29.9.03

À Mesa


Ela acreditava que o comportamento de um homem à mesa indicava como era o seu comportamento na cama. Prestava atenção neles quando ia a restaurantes, tendo até saído com alguns que julgava interessantes pelo modo como comiam. Era simples assim: se gostava de como o sujeito se portava à mesa, ela pedia ao garçom que entregasse um bilhete a ele. Foi assim, com esse inusitado processo de escolha e pelo prosaico método do "torpedo", que começaram alguns dos seus romances.

Ela preferia os que comiam com vagar aos que comiam vorazmente. Não que as vezes não saísse com os que devoravam suas refeições. Apenas achava que da comida, assim como de uma mulher, deve-se sentir o paladar. Os vorazes eram, muitas das vezes, afoitos demais. Podiam até ser bons amantes, mas era muito raro. Os que aproveitavam o gosto dos pratos sentiam e também davam mais prazer, invariavelmente.

Até que num domingo à noite, em um dos seus restaurantes preferidos, viu o homem perfeito. Ela estava numa mesa com quatro amigos e quando reparou nele entrou em transe. Suas companhias não existiam mais. O homem - que parecia ser o ideal depois de tanta procura - também estava acompanhado. Mas isso não a impediria de fala com ele.

Ele comia de forma delicada, devagar. Segurava os talheres de forma polida e os manuseava como quem tinha feito por anos algum curso de etiqueta. Mastigava por um tempo enorme, parecendo querer fazer com que a garfada se desintegrasse por completo na sua boca, sem sobrar nada para digestão. Limpava-se do molho nos cantos da boca com o pudor das virgens oitocentistas, segurando o guardanapo com a ponta dos dedos.

Mas não era só isso que a atraia irresistivelmente. Por trás de toda a sutileza, o homem tinha uma virilidade disfarçada, só percebida por uma expert como ela. Era preciso conhecer os detalhes, saber enxergar sua voracidade latente em pequenos gestos: a forma como olhava para seu Steak no prato, a forma firme como cortava a carne, as mastigadas lentas, mas firmes, como se aquele fosse o último pedaço de bife que ele fosse engolir pelo resto da vida.

Era a combinação perfeita. Ela teria esse homem, não importava o que tivesse que fazer.

Não ia utilizar a maneira usual de contato. Um bilhete escrito em um guardanapo não estava à altura daquele homem. Esperou pacientemente, ignorando seus amigos, toda sua atenção concentrada no seu objetivo. Foi recompensada com a ida dele ao banheiro. Levantou-se e foi atrás dele.

Ficou esperando à porta. Ao vê-lo, foi para cima, com fome. Não deu muitas explicações, passou o telefone e falou que precisava desesperadamente se encontrar com ele. O susto que ele levou foi justificado. Mesmo sendo bem apessoado, não estava acostumado a cantadas tão agressivas, ainda mais de uma mulher tão bonita. Ela não perguntou pela moça que o acompanhava, e pelo visto, ela não dava a mínima para isso. Fosse sua irmã ou sua esposa, ela ainda assim iria querer encontrá-lo. Isso despertou o apetite dele. E o beijo que ela deu em seu rosto como despedida, marcando-o com o batom carmim era apenas um aperitivo.

Ele voltou ao banheiro e lavou o rosto. Recompôs-se do susto e foi à sua mesa. A procurou pelo salão e não a viu. Sentou-se, e sem que sua acompanhante visse, olhou para bilhete deixado por ela, escrito com o mesmo batom que havia acabado de limpar da face. Iria ligar assim que chegasse em casa.

Marcaram um almoço para o dia seguinte. Ela escolheu o restaurante, refinado e caro, na Zona Sul. Ambos chegaram pontualmente e foram direto para mesa. Durante a refeição, ela pouco falou. Ele comandava a conversa não por ter muito assunto com uma mulher que praticamente não conhecia. Ele reparou que ela se contentava em reparar em como ele comia. Isso o deixou um pouco nervoso, não entendia o porque daquela atitude. Percebeu que durante o almoço ela ia ficando mais excitada. No meio do almoço, ela começou a brincar com a perna dele, passando seu pé nela. Isso, claro, o atiçou também, a ponto dele desistir de falar e decidir ficar apenas encarando-a, sem desviar o olhar. Num dado momento ela resolveu falar. Contou, finalmente, a razão dela procurá-lo daquela forma na noite anterior.

Ela percebeu que ele, apesar de achar insólita, gostou da teoria. Nunca havia pensado nisso, ele disse. Ela deu exemplos, se esmerando nos detalhes, que o fizeram perder completamente o apetite pelo almoço. Ele propôs que saíssem dali imediatamente, sem sobremesa. Foi o que fizeram.

Partiram para casa dela, que ficava perto e tiveram uma tarde intensa. O sexo, como ela esperava, era perfeito. Ela ficou extasiada com a maneira como ele conduziu tudo: não sabia se ele a fodia como um cavalheiro ou a amando como um gigolô. Era exótico, como uma receita oriental, impregnada de temperos raros e especiarias desconhecidas. Ela se viu inebriada, dominada pelo seu toque, seu aroma. Ela finalmente havia encontrado o homem perfeito.

