14.3.04

O vestido azul

para Ginger


Encontrei Martin, depois de semanas sem que desse as caras, apenas quando fui ao seu apartamento. Ele demorou vários minutos para abrir a porta, mesmo eu tendo tocado a campainha inúmeras vezes, Só insisti porque conseguia ouvir a música que vinha, alta, do seu aparelho de som.

Ao abrir a porta, vi que Martin tinha uma aparência péssima. Entrei em seu pequeno quarto e sala sem que trocássemos uma palavra. Notei que não só ele, como sua casa estavam em completo abandono. Devia fazer vários dias que ele não se preocupava com a higiene pessoal ou com uma arrumação. Vestia umas roupas sujas, tinha a barba por fazer e eu ainda não sabia se o cheiro ruim que estava sentindo vinha dele ou do verdadeiro caos de embalagens de comida, pratos e talheres abandonados pelos móveis e peças de roupas pelo chão. Tive que praticamente gritar pra me fazer ouvir.

– O que houve, Martin?
– Sobre o que especificamente você está falando? –respondeu ele, também em altos brados.

Como não pretendia ficar rouco, desliguei o som. Martin foi até o aparelho e o ligou novamente, colocando a mesma música que tocava antes, já pela terceira vez desde que toquei a campainha. Parecia obcecado por Blue Dress, do Depeche Mode. Ele teve pelo menos o bom senso de diminuir o volume.

– Não tire a música, por favor.
– Afinal de contas o que houve, Martin? Você desaparece por semanas e ainda te encontro desse jeito, largado e vivendo nesse chiqueiro.
– Largado? Chiqueiro? Não sei porque diz isso. Eu estou bem. Ou quase.
– Acho que “quase” não define sua situação. Olhe pra você: está imundo. Olhe à sua volta: sua casa está um pardieiro e eu espero sinceramente que esse fedor não esteja vindo de você. Há quanto tempo você não se lava? Por que seu apartamento está nesse estado? E por que essas calcinhas estão espalhadas pelo chão? O que diabos aconteceu por aqui, Martin?

Martin se abaixa e pega uma das lingeries do chão, delicadamente. Tem os olhos tristes agora, parece até mesmo que vai chorar. Uma cena que eu nunca imaginaria ver: Martin era uma rocha.

– O que te incomoda são as calcinhas – disse Martin, levando ela até o nariz e aspirando profundamente – ou é o cheiro delas?
– Não. O que me incomoda mesmo é ver você desse jeito.

– “Desse jeito”? Não se preocupe, eu melhoro. Você também estaria assim, ou até pior, se tivesse conhecido a Clarice.
– E foi essa tal de Clarice que te deixou assim? O que ela pode ter feito pra deixar o cara mais firme que eu
conheço assim, sem o mínimo cuidado com sua casa ou consigo mesmo, vivendo no meio do lixo, convivendo feliz com comida estragada e o cheiro de calcinhas sujas?

A reação de Martin me surpreendeu. Ele avançou na minha direção, agarrando meu colarinho, disposto a me esmurrar a cara. Vendo o espanto nos meus olhos e que estava prestes a bater no seu melhor amigo, Martin me soltou e desabou sobre uma cadeira, com a cabeça entre as mãos, chorando.

– Você não entende. Ela não era virgem. Não era...

Era realmente inacreditável vê-lo assim, ainda mais por causa de uma mulher. Martin sempre se dera bem no terreno das conquistas amorosas. Seu sucesso com as garotas era notório, como sua aversão total aos compromissos. Ele conseguia todas as mulheres que lhe interessavam, mas assim que elas se mostravam apaixonadas ou muito grudentas, Martin as dispensava sem o menor remorso. Não chegava a ser má pessoa por conta disso. Simplesmente tinha tal repulsa a se sentir preso que não conseguia ter um relacionamento duradouro. Fez muitas das suas conquistas sofrerem, claro, mas nunca chegou a brigar com nenhuma delas. O normal era, depois de um tempo natural de raiva por terem sido dispensadas sem um motivo justo, era ficarem amigas do Martin. E no fundo, a maioria delas preferia assim. Essas esperavam que um dia ele se ajeitasse e não perdiam as esperanças de conseguir agarrá-lo.

Sentei ao seu lado e perguntei novamente o que tinha ocorrido. Ele me levantou seus olhos desesperados e começou a me contar sua história.

