dias viajando sozinho ficava tedioso ficar apenas lendo e olhando as estrelas.

Mas então, numa noite de céu limpo, quando estava no interior de Minas, apareceu no meu acampamento uma senhora, já bem idosa. Ela estava com muita sede, e mal conseguia falar
de tão cansada. Eu a acolhi, ofereci um pouco da minha água e preparei uma cama para que descansasse um pouco. Em uma situação normal, eu faria tudo isso a contra gosto. Mas depois de dias sem encontrar viv'alma, sua aparição tinha sido benéfica, para quebrar a rotina de viajante solitário.

Depois de algumas horas deitada, a velha senhora já havia se recuperado. Pude ver sua real fisionomia depois do seu descanso. Sua cor, de um pardo fosco, tinha voltado, estava mais relaxada. Pela sua face enrugada, parecia estar por volta dos sessenta anos. Trajava umas roupas meio esfarrapadas, no estilo cigano. Talvez fosse mesmo uma dessas loucas que vivem de esmolar e ler mãos nas ruas. Deve ter ser perdido do seu grupo e, caminhando a esmo, chegou até minha barraca.

Ao acordar, a velha cigana estava bem disposta, e com vontade de falar. Como eu, devia estar há muito tempo sem encontrar alguém.

– Muito obrigado, meu filho. Nem sei como lhe agradecer.
– Não precisa. Fiz o que qualquer um faria..
– É justamente disso que eu tenho dúvida, filho. Quem ajudaria uma pobre velha como eu? As pessoas têm muito preconceito com os ciganos...


Não achei conveniente falar que minhas intenções não eram completamente altruísticas. Mais do que ajudar a senhora, eu precisava ouvir o som de uma voz humana. E a presença dela, totalmente inesperada, nem parecia ter sido pelo acaso. Justo quando eu queria conversar com alguém, surge uma pessoa com muita disposição para falar. Teria sido sorte?

Ela queria me agradecer de alguma forma. Mas na situação em que ela aparecera e nos andrajos que lhe cobriam o corpo, ela não parecia ser uma pessoa que pudesse pagar por qualquer coisa que seja.

– Você já deve ter percebido que não tenho posses...e mesmo que tivesse, elas não seriam suficientes para pagar o favor que você me fez. Eu estava quase morrendo de sede e não aguentaria muito mais tempo caminhando. Você me salvou a vida.
– Não é para tanto, senhora. Eu não deixaria nunca uma pessoa na situação em que se encontrava sem ajuda.
– Você é um bom rapaz...O que eu posso fazer para te agradecer é contar sobre os três goles na morte...
– “Três goles na morte”?
– Isso...O que vou te contar agora é uma lenda muito antiga do meu povo, mas que ainda pode te ajudar no futuro...


Ela não iniciou seu relato de pronto. Pediu para preparar um chá pra nós, com umas ervas que tinha no bolso. Parecia que propositadamente criava um clima de mistério. Pos a chaleira no fogo e enquanto as ervas estavam na água, começou a falar.

– Todo homem tem seu destino traçado desde o dia do seu nascimento. Sua linha da vida acaba no dia em que ele toma o terceiro gole na morte...
– Como assim?
– O primeiro gole é tomado no dia em que se nasce. A morte começa a se aproximar de todos no momento da nossa primeira respiração. Isso lhe parece lógico?
– Claro, entendi...para morrer, basta estar vivo.
– Isso mesmo. Quando saímos do ventre de nossas mães, já saímos com sua primeira marca, nesse momento tomamos o primeiro gole da morte.
– E o segundo.
– O segundo é mais difícil de precisar o momento. Pode ser naquela hora em que escapamos de uma situação de forma miraculosa. Um acidente que escapamos por pouco, uma doença que se cura subitamente...Não existe uma idade certa para isso acontecer. Mas sempre acontece.
– E o terceiro? Quando tomamos?
– Também não existe um momento certo. Mas, assim que estamos desenganados, prestes a abandonar esse mundo, a primeira face que vemos em nossa cabeça é o rosto da pessoa que nos serviu o terceiro gole. Algumas pessoas do meu povo acreditam que é a própria morte que nos dá a bebida. Nunca percebemos na hora que bebemos o terceiro gole da morte, e nem sempre morremos de imediato. Mas na hora da verdade, em que estamos quase a morrer, nós temos a clara noção do que acontece...Após o terceiro gole, você está marcado.


