31.5.03

Pelica


Sou mulher e você se aproveita da minha pressuposta fragilidade.
Você me agride.
Você me fere a cada conquista efêmera sua, tão elaboradas, que só servem para alardear sua colossal empáfia diante dos amigos do seu clã masculino. Você não imagina o quanto isso me mina, como vejo minha vida minguar a cada aventura sua.
Mas você é o homem.
E por isso, você comanda, você manda e desmanda. Você é o senhor de um castelo que deveria ser partilhado e não dominado. Não esperava por esse amor vassalo.
E nas noites em que você dorme em camas desconhecidas e baratas, eu não durmo. Eu não vivo, fico suspensa num labirinto de dúvidas. E mesmo assim, insisto em procurar a saída.
Eu sou mulher.
E tenho a pecha de fraca. Você ignora que fraqueza maior é a sua covardia. Covardia ao me machucar, até fisicamente. Mas eu quero a volta.
Me bater é fácil. Você é o homem, o macho forte que tudo pode, que tudo faz. Mas não quero mais essas derrotas impostas. Quero a chance de lutar. E isso, só você pode me ceder.
Me bata. Mas quero o desafio do revide.

Só me bata com luvas de pelica.

29.5.03

A carta de apresentação


Jonas nunca foi brilhante. Era novo, e nos seus tenros e mal vividos 19 anos ainda era o que se podia chamar de “marinheiro de primeira viagem” nessa coisa de viver. Não que isso o incomodasse. Com os pais que tinha – donos de uma conta bancária mais polpuda que a de alguns países africanos – não tinha mesmo com o que se preocupar. Um dia em que sua rebeldia sem causa estava mais atacada, pegou o dinheiro da sua mesada e comprou um apartamento. Decidiu começar vida nova, independente, sem depender dos seus pais para nada. Nada, além do sustento, claro.

A primeira coisa que ele precisava era, óbvio, alguém que o alimentasse, vestisse e mantivesse seu apartamento habitável. O anúncio procurando uma diarista foi de uma eficiência absurda. Jonas não esperava que o retorno fosse tão imediato. No seu parco entender, ele não imaginava que domésticas lessem jornais. Para algumas das candidatas à vaga, ele até perguntou se tinham esse hábito. Algumas ficaram ofendidas com a dúvida. Ele não era das pessoas mais delicadas, e sutileza não era umas das suas qualidades mais evidentes.

– Então você lê jornais? Surpreendente! Mas só deve ler os classificados, não? – e fazia uma cara de pasmo, o que no final das contas era o que mais ofendia as candidatas.

Depois de quatro ou cinco respostas meio tortas, Jonas se mancou a parou com a pergunta. Nem entendia o porque da revolta das moças. “Pobres, e ainda por cima mulheres, por que diabos eu vou imaginar que elas lêem?”, pensava.

Caras leitoras, não levem a mal nosso amigo. Ele é um idiota completo. Fazer o que? Culpa dos pais, dele é que não seria, lógico.

A demora na escolha – movida pela deturpada impressão do nosso amigo idiota de que ele arranjaria uma empregada jeitosinha, bem no estilo das que ele, e as vezes o pai, estupravam no quartinho da sua antiga casa – acabou assim que Jurema apareceu na sua porta, por volta das sete da noite.

Jurema era uma mulata de meia idade, de seios e ancas fartas e de uma robustez de causar inveja a uma vaca holandesa (a analogia foi involuntária). Chegou já se aboletando, dizendo que não iria ser entrevistada: o cargo já era dela. Viera por recomendação de um amigo do pai do Jonas, e o garoto, que não estava acostumado a sofrer imposturas de serviçais, ficou chocado com a empáfia daquela mulher. Gostou dela na hora, e queria ver até onde ela levaria essa afronta.

– Toma minha carta de apresentação.

“A estúpida criatura nem sabe o que são suas referências!”, pensou Jonas ao pegar o envelope jogado no seu colo. Abriu e viu onde ela havia trabalhado. Achou engraçado. Jurema havia trabalhado na casa de vários amigos dele, tão “independentes” como ele. Ricardo Toledo, Paulo de Moura e Castro, Francisco Toledo e Toledo e vários outros da sua turminha de bon vivants, que ele não via fazia tempo, não sabia bem porque. Mas o que o fez decidir pela contratação foi o último parágrafo da carta:
“Ótima no recondicionamento de conduta interpessoal”.