Martin conheceu Clarice num café, depois de ter ido sozinho ao cinema. Ela estava numa mesa, lendo um livro, também só. Ele a achou interessante: devia ter pouco mais de 18 anos, tinha cabelos de um loiro resplandecente e uma pele que só quem freqüenta a praia com certa assiduidade pode ter. Usava um vestido azul que realçava seu belo colo, um casaco de lã por cima e – uma das fraquezas do Martin – óculos, com uma armação fina e delicada. Ele não pensou duas vezes antes de abordá-la.

– Este lugar está vago? – perguntou fazendo sua típica cara de “Don Juan” da Zona Sul.
– Parece estar ocupado? – respondeu com outra pergunta, sem mover o rosto, apenas levantando os olhos por cima das lentes.
– Gosto das garotas mordazes. Principalmente quando são assim para responder minhas perguntas estúpidas. Meu nome é Martin – disse, já se sentando.
– Já eu não gosto muito dos abusados, que vão se sentando sem receber permissão – antes que Martin pensasse que tinha tomado um fora, a moça abriu o mais belo sorriso que ele já tinha visto – Prazer, Clarice.

Se deram bem logo de cara. Tinham muitos interesses em comum, do livro que ela estava lendo – um dos preferidos dele – passando pelo filme que tinham acabado de ver, gostos musicais, opiniões políticas e outros assuntos vários. Ficaram encantados um pelo outro, e conversaram, sem notar o tempo, até acabarem as duas sessões seguintes no cinema. O café iria fechar, e como Martin não queria precipitar as coisas – não com alguém como Clarice – resolveu só trocar telefones. Combinaram tomar outro café qualquer dia desses.

Pretendia seguir sua cartilha. Não iria ligar no dia seguinte, para não demonstrar um interesse demasiado. Mas as horas foram passando, garotas que Matin não tinha a menor intenção de ver novamente ligavam, chamando-o para programas que tinha intenção menor ainda de fazer e a vontade de telefonar para Clarice aumentava. Quando estava a ponto de quebrar com um dos dogmas do seu manual de conquistas, o telefone toca. Era Clarice.

– Sabe o que é? Eu tenho uma festa para ir hoje e queria pedir emprestado o seu Violator do Depeche Mode. Me pediram pra levar uns cds.
– Melhor: eu copio o cd e dou pra você. Faço agora mesmo. Onde nos encontramos?
– Não quero te dar mais trabalho. Posso passar na sua casa? Fica melhor pra você?

Martin ficou surpreso e, obviamente, excitado com a inusitada proposta. Aceitou na hora, claro. Combinaram o horário e foi copiar o cd, arrumar a casa e a si próprio. Tomou um banho demorado, colocou perfume, coisa que não estava acostumado, e vestiu uma roupa bonita, mas casual o bastante para não parecer que estava se convidando para a festa que Clarice iria. Na hora marcada, o interfone toca. Martin a espera na porta, cumprimenta com dois beijos no rosto e a convida para entrar.

– A não ser que você esteja com pressa. Que horas é a festa?
– Não se preocupe. Faltam umas duas horas pro pessoal chegar lá. Marquei cedo com você por isso.
– Por isso o que?

Clarice respondeu abraçando Martin e dando um beijo em sua boca. Surpreendeu-se novamente, mas por pouco tempo. Acostumado com sua sorte com as mulheres, achou normal a atitude dela. Calrice estava muito sexy, apesar do visual quase inocente. Usava um vestido de alças com flores azuis, um pouco acima dos joelhos e um tênis. Martin agradeceu a Deus pelo calor que fazia, o que devia ser o motivo dela usar uma roupa tão leve.

Ofereceu uma bebida para Clarice, que entre as várias opções, escolheu uma cerveja. Martin adorava mulheres que não tinham a tão em moda preocupação com a “barriguinha” e bebiam com prazer uma cerva gelada. Não que Clarice precisasse se preocupar com isso. Com o corpo que tinha, Martin não conseguia imaginá-la barriguda nem com muito esforço.

Beberam, ouviram música e ficaram juntos por um tempo. Naturalmente as coisas foram esquentando, apesar de Martin não querer apressar as coisas com Clarice. Não com ela. Estavam deitados no sofá quando ele começou a desabotoar a calça. Vendo isso, ela se levantou e disse:

– Calma, Martin. Não precisamos nos afobar. Ainda temos uma festa para ir.
– Claro, amor...desculpe – respondeu, aliviado. Era a reação que Martin esperava dela, a prova de que Clarice era diferente das outras e merecia um tratamento especial.