Nesse momento, a velha cigana tira a chaleira do fogo e nos serve o chá que preparava. Perguntei o que eram aquelas ervas, e ela me disse que eram folhas fortificantes, que seriam boas para o resto da nossa caminhada.

O chá era bom, tinha um aroma forte, mas seu gosto era agradável. A bebida quente parecia ser também calmante, pois me senti sonolento alguns minutos depois. Aticei o fogo, arrumei a minha cama e a da velha cigana e fomos dormir.

Tive um sono agitado durante a noite. Sonhei que estava morrendo afogado, numa cena bem parecida com a que realmente tinha acontecido, quando eu era criança e fiquei preso no ralo da piscina do clube. Fiquei muito tempo submerso, e só fui salvo porque meu irmão mais velho sentiu minha falta no meio das crianças que brincavam na água. O salva vidas do clube disse que tinha sido um milagre....

A palavra milagre ecoando na minha mente me fez acordar. Eu ofegava e, apesar da fria manhã de julho, estava suando. Olhei pro lado e a cigana havia partido. O fogo havia se apagado, sobravam apenas as brasas ainda incandescestes e a chaleira ainda com um pouco de chá que a velha havia me servido.

Confesso que estava um pouco impressionado com a história que a velha cigana me contou. Mas depois de lavar o rosto, vi que tudo não passava de uma superstição de uma idosa senil. Achei até divertido meu ligeiro receio. Devia estar na hora de voltar para civilização. O tempo solitário havia me deixado meio confuso. Desmontei o acampamento, juntei minhas coisas e parti, em direção à rodovia de onde eu havia chegado. Me perguntei pra onde teria ido a velhota...seu rosto pardo e encarquilhado não me saia da cabeça.

O tempo seco de inverno deixou o barro do caminho poeirento, e enquanto eu arrumava minhas coisas notei que meus pés deixavam profundas pegadas no caminho. O que eu achei curioso, depois de pensar um pouco, é que só haviam as marcas do meu sapato na terra. Não consegui ver por que caminho a velha tinha partido. Seus pés não deixaram rastros.

14.4.03

Sessão da Tarde


Ultimamente vinha tendo cada vez mais a sensação de déjà vu. Era sempre ao chegar ao trabalho e ligar o computador. Colocava os fones pra não ouvir o barulho dos seus “colegas de trabalho”, pegava suas pendências do dia anterior, começava a resolvê-las e pronto. Aquela sensação de “já vi isso antes” o atormentava.

Colocou aquele disco do Tom Jobim que adorava, abria sua planilha não terminada de ontem e começava a prever tudo o que faria, como se sua vida fosse um filme já visto. Detestava isso. Era assim na maior parte do dia. Ia almoçar no seu restaurante preferido, com seus amigos e ainda estava na sua “Sessão da Tarde” pessoal. Tudo, tudo igual.

Ia pra casa, metrô lotado, caminhada até em casa, fazer a janta, ver um filme qualquer, ver seus mails antes de dormir.

Acordava no dia seguinte, chegava ao trabalho, colocava os os fones pra não ouvir o barulho dos seus “colegas de trabalho”, pegava suas pendências do dia anterior, começava a resolvê-las e pronto. Aquela sensação de “já vi isso antes” o atormentava novamente.

Colocou de novo aquele disco do Tom Jobim que adorava, abria sua planilha não terminada de ontem e começava a prever tudo o que faria, como se sua vida fosse um filme já visto. Detestava isso. Era assim na maior parte do dia. Ia almoçar no seu restaurante preferido, com seus amigos e ainda estava na sua “Sessão da Tarde” pessoal. Tudo, tudo igual.

Ad infinitum...

12.4.03

Liberdade


A história de Dininho não era diferente da história de tantos outros. Filho de família humilde, morador de favela, más companhias. Réu primário, condenado a cumprir pena de 2 anos.

Era um bom rapaz. Como dizem foi “mal orientado”. Era daqueles que se arrependem e que não têm a intenção de voltar para cadeia depois que conseguisse a liberdade. Dininho tinha a intenção de pagar sua “dívida com a sociedade”, apesar de não saber como cobrar a dívida que a sociedade tinha com ele. Sabia as regras do jogo e ia segui-las.

Então, faltando três meses para o fim da sua pena, estourou a rebelião no presídio. Os presos fizeram reféns, criminosos mais influentes mataram seus rivais, houve fogo nas celas Dininho foi poupado. Era sangue bom, não tinha problemas com ninguém.