Não fazia idéia do que significava isso. Mas Jurema era uma mulher, no mínimo, interessante, e deveria diverti-lo durante algumas semanas. E claro, ela também cozinharia para ele e lavaria suas cuecas, o que era mais importante.

Jurema se acomodou no seu quarto de empregada e foi direto para cozinha, preparar o jantar. Jonas gostou da eficiência da mulher. Pensou que, apesar de não haver a menor possibilidade de sexo entre eles, poderia se acostumar com a criada. Para começar, ele pediu que a empregada lhe preparasse uma fritada de cogumelos com creme de espinafre e arroz colorido.

– Você não se mete no meu trabalho, garoto. Vai comer o que eu preparar e lamber o beiços.

A cara de abobado de Jonas depois dessa descompostura já valeria um mês de ordenado para Jurema. Ele, como ela já imaginava, não reclamou. Quando Jonas conseguiu abandonar sua cara boquiaberta e ia falar algo, Jurema nem deu tempo para o rapaz reagir.

– E saia AGORA da minha cozinha.

Ele saiu. Jonas não sabia se despedia ela agora ou se esperava a comida. Estava com fome e cansado de comer em restaurantes. Decidiu demitir a negra assim que comesse.

Antes houvesse demitido na hora. Quando a negra o chamou para sala de jantar, Jonas encontrou seu prato já pronto, fumegando na mesa. O prato tinha uma aparência grotesca, molenga. Era uma carne com uma cor horrenda, coberta com uma repartições quadriculadas. Jonas não conseguia imaginar de que espécie de animal teria saído uma iguaria tão repugnante, isso se aquilo era mesmo animal. Ou se era mesmo do planeta Terra.

– Que diabos é isso, mulher?!?!?
– Dobradinha. Bucho, para os íntimos. E meu nome é Jurema. Já tinha te dito isso, não?
– Olha, pouco me importa o seu nome. E não existe a menor possibilidade de eu colocar essa coisa nojenta na minha boca.
– Se você chamar novamente algo que eu tenha feito para você comer de nojenta, eu vou te dar um corretivo bem merecido.
– Nem vou levar em consideração essa sua frase. E pode ir retirando...

Antes que Jonas terminasse a frase, levou um safanão no meio da cara. Ele não imaginava que a mão da Jurema pudesse ser tão pesada.

– Eu não vou sair de lugar nenhum e você vai comer sua comida toda. E se você limpar o prato, ganha uma sobremesa deliciosa.

Jonas nunca foi muito afeito a agressões físicas. O primeiro pensamento que teve foi o de ligar pro seu pai, reclamando. Mas não, ele agora era independente, tinha que cuidar de si mesmo, sem depender de favores paternos. Ele resolveria a situação: comeria o prato inteiro, com talheres, se fosse necessário.

– Muito bem, garoto. Vai pro seu quarto que já levo sua sobremesa.

Jonas estava atordoado. O que fazer? Ligar para polícia e falar que estava em um cativeiro, que por um acaso era sua própria casa, pois foi sequestrado pela sua empregada? Contratar uns capangas para tirar Jurema a força da sua casa? Ele duvidava que Jurema se intimidasse com qualquer tipo de capanga. Se aparecessem uns 15 caras lá para levá-la de lá, ela provavelmente empurraria dobradinha goela abaixo de todos.

Ele ainda estava pensando no que poderia fazer para se livrar da mulher quando Jurema abre sua porta. Usava um roupão esfarrapado e encardido, que aparentava anos continuados de uso.

– Trouxe sua sobremesa.
– E onde está?
– Aqui.

Jurema abriu seu roupão, mostrando toda a pujança do seu enorme corpanzil. O choque da visão inusitada imobilizou Jonas pelos segundos que seriam os necessários para uma fuga desesperada. Foi o que Jurema precisou para se atirar em cima do pobre rapaz, com uma velocidade incompatível com sua massa corporal.