No fim da tarde, ele disse que tinha que ir. Ela, inesperadamente até para si mesma, pediu que ficasse, que precisava dele. Confessou que ele era tudo o que ela esperava. Ele disse que não podia ficar. Mas poderia fazer um arranjo com ela: toda segunda feira, eles teriam um almoço e a tarde juntos. Era o que poderia oferecer agora. E ela aceitou.

No começo, o mistério de apenas tê-lo em um dia da semana a deixava excitada. Como uma receita secreta, ele não se mostrava no todo, apenas se revelando ao ser degustado. As dúvidas que tal comportamento despertavam não a incomodavam a ponto dela pensar em questionar o arranjo feito. Com ele, tinha cama, comida e sexo às segundas. E tudo ia bem.

Mas ela ignorou o perigo de unir dois pecados capitais. A luxúria e a gula, agindo juntas, a viciaram. Precisava dele mais que uma vez por semana. E as dúvidas, que antes eram um tempero no seu relacionamento, agora azedavam a receita que parecia tão perfeita. Se perguntava porque só podia encontrá-lo na segunda. Seria casado? Era o mais provável, apesar de não achar que isso fosse motivo para vê-la apenas uma vez na semana. Se fosse isso, até achava aceitável. Não perdoaria é que ele estivesse vendo outras mulheres, que não saberiam dar o valor que ele merece, não saberiam explicar a razão do seu poder.

Resolveu que descobriria tudo sobre seu homem perfeito. No outra segunda, vasculhando sua carteira, descobriu onde ele trabalhava. Decidiu que o seguiria no dia seguinte.

Acordou cedo, pegou o carro e cruzou a cidade, até o trabalho dele. Para sua surpresa, ele trabalhava no subúrbio, em um lugar que ela nunca imaginaria encontrar alguém com a sua classe. Tinha essa visão preconceituosa, tão natural nas pessoas bem nascidas. E bem ao estilo desse tipo de pessoa, a ocupação humilde do seu homem perfeito a deixou mais apaixonada ainda por ele. Estacionou seu carro, ficando em um lugar escondido. Não ficou surpreendida com o local onde ele trabalhava: era um restaurante. Mas não um dos que ela freqüentaria, nem que fosse com ele. Era desses lugares meio sujos, com um buffet por quilo. "Nossa! Que pobreza!", pensou.

Ele chegou alguns minutos depois, numa roupa que ela nunca esperaria vê-lo vestindo. Era uma camisa social surrada, uma calça de tergal preta e um par de tênis encardidos. O fato dele conseguir transparecer alguma elegância na frente dela era surpreendente. Sabia que ele tinha algo de bronco por baixo das impecáveis maneiras. Sabia disso pela forma como comia e como a fodia. Mas ele nunca poderia imaginar que aquela triste realidade fosse seu dia a dia. Não teve coragem de entrar no estabelecimento. Entrou no carro e foi para casa.

Chegou em casa e tomou um banho. Inconscientemente, procurava se limpar dele, como se isso fosse adiantar. Sentia uma camada de gordura na sua pele, como se sempre tivesse estado com ele na cozinha daquele lugar imundo, enquanto um cozinheiro sebento fazia uma dobradinha ou algo do gênero. Ela estava muito excitada.

Já era meio dia quando saiu do banho. Arrumou-se e resolveu sair para almoçar. No restaurante, pediu um dos pratos refinados com os quais estava acostumada. No meio da refeição, sentiu a falta do seu homem perfeito como nunca havia sentido antes. A repulsa que sentiu dele se transformou numa paixão arrebatadora. Largou o prato no meio e voltou para o restaurante no subúrbio.

Chegando ao local, não teve dúvidas dessa vez. Foi logo entrando no humilde restaurante sem dar atenção aos garçons que ofereciam a ela um lugar. Tinha que encontrar com ele imediatamente e se certificar que ele, apesar de pobre, tinha aquela classe inata que alguns pouco desafortunados têm. Ela estava tensa e sentia que se ele pedisse, se entregaria a ele na mesma hora, dentro da dispensa do restaurante.

Ela o encontrou almoçando no fundo do salão e foi esse seu azar. Ele estava com a camisa aberta, mostrando o dorso encharcado de suor. Estava sentado de pernas abertas e metade do seu corpo estava praticamente se jogando dentro do prato fundo. Segurava o talher de lado, como se tivesse aprendido a usá-lo há pouquíssimo tempo. No prato, alguma mistura indefinida contendo arroz, feijão, farofa e algum tipo de carne impossível de ser reconhecida. Ele não tinha nem uma faca e foi justamente quando ele dava uma mordida no pedaço de carne preso pelo garfo. Seus olhares se cruzaram e a boca dele, besuntada de gordura e com restos de farofa em volta dos lábios não ajudaram nada na situação.