Os rebelados conseguiram expulsar os carcereiros e quebrar as pesadas portas gradeadas dos corredores do presídio. Sem os guardas e antes do batalhão de choque chegar, era a chance perfeita para fugir. Muito foram. Dininho parou, em frente do último portão da cadeia, escancarado, com vários detentos correndo por ele. Estava a um passo da liberdade. Ou seria a um passo do regresso? Sua pena estava no fim. Se fosse pego, não seria mais primário e quando voltasse pra gaiola sabe lá quanto tempo ficaria por lá.

–Você não vem, Dininho?

O chamado das ruas, o vento fresco que não tomava há mais de um ano e até a vontade de mandar a sociedade tomar no cu eram apelos muito fortes. Mas não. Virou as costas e voltou para sua cela. No meio do caos que se encontrava, estava até feliz. Fez o certo.

Ainda estava no caminho da sua cela quando a polícia chegou, pra variar, atirando. Uma bala acertou Dininho pelas costas. Não conseguiu nem chegar a enfermaria. No fim das contas, de uma forma cruel, conseguiu sua liberdade.

11.4.03

Hábitos salutares


Acordou ao meio-dia, tendo dormido apenas algumas horas e acendeu um cigarro, antes de sair da cama. Quinta-feira, e estava novamente de ressaca. Fumou o cigarro ainda deitado, tentando se lembrar, sem sucesso, do que tinha feito na noite anterior. Amassou a guimba do cigarro no cinzeiro repleto de filtros de semanas e se levantou.

Tinha que tomar um banho. Não sabia se o cheiro que sentia vinha dele ou do seu quarto, mas por via das dúvidas, ia se lavar. Olhou-se no espelho e as olheiras e a barba quase cheia denunciavam o pouco cuidado que vinha tendo com si mesmo. Debaixo do chuveiro quente, a tosse habitual, acompanhada do espesso pigarro, não o impressionava mais. Viu o muco correr pelo ralo. A comparação com a sua vida foi inevitável.

Saiu do banho, fez a barba e procurou algo para comer na geladeira. Um pedaço antigo e ressecado da torta de queijo que havia comprado nem lembrava quando era a única coisa que ele arriscaria comer.

– Quem arrisca não petisca...mas eu não sou louco de arriscar minha saúde petiscando isso... – refletiu. Resolveu colocar uma calça, um tênis e ir tomar um café na padaria da esquina.

(***)

Às seis da manhã ela já havia acordado, tomado banho, tido seu desjejum e estava pronta para academia. Faria uma hora de exercícios para, às 7:30, estar no seu trabalho voluntário com crianças carentes. Sempre fazia esse serviço quando estava de férias. Era uma forma de agradecer a vida maravilhosa que tinha: Tinha saúde, um trabalho gratificante e muito bem remunerado, e uma família amantíssima que a adorava. Era feliz.

Talvez até fosse mais feliz se tivesse um namorado. Mas nem isso a abalava. Sabia que na hora certa ia encontrar o cara certo. Não precisava de pressa. Tudo em sua vida era assim, parecia que caía do céu.

Tomou um banho na academia e foi, resplandecente, para o orfanato onde fazia seu trabalho voluntário. Se as crianças soubessem como elas a ajudavam, veriam que o que ela fazia por elas era até pouco. Talvez, quando encontrasse sua alma gêmea, adotasse uma delas. Talvez duas.

Depois de dar o almoço para criançada, pensou em sair e comer algo. Naquele dia não dera sorte: a comida do orfanato não era das suas preferidas. Decidiu ia a padaria ali perto, comer. Apesar de ser bem de vida, preferia as coisas simples. Comeria algo no balcão mesmo, a rotina de almoços em restaurantes caros não era seguida quando estava de férias. Era quinze para uma da tarde.

(***)


Depois de ter engolido a média com pão na chapa, ele ainda sentia fome. Na verdade, foi a imagem do carré com batatas coradas que acabava de sair da cozinha da padaria que o conquistou. Não resistindo, pediu um PF com a iguaria, acompanhado de farofa e arroz. E uma cerveja, pra acabar com sua ressaca.

– Adeus ressaca. Bom dia, azia... – pensou.

