8.9.05

O Bloqueio

(para Thereza)



Tobias vivia sob a sombra do relativo sucesso do seu primeiro e único livro lançado. As críticas foram muito boas, as vendas nem tanto, mas até hoje são um reforço necessário aos vencimentos de professor universitário.

A boa recepção da sua estreia como escritor ajudou também sua carreira acadêmica. Depois de ver seu nome sendo bem falado nos círculos intelectuais mais gabaritados, Tobias recebeu convites para entrevistas e palestras e surgiram algumas oportunidades de emprego em melhores faculdades. Ele aproveitou tudo como pode. Não se sentia melindrado com a súbita atenção que lhe era dada. Sabia que seu trabalho merecia todo esse reconhecimento e se agora colhia os louros era por merecimento. Durante algum tempo pode viver melhor, não sem deixar de demonstrar orgulho e satisfação. Todos esperavam pelo próximo livro de Tobias, no qual - pelo menos assim acreditava a crítica especializada - ele mostraria a maturidade artística para entrar na galeria dos grandes escritores do seu tempo.

Mas o segundo livro não vinha.

Nos 3 primeiros anos a fama de menino prodígio das letras nacionais (tinha 27 anos quando saiu seu livro) lhe garantiu uma estabilidade nos meios literários. "Há de se ter paciência com escritores" todos diziam. Durante esse tempo, foi festejado no novo emprego, ainda o convidavam para escrever artigos e volta e meia recebia afagos da inteligenzzia em geral.

Depois de 5 anos seu nome era menos lembrado nos suplementos culturais. Algumas vezes, uma entrevista, sempre perguntando porque do sumiço do autor. Já não era "A" novidade na universidade em que trabalhava e a antiga admiração dos alunos se foi com eles, que já estavam se formando. Chegou a perder uma coluna que mantinha em um jornal. A única pessoa que sempre o procurava era seu editor, sempre perguntando quando Tobias teria novidades para ele.

- Em breve, em breve. Estou trabalhando nisso - era sua resposta padrão, há anos.

A realidade que ninguém poderia imaginar era que Tobias não conseguia mais escrever. Tinha perdido as contas de quantas páginas já havia ido pro lixo por não achar aceitável o que estava nelas. Enganava a todos falando que estava terminando seu próximo livro e quando perguntavam algo sobre o que tratava desconversava. Tinha inventado vários argumentos diferentes para pessoas diversas. Isso chegou a criar uma mística em torno de tão esperado livro. Ninguém sabia ao certo quando ou do que trataria o próximo trabalho do Tobias.

O problema é que realmente ninguém sabia. Nem ele mesmo.

- Por que você não viaja? Tira uma licença da universidade, vai pro exterior. Espairece as idéias. Isso pode revigorar suas ideias. Se você prometer me trazer umas 100 páginas, consigo arrancar mais um adiantamento na editora. Vai ser difícil, mas eu tento.

Mário, seu editor, sempre tentava incentivar Tobias. Não apenas por motivos comerciais. Acreditava no seu talento e acabou se afeiçoando aquele cara que há alguns anos não passava de um rapazote cheio de confiança e um manuscrito debaixo de braço.

- Não é uma questão de sair do lugar, Mário. O problema é comigo. Detesto usar esses chavões, mas estou com um bloqueio. Não sei o que fazer. Ultimamente nem dormir eu tenho conseguido.
- Tobias. Eu te conheço, rapaz. Quando fez aquela viagem pra Europa você voltou cheio de idéias ótimas. Aliás, que fim levaram todos aqueles argumentos.
- Lixo, todos. Eram uma porcaria.
- Não eram Tobias! Você precisa desenvolver as histórias com mais paciência. Não pode ir desperdiçando boas idéias assim.
- Não eram boas.
- Você não deu chance para elas virarem boas. Vai, eu te empresto a grana, se for o caso. Você me paga com calma. Se naquela viagem de dois dias você voltou mais criativo, imagine depois de algumas semanas.
- Isso não vai adiantar, Márcio. Eu me conheço.
- Porque ao menos não tenta?

Tobias não gostava muito desse tipo de intrusão na sua vida, esses conselhos impostos e não pedidos, essa forçada de barra. Mas não era todo dia que tinha uma oferta dessas. Viajar para Europa, sem se preocupar muito com dinheiro? Não era de se recusar. E, no final das contas, podia realmente ajudar de alguma forma com seu livro.

- Vou pensar - disse, sem querer dar o braço a torcer.

