26.4.04

A Amarelinha



- Amarelinha?!? Você está falando sério?

O pior é que Mateus falava. E ao reparar nisso, Fernanda não conseguia esboçar uma palavra. Só conseguia manter, sem o menor esforço, sua cara incrédula.

- Isso mesmo. Vamos decidir nosso futuro brincando de amarelinha. Nossos desentendimentos são tão surreais que só uma solução só pode surgir de uma decisão louca. Ou nós chegamos no céu e ficamos juntos ou seguimos caminhos diferentes.

Fernanda continuou muda, olhando estupefata para Mateus. Esses acessos de infantilidade que beiravam a insanidade eram um dos motivos das suas constantes rusgas. Segurou o acesso de raiva que estava prestes a ter e resolveu ver até onde ia mais essa demonstração de irracionalidade do marido. Ou ela fazia isso ou partiria para agressão.

- E como vamos fazer isso? - falou Fernanda, com a voz mais calma que pode.
- Fácil. Nós dois vamos jogar. Se algum dos dois conseguir chegar até o céu, esqueceremos nossos desentendimentos e viveremos felizes para sempre. Com nós dois jogando, teremos o dobro de chances de continuarmos juntos.
- E se nós dois perdermos?
- Aí é o destino: nos separamos.

Era o caso de se pensar se, depois de uma idéia esdrúxula dessas, valia a pena continuar com Mateus. Colocar três anos de casamento em jogo dessa forma só podia significar duas coisas: um descaso total com o relacionamento ou uma doença cerebral crônica. Fernanda observava o marido fazendo a amarelinha no chão de barro irregular e não sabia se chorava ou se gargalhava.

- Veja, Nanda. Estou fazendo um céu beeeeem grande pra gente.

Decidiu ver até onde ia a loucura de Mateus. Vendo-o agachado no chão, riscando o chão com um caco de telha, chegou a achar a história bonitinha. Esse pensamento não durou mais que dez segundos. Terminado o desenho, Mateus se levanta e oferece uma pedra para Fernanda.

- Quer começar?

Fernanda toma a pedra das mãos do marido e, sem olhar para Mateus, se posiciona na frente do desenho da amarelinha. Ela quase não acredita que está tomando parte dessa história. Se pergunta o que diriam sua mãe e suas amigas se visse a cena. Ela fecha o olho e joga a pedra. Ela quica no chão e quase sai do primeiro quadrado.

- Cuidado! Jogando assim parece que você quer que terminemos mesmo. - falou Mateus.

Fernanda olhou para trás, com ódio indisfarçado. Sem responder ao comentário do esposo, ela pula o quadrado onde está sua pedra e segue numa perna só, como mandam as regras do jogo. Completa a volta e apanha a pedra do chão, sem falhas.

Mateus bate palmas, que são retribuídas pela Fernanda com um sorriso sarcástico. Ela só ficava imaginando até onde iria isso tudo. Será que Mateus achava que, finda a brincadeira sem falhas, os problemas deles desapareceriam?

Jogou a pedra no segundo quadrado e fez o percurso sem problemas. Achou que teria mais dificuldades. Há quanto tempo não brincava de amarelinha? 15, 20 anos? Quando tirou a pedra do terceiro quadrado, viu que ainda estava afiada. Jogou a pedra no primeiro dos quadrados duplos e foi a sua busca. Estava chegando nela quando Mateus grita.

- Epa! Errou!

Ela não entendeu. Permaneceu parada, olhando para o marido, esperando explicações. Onde errara? E quem era ele para achar uma falha dela em um jogo que ela jogou muito mais vezes? Ela era uma menina, diabos! Nenhum menino pode corrigir uma menina num jogo de amarelinha!

- Quando você pegou a pedra, era pra continuar num pé só! Você abaixou o pé na casa do lado! Você errou Nanda!

Ele tinha razão. Na hora, Fernanda não sabia se estava mais irritada com o erro numa brincadeira que ela estava cansada de saber ou se pela felicidade de Mateus denunciando seu erro, mesmo que isso tenha reduzido à metade a chance deles permanecerem juntos. E a metade que ficou era a mais fraca, com certeza.

Saiu de cima da amarelinha mais irritada do que entrou. Chegou a pensar que perder o marido não era nada, comparado a perder o amor próprio, por ter sido corrigida no seu jogo. Antes disso tudo, perdeu a paciência.

- Chega, Mateus. Vamos como adultos, uma vez na vida.
- Calma, Nanda. É a minha vez.

Mateus foi para frente do desenho no chão e jogou a pedra. Sem problemas. Ele fez o percurso sob o olhar de reprovação da mulher, visivelmente fula da vida, porém calada. No segundo e no terceiro quadrados, a mesma eficiência. Vendo o marido jogar, a raiva pela futilidade da disputa virou despeito, por vê-lo sair-se melhor que ela. Quando Mateus passou incólume pelo pedaço onde ela humilhantemente tinha falhado, já não havia mais o ciúme pelo seu desempenho: ela estava torcendo por ele.

E Mateus seguia, firme em direção ao céu da amarelinha, que na sua mente distorcida, significava uma nova fase no relacionamento dele com Fernanda. Quando jogou a pedra na casa mais distante do desenho, o próprio céu, ela ricocheteou e quase saiu do desenho. Mateus ouviu claramente o suspiro de alívio de Fernanda, mas não deixou que ela notasse. Seguiu em frente. Foi numa perna só para o primeiro, segundo e terceiro quadrados. Fincou decidido os dois pés nas casas juntas e seguiu, corretamente, num pé só, para a próxima casa. Mais duas casas juntas, feitas perfeitamente. Faltava agora um quadrado antes do céu.

Mateus parou um momento, respirou fundo e olhou para Fernanda, que não conseguia mais disfarçar a torcida. Pulou, num pé só a casa que faltava. Perdeu o equilíbrio por um momento. Com o susto, Fernanda soltou um grito.

- Cuidado!

Ele ainda bambeou mais um pouco, mas conseguiu se fixar. Deu um salto para cair com os dois pés no céu e, pelo menos para ele, numa nova fase do casamento. Ele deu um pulo de felicidade e correu ao encontro da Fernanda.

- Viu? Eu consegui!
- Retardado... - falou Fernanda, abraçando-o e dando-lhe um beijo.
- Agora vai dar tudo certo entre nós! E nem vem que eu vi você torcendo por mim...
- Pois é. Acho que sua doença mental é contagiosa.- Fernanda respondeu, rindo.
- Não reclama. Essa sua torcida não era pelo meu sucesso no jogo, e sim pelo nosso sucesso.
- Isso mesmo...
- Então, por uns momentos, você acreditou na minha solução, mesmo ela sendo meio louca.
- Meio é pouco...
- Então. Essa foi a prova! Ainda acreditamos em nós juntos. Não interessa que o meio tenha sido um jogo de amarelinha.
- Hmmm... Pode ser. Quem sabe se nessa sua mente alucinada não existe uma lógica, ainda que distorcida?
- É o que dizem: o coração tem razões...
- Olha: me chame prum jogo da velha pra resolver nossas diferenças, mas não me venha com um chavão desses. - disse Fernanda, cortando a frase dele.
- Tá bom, tá bom...Eu faço o que você quiser agora. Acha que eu sou louco de te contrariar?