Comia com certa avidez, até que notou a presença da garota ao seu lado. Repentinamente, sua avidez mudou de objetivo: a garota era realmente muito bonita. Reparou que ela também o olhava. Não sabia ao certo o que significava a expressão que tinha no rosto. Poderia ser um olhar de interesse ou de curiosidade. Calculou as chances que tinha de conseguir traçar a menina. No seu estado, achou que eram poucas. Decidiu voltar suas atenções ao prato à sua frente. Até que, surpreendentemente, ela falou com ele:

– Oi...Posso te fazer uma pergunta?

“Ah...aí é demais...essa está no papo”– foi o que imaginou, na hora.


(***)


– Claro, pode fazer....
–Seu nome não é Ricardo?


Ela quase desistiu de manter um contato com o sujeito, depois da cara de galã bêbado feita por ele. Ela detestava esses homens que toda vez que falavam com uma mulher pareciam precisar seduzi-las ou caso contrário teriam sua reputação jogada na lama. E se o sujeito com cara de sono que estava a seu lado realmente fosse quem ela pensava que era, a situação ia ser bem pior. Se o pretenso Ricardo continuasse com aquela cara de Rodolfo Valentino do subúrbio, ela ia acabar caindo na gargalhada. Esse constrangimento ia ser até pequeno depois dele descobrir do onde ela o conhecia. Ela notou que ele não fazia a menor idéia de que eles já se conheciam. E o incrível é que eles se conheceram na noite anterior! Quem pode ser tão esquecido assim?

(***)

– É isso...ahn...eu a conheço? Me desculpe, eu não consigo me lembrar...
– Sério? Isso me surpreende. Bom...Meu nome é Renata. Não lembra mesmo? Nos conhecemos ontem à noite...


Isso era mal. Ele tinha que beber menos. Não conseguir se lembrar dessa mulher linda já era ruim, mas esquecer dela a conhecendo a menos de 24 horas era péssimo. Tinha que reverter essa situação. Se bem que a o sorriso dela era promissor. Sua cara de sedutor estava funcionando. Onde tinha ido ontem mesmo? Recordava-se de começar a noite passada nessa mesma padaria, esquentando as máquinas com um conhaque, junto com dois amigos. Depois foi até aquele restaurante da moda com eles, jantaram com a companhia de duas garrafas de vinho. Como a casa de um dos amigos era perto, tiveram como sobremesa um baseado de ótima qualidade, para ajudar na digestão. Daí foram até...até....

Claro! Foram até aquela boate na Zona Sul. Nessa hora, Ricardo já estava mal, disso ele conseguia se lembrar. Também tinha certeza que havia encontrado alguns outros amigos, e melhor, amigas por lá. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguia se lembrar da Renata.

(***)

– Ah, Renata! Claro!!! Foi naquela boate no...
– Não, Ricardo...Não foi em uma boate. Foi depois da boate...Você estava com uns amigos. Estava meio mal, até.



O cachaceiro não se lembrava mesmo. Relembrando o estado em que ele estava, Renata até achou normal a amnésia. Ela estava começando a achar tudo aquilo hilário. Um bebum que ela havia encontrado ontem, que não se lembrava dela, estava descaradamente lhe cantando em uma padaria. A cena era surreal. Ela tinha certeza que quando ele se lembrasse de que maneira se conheceram, desistiria da conquista. Ela estava de férias hoje. E ontem só se encontraram porque ela estava trabalhando.

(***)

– Olha, vou ser sincero. Estava completamente bêbado ontem e...
– E percebi isso ontem..
– a discreta risada o deixou mais confiante
– É.. – disse sem graça, se aproximando – Eu estava meio mal ontem...Por isso eu não lembro de você. Isso nunca aconteceu comigo antes...ainda mais com uma mulher bonita como você....
– Você disse isso ontem pra mim. Espero que “Nunca aconteceu comigo antes” não seja um bordão seu.
– Ahn...não é não. Pode ter certeza disso.
– Na situação em que nos encontramos, é bom mesmo...Afinal de contas, eu te vi numa cama....


DEUS!!! Teria transado com ela?!? E pior, teria broxado com uma mulher dessas?!?!? Ele não se perdoaria nunca se isso tivesse acontecido. Onde foi? Motel? Na casa dela? Estava ficando desesperado com sua falta de memória. Bom, agora isso nem o preocupava tanto. Já a fama de impotente...

–Numa cama??? Eu não me esqueceria de estar numa cama, no mesmo lugar que você, nunca! Onde nos encontramos?
– Em Copacabana. Isso refrescou sua memória?