Se recomporam e foram para festa. Não se largaram durante toda noite, Martin vendo que seu interesse por Clarice era o maior que já tivera por uma mulher. Quando Clarice já estava meio alta, pegou Martin pela mão e o levou até a área de serviço, o único lugar da casa em que a festa não tomava conta. A mistura do pileque com o tesão que sentia pela Clarice fizeram Martin propor que fossem para um lugar “mais calmo”. Ela aceitou na hora.

Iam para casa dela. Antes de descer do carro, em frente ao prédio em que ela morava, começaram os beijos e amassos, sem se preocuparem com quem passasse pela rua. Martin abaixou os bancos e quando estava quase chegando às vias de fato, Clarice pediu que ele parasse.

– Tá, tá...Vamos subir então? – ele quase suplicava.
– Tá louco, Martin? Eu moro com meus pais – disse Clarice sorrindo
– Então vamos lá pra casa. Em cinco minutos estamos lá.
– O problema não é esse Martin.
– E qual é o problema, amor? – foram conversando sem que Martin parasse de beijá-la.
– Eu sou virgem. Esse é o problema.
– Ahn? O que?
– Isso mesmo. Sou virgem. Isso te incomoda? – Clarice parecia ofendida com a expressão incrédula de Martin.
– Não, claro que não...Mas...Não vejo porque isso seria impedimento para...
– Você não é burro, Martin. Claro que você sabe que isso é um impedimento.

Martin se recriminou pela grosseria cometida. A bebedeira embotou seu raciocínio, e para quem não queria apressar as coisas, querer transar no primeiro encontro com uma garota que acabara de se revelar virgem era o cúmulo da afobação. Temeu ter posto tudo a perder.

– Você tem razão – ele falou, mais decepcionado com sua gafe que com a foda não dada.

Ela saiu do carro sem se despedir. Martin já começava a esmurrar o volante quando Clarice colocou a cabeça pela janela e lhe deu um longo beijo.

– Amanhã eu te ligo, tá?

Antes de subir, Clarice fez algo que o deixou atônito. Ela levantou o vestido no meio da rua, tirou a calcinha, sem pressa, como se estivesse no lugar mais discreto do mundo e a entregou para um estupefato Martin.

– Sonha comigo – ela disse antes de subir correndo as escadas da portaria do prédio.

Martin seguiu para casa sóbrio. Não haveria porre no mundo que resistisse ao que Clarice fez. E ela era virgem! Mesmo para ele, que tivera uma boa quantidade de mulheres na cama, a virgindade era quase uma abstração. E encontrar uma como Clarice, linda, gostosa, inteligente, com 20 anos e morando no Rio ainda intacta era praticamente uma impossibilidade. Ainda mais com a experiência – ele só podia definir assim – para deixar um sujeito mais velho como ele completamente louco de tesão. Tirar a calcinha daquele jeito, como uma menina fazendo uma travessura, tinha sido o golpe final. Martin estava apaixonado.

Começaram um romance tórrido, apesar de nunca realizarem a apoteose mais óbvia. Apesar de virgem, Clarice nunca poderia ser taxada como inexperiente. Gostava de fazer sua peraltices com Martin nos lugares mais extravagantes. Cinemas, boates, festas, nenhum lugar era perigoso ou indiscreto demais para ela. Martin enlouquecia, mas raramente pedia para que consumassem a transa. Quando ela dizia que seria no tempo certo, ele respeitava e aguardava.

Ficava imaginando com seria a primeira vez com ela. Sentia seu fogo e sabia que Clarice era a mulher da vida dele. Depois de deixá-la em casa, era inevitável que se masturbasse com alguma das calcinhas que ela lhe dava, que já estavam em um número considerável. Já era um hábito Clarice lhe presentear com suas lingeries, sempre que tinha quase chegado a foder. Não achava que fosse provocação dela. Via mais como uma compensação dela, por não ceder todo seu corpo para ele. Estava acostumado, e as vezes até as pedia.

