21.5.04

O Escritor Arrependido



"O velho homem lava suas calças em plena Presidente Vargas, de manhã. Com esmero, passa o sabão pelo quase farrapo, dando especial atenção aos fundilhos da peça. Está sol, e apesar de ser inusitado varal, a calçada da movimenta avenida é perfeita para que sua roupa seque"

- Eu não aguento mais, André. Nunca fui um sujeito obsessivo. Acho ridículo isso, até esteticamente falando.
- Chico, você tem que relaxar. Tente olhar as coisas sem esse tipo de obrigação. Isso passa! Internação é um exagero.

O carro de André passa sem pressa pela Av. Presidente Vargas, em parte por conta do trânsito, em parte porque ele precisa prestar atenção não só ao trânsito, mas ao que diz Francisco. Depois do seu amigo ter conseguido se tornar o que sempre quis - um escritor respeitado - ele resolveu aparecer com manias estranhas. Segundo o Chicão, como era conhecido desde a infância por André, ele não conseguia mais pensar de forma normal. Tudo o que ele presenciava se tornava cena literária. Era como se a realidade à sua volta não passasse de uma obra, escrita por algum ser superior.

- Bom, pra alguns religiosos mais poéticos, é isso mesmo. Deus escreve certo...
- Porra, André, não brinca com isso! Estou ficando maluco com essa história.

"Os garotos correm pela avenida, com suas caixas de engraxate. A depor contra eles, sua cor e o preconceito já estabelecido e velado: 'preto correndo? Devem ter aprontado alguma!'. O erro das crianças foi ter passado na frente de um guarda".

- Que foi agora, Chicão? - pergunta André, vendo o amigo abaixar a cabeça e fechar os olhos com força.
- Eu não paro de pensar desse jeito! Tudo que eu vejo vira livro!
- Porra, Chico, e não foi sempre assim? Não é isso que te distingue dos não escritores? Não é esse o seu dom?
- Claro que não! Você acha que Machado de Assis pensava em prosa? Ou que Eça de Queiroz não pensava coisas corriqueiras de vez em quando? Até essa nossa conversa já virou palavra escrita, André.
- Jura?

"O que o amigo não entendia é que isso era um comportamento obsessivo, o que não condizia com sua mente analítica. Ele sempre trouxe seus pensamentos em rédea curta e agora parecia que ele estava precisando doma-los."

- Isso não é engraçado, André.
- Para de dramatizar, Chicão! É por isso que viviam te chamando de viado quando era moleque.
- Não era por isso. Era porque eu não participava das brincadeiras estúpidas da turma.
- Tá bom.

André entra na Rio Branco e repara que o problema do Chico é mais grave do que ele imaginava. Pelo menos para seu amigo, que parece estar levando essa questão muito a sério. Ele percebe a cara triste do Chicão olhando pela janela, as vezes mantendo o olhar em alguma pessoa em particular, virando o pescoço para ver a cena até onde o andar do carro permitisse.

"A velhinha subiu com dificuldade no ônibus, apesar da ajuda do menino que pode ser seu neto, talvez bisneto. A caixa na mão do moleque denuncia: são pedintes e vão explicar para as pessoas de classe média que se dirigem para suas casas confortáveis na Zona Sul que é melhor pedir do que roubar"

- Me fala Chicão, sério dessa vez. E não foi sempre assim? Você desde criança tem essas...visões.
- Mas não eram tão recorrentes. Eu também acredito que isso possa ser uma das coisas que me fazem um escritor. Não chegaria a chamar de dom, mas apenas uma forma diferente de ver o mundo. Acontece que agora eu só tenho esse ponto de vista. Pra mim, uma banca de jornais não é apenas uma banca de jornais.

" Só Deus sabe o quanto Batista lutou para conseguir comprar sua banca. Anos e anos acordando às três da manhã para organizar os cadernos dos jornais, aprendendo a rotina da profissão..."

- Acorda, Chico! - gritou André, balançando o amigo - Sem devaneios, porra!
- É esse o problema, André!!! Eu tenho vivido em devaneio! Eu não raciocino mais, eu crio metáforas!

André ficou quieto um momento, pensando no que Chico tinha acabado de dizer. Se estava nesse pé, a coisa toda realmente não era tão simples como ele imaginava. Será que o amigo precisava de algum tipo de tratamento? Seria isso uma doença?

- Eu não quero mais isso, André. Não quero mais olhar a vida e pensar em escrevê-la. Ia dar um livro muito extenso, e eu não gosto de escrever muito, você sabe. - disse Chicão, com um sorriso triste.
- É bom te ver sorrindo.
- Vá se desacostumando com isso, André. Não que eu vá parar de sorrir. Eu não quero mais ser o relator das pequenas misérias cotidianas. Não quero mais ser o escriba que tira algo bonito desse cotidiano decrépito...
- Chicão, você está me assustando. E usando adjetivos incomuns para as palavras...Não gosto disso.
- Calma, André - falou Chico, rindo - No mínimo você está pensando que vou me matar.
- Claro! Você tem essa mania de ser dramático. Sempre te chamaram de viadinho por causa disso.
- Não era por isso, caralho...mas isso não importa. Eu não vou me matar, seu idiota. Eu tenho cara de quem se mata?
- Tem razão, não tem mesmo. É muito gay pra isso - respondeu André, rindo.
- Tá bom, humorista. Aí, chegamos.

André para o carro em frente ao prédio do Chico, na Glória. Chico desce e da a volta no carro, para falar com o amigo. Estende a mão para o aperto.
- Se cuide André.
- Ih....Para com isso, Chico. Você está me deixando preocupado. Não vá fazer nenhuma loucura, porra.
- Claro que não André, não seja estúpido.
- Tá. Bom...deixe de ser viadinho. Depois a gente se vê.
- Tá. Até.

"O carro parte com uma das poucas coisas que o escritor arrependido vai sentir falta, que são suas amizades. O escritor pega as chaves de casa no bolso, abre a portaria do modesto prédio, sem porteiro. Pega o elevador, sobe até o sétimo, sai do elevador e entra no 701. "Reclusão!" pensa o escritor, antes de fechar a porta atrás de si e tentar imaginar essa nova fase como um recomeço."