EM COPA?!?!?! Meu Deus...Ela era uma garota de programa!!! Como pode?!?! Tão bonita assim? Ricardo nunca teria grana pra pagar uma noite com ela. Teria sido algum amigo seu mecenas ontem? Como ele iria pagar isso depois?

(***)

– Em Copa? Onde? Como foi?
– Bom...eu estava trabalhando. E seus amigos apareceram te arrastando, praticamente.
– Me arrastando?
– Isso. Digamos que você não estava em condições nem de andar.
– E ainda assim você me levou pruma cama?
– Era o lugar mais indicado pra você ficar, no estado em que estava. Depois de descansar um pouco, seus amigos foram buscar você.
– Me buscar? Onde? Eles te pagaram?
– Como assim, “me pagaram”? Meu trabalho é gratuito...
– Gratuito?!?!? Como assim? Você não cobra?!!?
– Claro que não!!!
– Nunca vi isso! E o motel? Quem pagou?
– Motel?!?!!? Que motel?!?!?
– Ué? Não fomos prum motel?!!? Fomos até sua casa? Onde estava a cama que você me deitou?
– Minha casa??? Cama!?!?! Acho que me expressei mal...
– Não, não, sem problemas...só queria saber se você teve algum prejuízo ontem...
– Ahahahahahahah...
– O que foi??? Se você está rindo porque ontem não dei no couro, te aviso que em meu estado normal...
– Ricardo...cale a boca! Sua sorte é que eu estou de bom humor...Senão ficaria profundamente ofendida...
– Ofendida com o que??? Você não é uma garota de programa?
– CLARO QUE NÃO!!! Te encontrei em Copacabana, na madrugada, estava trabalhando e te coloquei numa cama. Estava passando numa ambulância pela Barata Ribeiro, voltando pro meu trabalho e seus amigos me chamaram porque você estava em coma alcoólico. Eu te coloquei numa cama, que por estar numa ambulância, se chama maca. Não, Ricardo, eu não sou uma puta. Eu sou médica...
– Médica?!?!? Ahn....porra..desculpa!!! Merda...que mancada!!! Nem sei onde enfiar minha cara...
– Que tal numa reunião do AA???


(***)

Sob as gargalhadas da Renata, Ricardo pagou sua conta e saiu de fininho da padaria. Seu carré com batatas, delicioso, ficou pela metade. Pela primeira vez viu que sua relação com a bebida estava ficando complicada. Iria dar um jeito nisso.

Mas antes, uma cervejinha num bar ali perto, que ele não era de ferro.

9.4.03

O conselheiro



Gostava de brincar com listas telefônicas. Passava horas folheando-as, sentindo a textura do seu papel vagabundo e sujando a mão com sua impressão barata. Escolhia algum número, de forma aleatória, e ligava. Não importava a hora. As vezes, às duas da tarde; outras vezes, às três da manhã. Não, não passava trotes. Ele dava conselhos para as pessoas.

- Ao acordar, viva!

Era isso e desligava. Depois de falar seus conselhos nem sempre compreensíveis à primeira vista, batia o telefone. Nem dava tempo de ser ofendido. Sentia que fazia um favor aos escolhidos. Até invejava-lhes a sorte. Ele próprio, que ajudava tanta gente, não tinha ninguém que para lhe oferecer uma palavra amiga. E era um único contato. Depois de ligar para os números, fazia questão de não os anotar, nem mentalmente. Sua ajuda terminava ali.

Um dia, após ter feito uma ligação às 10 da noite, o telefone dele tocou. Era uma moça do outro lado.

- Eu falo com o número 2222-3333?
- Isso...Com quem deseja falar?
- O que significa "Abrace a si mesma amanhã"?
- Ei?!?!?! Como você descobriu meu número?
- Eu tenho bina...Quem é você? Por que ligou pra mim? E o que significa isso?


Desligou o telefone. Não estava em suas prerrogativas explicar seus conselhos.Cada um dos agraciados que interpretassem seus conselhos como melhor os aprouvesse. E tinha sido muita audácia da moça, retornar a ligação. Mas não tinham se passado dois minutos e o telefone tocou novamente.

- Não vai me explicar?
- Não tenho o que explicar...use o conselho se achar que deve...
- Que conselho? Aquilo que você me disse era um conselho?
- Era...entenda ele como quiser.