Um dia Clarice chegou de surpresa à casa de Martin, tarde da noite. Tinha dito que viajaria com os pais e só voltaria no dia seguinte. Queria fazer uma surpresa para o namorado e o levou direto para o quarto. Ele estava acostumado com esses arroubos de paixão de Clarice, mas nunca acontecera na sua casa. Era um pedido dele: era um território perigoso demais para que ele se controlasse. Clarice o jogou na cama e se despiu sem dizer uma palavra, diante de um aparvalhado Martin. A primeira visão por inteiro do corpo perfeito de Clarice foi o bastante para que Martin tivesse a maior ereção da sua vida. Ele estava até com medo de gozar sem que ela sequer o tocasse. Clarice se deitou ao lado dele e tirou ela mesmo a roupa de Martin, que preferiu deixá-la comandar o espetáculo. Ela subiu nele, ambos nus, e se beijaram.

Acontece que depois de terem transado, Martin percebeu algo estranho. Ficou mudo após a rápida trepada, deitado ao lado de Clarice, pensativo. Ela notou que algo tinha acontecido e perguntou o que era.

– Acho que você sabe o que é, Clarice. Se você me falasse seria melhor. Não me faça perguntar.
– Do que você está falando? Não achou bom?
– Eu não sou criança, Clarice. Não me trate como uma.

Clarice se calou por uns instantes, preocupada. Depois olhou para Martin.

– Eu prefiro que você me diga, Martin. O que houve?
– Se você quer assim – respondeu, sentando na cama – Clarice, você não era virgem.

Ela não respondeu. Pegou o lençol e cobriu o corpo, sem dizer palavra. Nem precisaria. A acusação estava
confirmada pelo olhar perdido de Clarice.

– Por que, Clarice? – perguntou, sem olhar para namorada.
– Martin, olha...
– Clarice, a verdade, por favor. Eu não quero mais ouvir mentiras. Você não precisava ter inventado isso.
– Eu queria que fosse diferente com você. Eu estava virgem, queria ser, pra você. O que eu tinha vivido antes não tinha importância. Você foi meu primeiro homem, o primeiro a realmente valer a pena.
– E você acha que um cabaço ia fazer alguma diferença, porra! – disse Martin, exaltado – Se você me pedisse um tempo antes de transar comigo, eu entenderia e te respeitaria da mesma forma.
– Então é isso? Por causa do tempo que demoramos para transar?
– Você não entende, não é? Não é pela merda do tempo, nem mesmo pela mentira em si. É pela falta de necessidade da mentira.
– Meu amor, me per...
– Nem termine a frase, Clarice. Vai embora.

Ao terminar de contar sua história, eu também não entendi o porque da explosão do meu amigo. Martin parecia realmente apaixonado por Clarice, como eu nunca tinha visto antes. Se não era pelo tempo, nem pela mentira, o que o teria levado a ser tão irredutível em não perdoá-la?

– A ilusão que ela criou da virgindade – me explicou, chorando – seria minha redenção também. Eu não estava com ela apenas por sexo, como era com as outras. Eu esperaria por ela, pelo resto da vida. Era o que eu achava.
– Então foi pela mentira.
– Mas não pela mentira dela, e sim por me fazer ver a mentira em que eu vivia. Quando percebi a farsa, me
enraiveceu não a falta de honestidade, mas o fato dela não ser virgem. No fundo estava me enganando, queria mesmo era sua virgindade, como um troféu especial. Sem isso, ela não era diferente das outras. Pensei que a amava e estava amando um hímen.
– Tá. Mas então não vejo razão pro seu estado lastimável. Autocrítica por ser um idiota fútil e
sexista – coisa que só você não sabia – não justifica você se afundar em calcinhas e autopiedade. Se você entendeu que não era da Clarice que gostava, por que chora por ela?
– Não é por ela, mas pela dúvida. Se ela fosse realmente virgem, pode ser que eu tivesse mesmo mudado. Se no dia em que a vi naquele vestido azul maravilhoso, ela tivesse me dito que não era virgem, eu provavelmente a teria tratado como tratei todas as outras, e não teria tido ilusões sobre uma possível
mudança no meu comportamento. Estou assim por ela ter me dado uma ilusão que eu não precisava, de ter me tornado uma pessoa melhor. Estou chorando pelo o que eu poderia ter sido.
– Martin...se é por isso, vá tomar um banho e chame uma diarista. Você acabou de falar a maior quantidade de asneiras sem sentido que eu já ouvi na vida.
– Não te recrimino por não entender. Nem eu mesmo estou plenamente convicto se o que falei é certo. Mas
você tem razão. As vezes, o amor é mesmo um monte de asneiras sem sentido.