Foi pro micro assim que Mário saiu. Tentou escrever um pouco, já com a cabeça em outro continente. Não adiantou. Não se satisfez com nada que escreveu. Apagou o arquivo e resolveu deitar. Imaginou que descansado e com novas perspectivas pudesse render mais.

Acordou no meio da madrugada, depois de um sono carregado de sonhos estranhos. Não se lembrava exatamente com o que havia sonhado. Levantou-se, foi até a cozinha, bebeu uma água. Na volta para o quarto, viu seu computador desligado, no escuro do seu escritório. Resolveu tentar escrever um pouco. Ainda estava com sono, mas achou melhor dar um tempo antes de voltar à cama. Queria desanuviar um pouco do sonho que teve. Escreveu por uns 40 minutos. Para sua surpresa, achou bom o que havia escrito. "Deve ser o sono", pensou. Resolveu salvar o texto e ir dormir. Pela manhã, de cabeça fresca e descansada, olharia o que fez com mais cuidado.

Os resto da noite também foi povoada de sonhos, dessa vez mais claros. Não conseguia se ver neles, o que achou bastante estranho. O normal era tomar parte das histórias - histórias? Por que chamar seus sonhos assim? - criadas pelo seu subconsciente, não só tomar parte, mas ser seu protagonista.

Dessa vez sonhava com um rapaz chamado Calvin, filho de americanos que moravam aqui na época do governo militar. Via nitidamente sua saga, evoluindo de um mero garoto mimado, cria de um lar formado por um presidente da subsidiária local de uma grande multinacional e uma intelectual da direita ianque a um combatente nas linhas de frente da clandestinidade esquerdista. A história era boa e passava como um filme em sua mente. Mas tinha a clara sensação de que já a conhecia, até seus mínimos detalhes.

Acordou com Calvin e suas aventuras na cabeça. Poderia até escrevê-la, mas não achava justo. Sentiria-se plagiando a si mesmo. Quis deixar as invenções do seu inconsciente para sua mente, sua real escritora. Foi até o micro. Lembrou-se que tinha que reler o que havia escrito na noite anterior. Não conseguia se lembrar do que se tratava, só tinha a impressão de que havia gostado.

Abriu o arquivo. Levou um susto. Tudo o que havia escrito era sobre Calvin. Contava como a família do seu herói inconsciente havia chegado ao país e terminava exatamente onde começara o sonho que tinha tido quando voltou a dormir.

Não entendia o que havia acontecido. Nunca se utilizou do que criava dormindo antes. Sempre fora um escritor cerebral, com método. Precisava estar sempre lúcido para escrever. Imaginava suas tramas inteiras, personagens, situações, desfechos, antes de sentar para escrever. No máximo, fazia anotações, que utilizava quando estava diante do teclado. Por que dessa vez criava assim, sem querer?

Qual foi seu raciocínio, a seguir? Não queria usar a história do Calvin, não achava sua, apesar de ser. Mas ter descoberto que havia começado a escrevê-la antes do seu último sonho lhe fez cogitar que teve o sonho influenciado pelo que havia escrito e não o contrário. E, pensando bem, quem era ele para tentar explicar como funciona a inspiração? Ainda mais quando ela chega com tanta força, tão bem estruturada e, melhor, com tão bom argumento. Gostava do Calvin e da sua vida. E ele não podia desperdiçar uma boa história.

Sentou-se e colocou no micro todo o sonho que tinha tido. Ficou bom, bom como há muito não conseguia escrever. Estava satisfeito. Em menos de uma hora de trabalho, já tinha escrito cerca de 30 páginas. Com essa velocidade, teria um livro inteiro, o tão esperado segundo livro, em menos de um mês, já contando a revisão. Ligou para Mário. Teve que deixar um recado em sua secretária eletrônica. Contava apenas que tinha boas notícias e pedia que ele retornasse assim que pudesse.

Saiu para dar uma volta. Era uma bela manhã de sábado. Deu uma caminhada no Centro da cidade, que além de sempre inspirá-lo, era também o cenário da história. Passou pelos prédios antigos, ruas seculares, feliz consigo mesmo. Curiosamente, apesar de estar imerso nos lugares por onde Calvin viveria suas aventuras, não conseguia pensar na continuação da história. "Estou muito excitado com isso tudo, é isso", pensou. Imaginou que estando diante do micro e do que já havia escrito, a história seguiria seu fluxo normalmente e ele escreveria com a mesma fluidez. Caminhou mais um pouco, almoçou um sanduíche no seu boteco preferido, tomou alguns chopes para acompanhar. Achava que merecia. Chegou a se desligar da trama parada no meio do caminho. Sabia que, quando chegasse à casa, tudo se resolveria.