Desligou novamente. E novamente, momentos depois, o telefone tocou. Atendeu. Não conseguia evitar. Era completamente contra deixar o telefone fora do gancho. Achava que, se tinha uma linha telefônica, era para ser usada. Ele desligou uma outra vez, e mais outra, e ela sempre retornava em pouco tempo. Na quarta ligação, conversou com ela. E a conversa até que foi indo bem. Descobriu que ela morava só, como ele e que - coincidência das coincidências! - ela trabalhava na companhia telefônica.

No dia seguinte, fez umas duas ou três ligações e seu telefone tocou. Era ela. Dessa vez, não só não desligou, como ficou conversando com ela durante um bom tempo. Falou coisas sobre a vida dele para ela e ela deu a ele uns dois ou três conselhos. Foram dormir era quase dia claro. Logo ele, que nunca tinha feito uma ligação com mais de 5 segundos, passou horas conversando com alguém.

Acordou pensando nela. Pensou em pegar sua lista telefônica, mas desistiu. Ela poderia tentar falar com ele e a linha não poderia estar ocupada. Esperou o dia inteiro, angustiado. Não sabia o que fazer. No começo da noite, seu telefone tocou. Correu para atender.

- Oi..
- Oi!!!! Esperei você me ligar o dia todo....
- Eu estava no trabalho. Lá eu não posso te ligar...


E ficaram outras várias horas no telefone. Ela já sabia tudo sobre a vida dele. E sempre lhe dava conselhos, que ele achava muito úteis. Uns dos conselhos que seguiu foi o de abandonar o hábito de fazer ligações para estranhos. "Já ninguém pediu seus conselhos, não há motivo para você dá-los!", ela dizia. Ele achou certo. Assim acabou sua vida de conselheiro anônimo.

Mas algo estranho aconteceu. Depois de conhecê-la, passava horas diante do telefone, esperando por uma ligação dela. Ela quase sempre ligava, mas quando ela não podia, ele não sabia o que fazer. Ficava louco, querendo saber o que ela acha que ele deveria fazer. Depois de anos de conselhos dados à estranhos, agora, dependia dos conselhos de uma amiga - já a considerava assim - para fazer qualquer coisa. E, o mais irônico de tudo: ele nem tinha o número dela.

2.4.03

A unha encravada da madame


A madame morava só em um apartamento em Copacabana. Tinha um periquito em casa, sua companhia quando a empregada não estava. Seus filhos? Esses tinham voado faz tempo.

Morava só desde que havia ficado viúva. Não se daria ao desfrute como suas vizinhas da mesma idade, que assim que ficavam sós na vida, procuravam logo outro homem para lhes acompanharem até a morte. Amava muito seu falecido esposo para fazer isso. Não reclamava da solidão. Mas a sentia.

A solidão, para ela era como uma unha encravada. Incomodava, mas não morreria por causa disso. Tivera uma boa vida. Se divertiu muito, teve dinheiro e o gastou da melhor forma possível. Namorou, casou, teve filhos. E, assim é a vida, as coisas começaram a envelhecer e se deteriorar. Como sua família, seu bairro, sua cidade. Viu seus filhos – muito bem criados – partirem, assim como seu marido, depois de longos 40 anos de casamento. Viu a decadência da sua Copacabana, assim como do Rio de Janeiro em geral com dor. Nem tinha mais vontade de sair de casa. Só dava suas voltinhas na praia para não apodrecer em casa. Mas nem disso fazia questão. Nunca sabia quando poderia ser assaltada ou levar uma bala perdida na cabeça.

Sinceramente, ela gostava da sua “unha encravada”. Se sentia algum incomodo por ser mais uma velhinha solitária entre tantas, era porque tinha com o que comparar sua atual realidade. Sua vida agora só era triste em relação à sua vida no passado. Ela preferia ser feliz com suas recordações a ser triste com seu dia-a-dia. E quando estava sozinha – ah! – aí sim, ela tinha mais calma e tranquilidade para lembrar de tempos mais alegres. Sua “unha” era o que a fazia, se não se sentir viva, sentir que já teve uma vida.

Ela fazia pouco das suas vizinhas, que tinha pavor de morrerem sozinhas. Como se quem quer que fosse que elas arranjassem não fossem só uma muleta, alguém para segurá-las e serem segurados, indo juntos para um fim sem um terço do brilho que tiveram no passado. “Antes só que mal acompanhada” era seu lema agora.

No fim das contas, a solidão era sua melhor companhia.