O estado de torpor estupefato do Jonas continuou durante as horas em que Jurema desfrutou – essa é a melhor definição – dele. E o inesperado da coisa foi que, apesar de todo seu tamanho, muito diferente das modelos-atrizes esqueléticas que formavam o cardápio sexual do mimado garoto, Jurema agradou Jonas. As carnes abundantes e voluptuosas da empregada, o cheiro cru de gente do povo e carícias que ele nem imaginava que poderiam existir conquistaram o rapaz.

No dia seguinte, Jonas acordou exausto e encontrou na mesa da cozinha um lauto café da manhã. Brevidades, Tapioca, cuzcuz de milho, bolo de fubá, suco de graviola. Ele não conhecia nada daquilo, mas com a fome que estava e com o incidente da dobradinha na noite anterior, preferiu comer tudo.

– Tá com fome, menino? O que você ontem fez para ter todo esse apetite?

Depois da inconveniente piadinha, Jurema soltou uma gargalhada à altura do seu enorme porte. Sua boca escancarada mostrava todos os seus dentes brancos, que pareciam maiores do que já eram no meio daquele sorriso descomunal. Jonas estava completamente sem graça, o que não impediu que tivesse uma ereção ao ver os grandes seios balançando no ritmo da gargalhada.

No almoço, Jonas foi obrigado a comer frango com quiabo. Depois, como no jantar, a sobremesa. No jantar seguinte, o prato foi mocotó, seguido de mais sobremesa. E assim foi, por dias seguidos. Jonas comeu coisas que nunca comeria sem uma arma na cabeça e, mais intrigante, começava a gostar da exótica culinária. Angu com miúdos, rabada, jiló, pé de porco, caldo de inhame. Todas as refeições lhe davam direito a sobremesa, óbvio.

Jonas foi ficando mais forte, ganhando cores saudáveis. A convivência com Jurema mudou até seus hábitos. Era menos dependente – quando Jurema estava muito ocupada, ele era obrigado por ela a ajudá-la – vinha perdendo suas manias aos poucos. Até seu vocabulário mudou um pouco, perdendo toda a afetação que anos de educação esmerada haviam criado. Escutava os conselhos da Jurema e os seguia, na medida do possível. Ele chegou ao cumulo de , vejam vocês, procurar um emprego. E conseguiu, em pouco tempo. A influência da família ajudou, claro, mas Jonas também tinha méritos na conquista. Não era mais o adolescente retardado que era quando foi brincar de casinha.

Um dia Jonas encontrou as malas da Jurema arrumadas, no corredor. Foi até a cozinha e encontrou seu desejum na mesa e a mulata lavando a louça, calmamente.

– Por que as malas? Vai viajar sem me avisar, nega? – Já tinham intimidade bastante para trocarem apelidos.
– Não, estou indo embora, moleque.
– Como assim, embora?!?!? Aconteceu alguma coisa?
– Meu trabalho aqui acabou. Só isso. Você já sabe se virar sozinho. Virou um homenzinho já – respondeu e soltou sua famosa gargalhada.
– E quem disse que eu quero me virar sozinho, mulher?!?! Quem vai cozinhar pra mim, lavar minhas roupas, fazer aquela broa de milho que eu adoro? É por causa de dinheiro? Recebeu uma proposta melhor?
– Não é grana. E pra sua broa, você arranja alguém, moleque. Tenho que ajudar outras pessoas que precisam mais do que você.

Jonas não estava entendendo a decisão. Então Jurema explicou tudo. Ela foi mandada pelo pai dele para acabar com o jeito mimado e infantil dele e essa era a especialidade dela. Daí o “Ótima no recondicionamento de conduta interpessoal” na carta de apresentação dela. Jurema já tinha feito o mesmo que fez por Jonas para várias pessoas, inclusive os amigos dele que estavam nas suas referências. Aí Jonas entendeu o sumiço da “tchurma” de playboys que viviam aprontando pela cidade. Jurema os havia tornado homens. Não precisavam mais dos joguinhos infantis que os divertiam tanto antigamente.

A vontade que Jonas teve foi de implorar para que Jurema ficasse. Mas compreendeu que ela não era mais necessária ali. E essa renúncia foi uma das provas que Jurema teve de que seu moleque realmente havia crescido.