"O que você está fazendo aqui?" disse ele, surpreso. Ela não conseguiu responder verbalmente, mas seus olhos diziam tudo. Ele se levantou, e - piorando sua situação - limpou a boca dos restos de comida na toalha de mesa. "Você não deveria estar aqui!" , disse, suplicante. Ele ia tocá-la e ela fez um gesto para que não se aproximasse. Ele entendeu tudo naquele momento. "Segunda feira é a minha folga. Você não deveria me ver hoje", ele disse, olhando para o chão, com toda vergonha do mundo. Os garçons em volta da cena não entendiam o que se passava, quando ela se virou, sem proferir uma palavra sequer, saindo do restaurante. "Você não podia me ver assim" ele ainda disse, para si mesmo.

Ela entrou no carro e se foi, sem saber no que pensar. No caminho para casa, parou em um drive thru do Bob?s e pediu um Big Bob. Mordeu o sanduíche ainda dirigindo, e sentiu o molho escorrendo pela sua boca abaixo. Olhou para baixo e viu que sua camisa estava respingada. Ela voltou sua atenção para o trânsito. E não usou guardanapo.

16.9.03

Montanha Russa


E daí que essa vida tem altos e baixos? Assim que é, para todos. Inevitavelmente, todos temos momentos bons e ruins e a única coisa que nos resta é aproveitá-los da melhor maneira possível Há de se agarrar os tempos felizes como se fossem os últimos - até porque podem realmente ser - e aprender com os dias de tristeza.

O que não adianta é urrarmos de medo ou fugirmos do passeio: temos que ir, mesmo que seja com os olhos fechados em alguns momentos, enjoados na maioria do percurso ou se prendendo desesperadamente ao assento, temendo a queda se supomos iminente. Devemos ir, sempre, pois essa é nossa única prerrogativa.

Nessa montanha russa chamada existência, não há devolução de ingressos.

9.9.03

Aniversário


Augusto acordou com sete anos completos. Olhou-se do alto do seu pouco mais de metro e meio e pensou "agora sim!", antevendo seu dia. Era taurino e, para azar dos seus pais, "hiperativo": esse novo sinônimo para encapetado. Saiu da cama pulando e gritou com todo ar que seus pequenos pulmões comportavam:

- Feliz aniversário pra mim!!!!

Se eram quinze para seis da manhã de uma quarta, pouco importava. Ele não trabalhava e problema de quem rezava por mais uns minutinhos de sono. Correu pela casa de cuecas e se jogou em cima dos pais, que não foram pegos de surpresa, já que estavam acordados.

- Bom dia, meu filho! Feliz aniversário pra você...

Sua mãe o amava mais que tudo, como toda mãe do mundo. Deu um abraço demora na cria, até que a própria achou que a mãe estava exagerando. Se jogou em cima do pai, que ainda se recusava a levantar. O pai deu um beijo na testa do filho e pediu delicadamente para que ele fosse brincar lá fora, só uns 20 minutinhos. Nem precisava. Depois do beijo paterno, Guto já corria para fora do quarto.

Era seu aniversário. Não escovou os dentes como a mãe mandava sempre, não iria para escola como o pai obrigava. Hoje seria dia de ir pro quintal e se jogar, brincar com as folhas, se atracar com o cachorro, ficar no portão para sacanear os amiguinhos à caminho da aula e depois ficar chateado porque seus amiguinhos não iam poder brincar com ele. Ver TV e jogar vídeo game até a hora do almoço, que seria hambúrguer, arroz, feijão e batatas fritas sorriso. Como sobremesa, um sorvetão de morango, cheio de calda quente.

A tarde ia brincar com os amiguinho que já teriam voltado da escola. Jogaria bola, pique-tá e carniça. Brigaria com todos e riria com todos. Voltaria para casa para o lanche e comeria misto quente com Coca ou iogurte. Levaria alguns amiguinhos, que deixariam sua mãe louca e feliz, com aquele tipo de sentimento contraditório que toda mãe do mundo tem:

- Guto, desce já dessa cadeira, menino! Eu vou te matar!

Veria sua cria crescendo e teria vontade de chorar ao vê-lo, já praticamente um homem. E a ida dele para brincar depois do lanche seria uma antecipação do dia em que ela o entregaria para o mundo.

E depois de um dia de correrias, artes e degustação de insetos, Guto retornaria para casa, sujo, cansado e feliz. Não teria feito nada muito diferente do que sempre fazia, mas era seu aniversário, seu dia, e ele era um rei - pensaria isso como se toda criança não se achasse o centro do mundo todos os dias do ano. Dormiria sem pensar no amanhã, sem imaginar como esse dia, repleto de alegria e sem preocupações, iria se tornar raro num futuro não muito distante. Quando se é uma criança, não se é "pequeno", temos sempre o tamanho certo para dominar o planeta sem sair do nosso jardim. Quando crescemos, podemos nos considerar afortunados se conseguimos dominar nossas parcas vidas, mesmo se nunca mais pudermos falar um outro "agora sim!" com propriedade, como senhor das nossas vontades, de novo.