26.11.03

Esquinas




Perdida entre os abismos das esquinas, cai assim, a menina. Ela queda e sua queda não é física. Não há mais o que esperar, logo para ela que tanto esperou.

O corte das ruas e prédios e asfalto e carros ela segue adiante. Cada aceno, cada dedo, cada beijo mandado é uma navalha. Não, ela não tem opção. Quisera tivesse.

A nudez mais vestida e as roupas quase não-vestes é o que tem que usar. Expor a mercadoria e atrair possíveis compradores. As ruas, à noite, são quase um açougue.

Beija homens e mulheres. Beija o pai, o filho, a esposa. Beija o patrão, o empregado, o rico, o pobre. Beija o asfalto, as vezes. Esse é o beijo menos áspero.

Ela procura não pensar na injustiça do mundo, onde poderia estar se tivesse outra vida. De que adianta? Ela só se preocupa em oferecer o melhor simulacro de sentimento possível. Ela odeia cada um dos seus clientes, com todas as suas forças; ela ama todos os seus clientes, como se eles fossem os únicos homens da Terra.

Ela é apenas uma criança.

20.11.03

Rock'n'Roll


Não tenho dormido muito por causa do trabalho estúpido que faço, trabalho estúpido esse que só consegui por ter estudado estupidamente por 5 (seriam 6?) anos numa faculdade cheia de gente tão estúpida quanto eu. Talvez não tão estúpidos: eu sabia o que era ruim e não quis mudar. Segui a trilha da estupidez por escolha própria.

O pior estúpido é aquele que vê e mesmo assim não quer ver.

Horas diante de um monitor, fone de ouvido gritando um rock antigo e a insatisfação gritando mais alto nos meus ouvidos que as guitarras. Relatórios, memorandos e o saco cheio. O velho discurso de sempre. Os velhos dias de sempre. Minha vida fede a bolor.

Um dia eu chuto tudo isso. "Kick out the Jams!!!"

Ha! Eis me aqui saído da minha jaula acolchoada, da minha auto-câmara de gás. Sem walkman, sem pilhas. O sol mata. Até que ela aparece. Ela é o próprio sol.

Óculos escuros e a pele alva. Ela não sua. Ela nunca suaria. Camiseta e jeans surrado. Ouve algo no seu walkman - ela tem pilhas - que a faz balançar a cabeça. Vejo seus lábios cantando a música, sem som. Lábios mudos que rasgaram meu dia ao meio. Se ela quisesse, rasgariam a mim mesmo ao meio.

Ando ao seu lado, ela me ignora. Não sou nada. Ela ouve seu som como eu ouviria, no talo. Consigo escutar a música: "Gigantic/Gigantic/A big big love!". Eu estou apaixonado.

Eu toco seu ombro e ela se vira. Sem falar nada, a pego pela nuca e a beijo, sob os olhares dos curiosos. É um beijo intenso e longo. Ela retribui o beijo. Ela também está apaixonada...

Tá bom. Nem em sonho. Ela continua andando e eu, nada, continuo seguindo. Ela acende um cigarro, para num ponto de ônibus. Eu paro. O simples ato de guardar um maço de Marlboro Lights - ela deve estar tentando parar com o vício, pra fumar filtro branco - é maravilhoso. Eu vou...eu TENHO que falar com ela.

Ela olha o fluxo do trânsito. Dá uma tragada forte no cigarro, ainda dançando com a cabeça. Joga o cigarro pela metade no chão e pisa, girando seu pé em cima da brasa. Eu nunca amei tanto uma mulher como a amo. Ela faz o sinal, o ônibus para e ela joga o resto de fumaça que ainda tinha nos pulmões subindo no coletivo. Ela teve que virar a cabeça para que a nuvem de nicotina e alcatrão não entrasse no ônibus. Essa imagem dela, um pé no degrau, outro na rua, mãos no corrimão, cabeça voltada para trás, foi a coisa mais bonita que eu já vi em toda minha vida.

Ela se foi. Eu não fiz nada.

Volto estupidamente para o trabalho, pros memorandos, pros relatórios, pro meu rock & roll alto dentro dos tímpanos, me sentindo mais estúpido que nunca.

18.11.03

Folk song



Sigo pelas ruas em passo lento. Vejo tudo e todos me vêm, mas não entendem. Caminho com vagar, como o andamento de uma música do Dylan. Revisito minha estrada sem medo.

Passam as pessoas. Não temos nada em comum. E quem tem algo em comum com o outro? Os outros, são os outros. Pego meu maço de cigarros amassado no bolso, acendo um dos últimos e solto a baforada. A fumaça tem mais em comum comigo que essas pessoas.

Esse tempo está prestes a mudar. A saudade de casa vai passar, em alguma rua dessas. Em alguma rua dessas as feridas fecharão. Como deve ser, como sempre deve ser.

E se me perguntarem - sobre a vida que criei para mim mesmo - "foi bom pra você", vou responder com um beijo, um acorde da canção que vive na minha mente e seguirei com meus passos.

17.11.03

Tem vaga



Tem vaga para vivo, mas acabou. Tem vaga para pensante, mas acabou. Tem vaga para pessoas que fazem coisas relevantes. Mas essa acabou faz tempo! Quando você pensa que vai ter vaga para uma coisa que nem seja tão legal assim, como pra suicida em potencial depois de décadas de uma vida medíocre, você se ferra: até para isso, tem vaga, mas acabou.

As vagas para idiotas que não se importam com nada também tinham, mas acabaram. Para idiotas que se importariam com tudo, se entendessem tudo, também. Esqueça as de revoltado impotente. Essas são das primeiras a acabar. Tem vaga para falso niilista. Mas acabou.

Então só te sobra aquele lugar apertado no fundo do ônibus. Lá tem vaga. Você passa pelo coletivo lotado, trombando em outras pessoas que, como você, não acharam vaga para nada. Misteriosamente, ninguém ocupou aquela vaga. Você se senta. Arranjou uma vaga. A vaga de inútil que faz concessões para tudo. Não é das melhores, mas é uma vaga. Essa tem. E não acabou.

A viagem nem começa e aparece uma grávida ao seu lado, cheia de sacolas. Você tem que ceder seu lugar para ela. Ela se senta e tira uma sacola de dentro da camisa. A barriga era falsa e ela ri. Todos riem. Você não faz nada.

Boas notícias



Chegou dizendo que trazia boas notícias. Nada. Não existem boas notícias. Tudo continua igual nesse mundo.

-Você é muito deprimido- ela falou, sorridente.

Não sei se ela realmente achou graça nesse meu jeito triste ou se riu apenas pra me alegrar. Não adiantaria, era bom ela saber. Certas pessoas nascem assim, sem razões para sorrir.

-Isso é cena, eu sei. Vem cá.

Transamos e foi bom, claro. Até me senti feliz por alguns momentos. Certas pessoas nascem assim, fazem qualquer um sorrir, até os mais tristes.

Ela foi embora logo depois. Tinha que trabalhar. No fim das contas, ela nem me falou qual era a boa notícia. Não precisava. Ela era a melhor notícia que poderia haver. Sorri ao pensar nisso.

Certas pessoas nascem assim.

10.11.03

Exílio



As vezes vem no vento
Que refresca como o de lá
Outras, uma música
Vinda de um rádio qualquer
Difundido cartão postal
Que independe de venda
Recebo seu toque assim
Sem procurar
Como se eu, filho não pródigo
Merecesse tal regalia
Exílio é dor aguda
É agulha que penetra a pele
Sem clemência
Toda vez que minha terra me beija