– Posso te pedir só mais uma coisa, Nega?
– Pode, moleque...O que você quer?
– Me faz o almoço de hoje?

27.5.03

O banquete


Vem. Vem depressa, que o tempo urge. Vem, mas vem logo, que tenho fome.
Sirva a mesa. Vamos nos servir, vamos nos alimentar um ao outro, um do outro. Vamos trocar o gastronômico pelo fisiológico. Nosso apetite é o mesmo. E não há melhor iguaria.

Termos beijos como entrada, seguido de coquetéis de saliva e uma suculenta salada de línguas. Nessa hora, já estaremos com o gosto um do outro em nossas bocas, e esses aperitivos aumentarão a nossa fome, então já estaremos sedentos por provar o resto do banquete.

E famintos, teremos abraços flambados na paixão e carícias com molho picante, que serão consumidos com avidez. E, diferente dos jantares convencionais, quanto mais comemos, com mais fome ficamos. E o prato principal...ah, o prato principal...

Apesar de famintos, nos atiramos a ele com calma. Degustamos cada fração do seu sabor e sentimos exatamente cada gosto, cada cheiro, cada textura com precisão. Não temos pressa, nem podemos dizer quem come – o que ou quem –, pois temos a mesma fome.

23.5.03

Teologia da birita


Desde os primeiros fermentados no antigo Egito.
Desde as índias andinas que mastigavam a semente, produzindo o sagrado extrato.
Desde os tonéis que maturavam a cevada e o malte, com divina paciência.
Homens sempre beberam; aprenderam com suas divindades imemoriais a apreciar a catarse provocada pelos compostos etílicos. Sabem dos seus poderes libertários, e – porque não? – reveladores.
Deus deu a matéria prima: a cana de açúcar, a cevada, o malte, a uva, as ervas, o arroz;
Deu-nos também o engenho para criar o néctar que nos aproxima a Ele; Nos aproxima sim, posto que ao bebermos, podemos tudo. Ou quase tudo.
A bebida não é uma religião, pois a transcende; A bebida é sagrada
O vinho, transubstanciado, é o próprio sangue de Cristo: é preciso maior prova da sua sacralidade?

Não considerem o ébrio um fraco; o momento da embriaguez é um momento de iluminação.


21.5.03

Pensamento nu


Para ter a mente livre. Para ter a mente livre de obstáculos. Para ter a mente livre de obstáculos que amarrem seus braços. Para ter a mente livre de obstáculos que amarrem seus braços e travem a sua mente. Para ter a mente livre de obstáculos que amarrem seus braços e travem a sua mente deixando você sempre a um passo.

De onde deveria estar.

Não importa o lugar. Não importa o lugar no fim das contas. Não importa o lugar no fim das contas quando o que importa é estar. Não importa o lugar no fim das contas quando o que importa é estar consigo mesmo. Não importa o lugar no fim das contas quando o que importa é estar consigo mesmo e saber qual á única pergunta a ser feita.

Mudar de lugar ou mudar o lugar?

Chega de amarras. Chega de amarras para você. Chega de amarras para você e chega de armar amarras. Chega de amarras para você e chega de armar amarras para o mundo que você quer.

Desnude seu pensamento.

19.5.03

A revista


Ela desligou o som eletrônico que urrava no pequeno som portátil do escritório dele sem a menor cerimônia. Ela queria – e isso era o terror para ele – discutir a relação. Logo naquele dia, que ele tinha que entregar o conto na redação, aquele conto que estava empacado há semanas na sua cabeça.

– Julio, nós precisamos conversar...
– Tem que ser agora, Fátima? Tenho que entregar o conto hoje. E ele ainda não está nem perto de terminar.
– É, seu “conto” – ela colocou aquele tom de desprezo na palavra que era sua marca registrada – pode não estar...Já o nosso relacionamento.
– O que foi agora, Fafá?

Ele usou o tom condescendente que era sua marca registrada e que sempre a tirava do sério. Mas ele nunca usava esse tom intencionalmente. Ou, pelo menos, nunca assumia a intenção. Ela percebeu o tom, viu a cara dele de cansaço e quase saiu da sala sem dizer nada. Suas malas já estavam prontas mesmo, era só ela sair.

– Julio, eu vou embora.
– E dessa vez qual é o motivo?
– Você sabe qual é o motivo...E não fale comigo nesse tom...
– Desculpe, não foi minha intenção. Fafá...se eu soubesse qual é o motivo, eu não perguntaria. Detesto perguntas retóricas, você sabe disso.
– Você ainda não percebeu que você piorou muito?
– Piorei de que, Fátima?
– Dos seus surtos psicóticos....
– Surtos?
– Isso...Desde que começou a escrever pra essa revista...
– Ah...essa história...
– Isso, “essa história mesmo. Você fez de novo...
– Fiz de novo o que?
– Confundiu nossa vida com o que você escreve.
– Sério? Quando eu fiz isso?

A calma dele ao falar com ela, a cara de quem tem a eterna paciência, de quem não pode estar errado, estavam a deixando louca. E ele estava realmente ficando louco. Desde que fora convidado a ter uma coluna naquela revista surrealista, ele passava dias bolando seus contos, que tinha que entregar a cada 15 dias. Essa rotina aos poucos foi alterando seu modo de agir. Ficava dias alheio a tudo e, quando saía do seu transe, falava e fazia coisas sem sentido como se fosse a coisa mais normal do mundo. Às vezes, até discutia com ela por não entender do que ele falava. Tudo ficava claro quando chegava o exemplar da revista em casa. As situações sem nexo que ele tanto falava estavam todas em seus contos. Seus surtos duravam do dia em que ele terminava os contos até a revista chegar às suas mãos. A paz só existia enquanto ele ainda escrevia os textos. Quando ele colocava o ponto final no que escrevia, surtava novamente.

Como no dia em que ele começou a chamá-la de Maria Antonieta. Ela no início achou engraçado, só pensou que ele estava mais excêntrico que de costume. Para sua sorte, a revista chegou com um conto escrito por ele sobre a Bastilha dois dias antes de chegar uma encomenda na casa deles: uma mini-guilhotina.
Nessa fase ela ainda achava tudo engraçado. Sabia que ele era brincalhão e suportava seus trotes. Ele já ficou uma semana se esgueirando pela casa, e quando ela se aproximava, ele fugia, gritando “cobra, cobra!!!”. Na edição seguinte, a heroína do seu conto tinha o poder de se transformar numa víbora.

A gota d´água foi essa semana. Não foi algo ultrajante como pintar todas as roupas dela de roxo – edição número 17 – ou irritante como quando tentou convencê-la por três dias a conviver com uma gaiola com 23 corvos sem penas dentro de casa (edição 22). As maluquices dele, até aquele dia, estavam sempre restritas ao recesso do lar de ambos. Agora, espalhar pelo condomínio que ela era lésbica e que no fim das várias noites de tórridas orgias ela fazia rituais extravagantes com as virgens que arranjava já era demais. Todos no seu prédio a olhavam com olhares ora de ódio, ora de pena. E ele ainda tivera a coragem de dizer que era obrigado a participar dos bacanais. Foi essa afronta absurda que seria a justificativa para que ela o abandonasse.

– Como você pode ter tido coragem, Julio? Aturei muito tempo suas maluquices. Mas você me desrespeitou demais agora. Não posso mais ficar no mesmo teto que você. Você foi longe demais. Como pode ter coragem de falar pro prédio todo que eu sou uma lésbica pagã?
– Você se preocupa muito com o que dizem por aí...
– E você acha isso estranho, não? Inventar as suas sandices é que é muito normal...
– Não sei porque isso te incomoda tanto...Não deveria.
– Você está mesmo louco, não, Julio?
– Nunca estive tão lúcido, Fafá.
– É mesmo? E como você explica essa história absurda que você inventou de mim? E dizer ainda por cima que eu te obrigo a participar dos “rituais”...É muita cara de pau!!!
– Como você sabe que nunca fizemos aquilo?
– Aquilo o que, Julio?
– As orgias pagãs? Os rituais?
– Como assim, Julio? Pirou de vez?
– É isso mesmo, Fafá...”A vida imita a arte”, se esqueceu? Você pode afirmar com certeza que nunca fez um ritual satânico-lésbico?
– Deus! Vou chamar uma ambulância!!! Você precisa ser internado já!
– Fátima...a vida não tem a menor graça. O que conta é a arte. Sem ela, nossas vidas são estéreis. Se eu invento novas realidades e mundos, você deveria agradecer por te incluir neles.
– Não é possível falar com você, Julio...Você ensandeceu de vez! Mas tenha certeza de uma coisa: eu não vou ficar aqui vendo você se destruindo desse jeito. Se você melhorar ou precisar de mim, sabe meu telefone.

Ela foi até o quarto e pegou suas malas. Voltou até a sala e viu que ele continuava imóvel, olhando o monitor, completamente absorto pelo seu novo conto. Ela não queria saber o que viria nesse próximo texto. Iria embora desse mundo louco criado por ele antes que sofresse mais. Abriu a porta da sala e antes de partir olhou para trás, para ver se podia identificar ainda alguma fagulha de sanidade nele.
– Julio...Estou indo. Você não tem nada pra me dizer?
– Fafá...eu te amo, mas não posso te impedir. As forças em jogo são muito maiores que eu, você ou nosso casamento. “ars longa, vita brevis”...Nós não temos importância nesse jogo.
– Você fez a sua escolha, Julio. Estou indo.

Ela fechou a porta atrás de si e se foi. Enquanto descia pelo elevador social, o porteiro subia pelo de serviço. Trazia para ele o número 34 da revista. O conto dele nessa edição começava com a saída intempestiva de casa da personagem principal, depois de anos de um casamento feliz.

13.5.03

Já fez a lição de casa?


A lição de casa hoje é fazer a revolução
A lição de casa hoje é chutar o mundo janela afora
A lição de casa hoje é não desistir

A lição de casa hoje é disparar contra a guerra
A lição de casa hoje é quebrar as carteiras do colégio
A lição de casa hoje é: não existem mais escolas

A lição de casa hoje é correr o mundo
A lição de casa hoje é fazer o que se quer
A lição de casa hoje é querer o que se faz

E quando todos os alunos forem bem
E tirarem a nota máxima na matéria
Jogaremos todos os conceitos pelo chão
E poderemos finalmente passar de ano com méritos

12.5.03

Se vira, amigo...


Vai. Agora, se vira. Segue seu caminho sozinho. Tente não depender de ninguém uma vez na sua vida. Desde sua concepção, nunca fez nada com suas próprias pernas. Dependeu daquele espermatozoide que era o único que poderia te formar chegar primeiro naquele óvulo que também estava ali por acaso, pra sua sorte. Nove meses no ventre materno com comida, sombra e água fresca. Mamãe e papai te pajeando até você se achar suficiente esperto para fazer somente o que eles não queriam que você fizesse. E mesmo assim, nessa época em que você se comprazia em trazer o desgosto para aqueles que te davam boa vida, você ainda assim dependia da acolhedora mão de alguém para seguir vivendo.

Para agora de contar com a sorte, sua ou alheia. Chega de desculpas para sua preguiça em ser alguém. Não mais “a questão estava mal formulada”, nem “o emprego não era mesmo tão bom assim” ou “se não fosse a maldita trave”. Se vira. Ganhe da sorte, ganhe do azar, ganhe das macumbas que fazem pra você. Ninguém está dizendo que será fácil. Mas ser alguém que conta é o mínimo que esperam de você.

Esqueça seus “contatos”, seus “pistolões”, suas “dicas quentes”. Seus “apadrinhamentos”, seus “favores devidos”, suas muletas para andar. Uma vez na vida, viva; mas por si, sem dependências. Se vira, amigo...

Se vai valer a pena? A resposta deve ser dada por você mesmo. Ninguém sabe das suas dores e anseios. Pode ser que isso que você chama de “levar a vida”, essa forma preguiçosa de guiar seus passos até seu fim inevitável, lhe seja agradável. Vai muito pela sua cabeça. Mas já que o seu fim vai ser o mesmo de todos, tente fazer com que esse breve intervalo de tempo entre seu parto e seu passamento tenha valido a pena.

Se vira, camarada. Antes que seja tarde. Antes que seja tarde demais. Antes que não seja mais tarde ou cedo demais, apenas inútil.