Só que não se resolveu. Diante do arquivo aberto, com metade da folha no monitor em branco, não saia nada. Forçava a colocar Calvin pelas ruas que tinha acabado de passar e nada o agradava. Tentou diversas opções, nada o agradava. Se exasperou um pouco. Por mais que se concentrasse, o resto da história não vinha. Não sabia o que fazer. Estava apagando pela décima vez um parágrafo que detestou quando tocou o telefone. Atendeu com raiva.

- O que aconteceu? Sua voz não é de "boas notícias" . Era o Mário.
- É você...Eu tenho boas notícias. Mas agora estou meio irritado, só isso.
- O que aconteceu, afinal? Se tem boas novas, por que a irritação? E quais são as boas notícias?
- Comecei a escrever um livro novo ontem. E está bom. Muito bom, na verdade.
- Jura?!?!?! Mas isso é maravilhoso, Tobias! Por que isso haveria de te irritar?
- Não foi isso que me irritou, obviamente. O que me irrtou foi eu ter escrito quase 30 páginas em poucas horas...
- O que você disse?
- Que não foi isso que me irritou.
- Não! 30 páginas em poucas horas!?!?! Meu filho! Isso é demais! Você voltou a velha forma! Tenho que ler isso agora. Estou...
- Calma, Mário! Você está muito empolgado. Nem me deixa falar....
- Claro, claro...desculpe. Mas você entende esse empolgação, não?
- Entendo. Mas o que me irrita é que já estou há mais tempo diante do micro do que quando escrevi as 30 primeiras páginas e até agora não escrevi uma linha que prestasse.
- Agora é você quem precisa ficar calmo, Tobias. As coisas não funcionam assim, você bem sabe. Deixe a história maturar dentro de você. Você teve um arroubo criativo. Não esperava que manter o mesmo ritmo, não é mesmo?
- Não o mesmo ritmo. Mas esperava ter algum ritmo. Ainda mais depois que passei a tarde no Centro, no lugar onde se passa a ação do livro.
- Tá explicado! Você almoçou naquele bar, não foi?
- Foi, comi um sanduba e bebi uns chopinhos. Mas o que isso tem a ver?
- Quantos você bebeu?
- Uns 4 ou 5. Estava alegre e....
- E você ainda que escrever com todo esse álcool na cabeça, Tobias?
- Eu já escrevi com muito mais álcool na cabeça, Mário.
- Eu sei, eu sei. Mas lembre-se: você não é mais o prodígio que era. Descanse um pouco, clareie suas idéias e volte ao trabalho. Mais tarde eu passo aí.

Tobias não concordava com a teoria etílica do seu bloqueio repentino, mas achou melhor mesmo dar uma descansada. Se empolgou na caminhada e estava mesmo cansado. E, isso não podia negar, os chopes davam mesmo uma certa sonolência.

Acordou assustado, com a campainha tocando. Olhou o relógio, eram onze da noite. Só podia ser o Mário. Levantou-se e abriu a porta.

- Desculpe, Tobias. Você não me ligou e não aguentei esperar. Tinha que ler os primeiros capítulos logo.
- Fazer o que, não? Você nunca primou mesmo pela paciência. Entra. Vai precisar esperar eu imprimir o arquivo.
- Isso não demora muito.

Foi até o computado, que havia deixado ligado com o arquivo aberto antes de deitar. Em alguns segundos o barulho da impressora puxando as folhas em branco começou. Mário estava mesmo ansioso, foi pegando logo a primeira página impressa e começou a ler o texto. Tobias achou engraçado o desespero do amigo. Enquanto via a impressora funcionar, leu o último parágrafo que havia escrito.

Aconteceu de repente. O resto da história veio inteiro na sua cabeça, de uma vez só. Quase podia ver as palavras digitadas na folha do seu monitor. Começou a digitar apressado.

- Tobias, até agora está muito bom....o que está fazendo?
- O que parece que estou fazendo, Mário? - respondeu, sem parar de digitar ou mesmo olhar para o amigo.
- Sei que está escrevendo. Mas você nunca escreveu na frente de ninguém, nem de mim.
- Pois é. Mas o resto veio agora. Não posso esperar você acabar de ler tudo, se mancar e ir embora.

Mário estava bestificado. Tobias nunca havia permitido que ninguém ficasse por perto quando escrevia. E nunca tinha visto também alguém escrever tão rápido. Tobias parecia uma estenógrafa de tribunal.

- Você....-começou Mário, com medo de atrapalhar - você quer que eu saia?
- Não precisa. Desde que você fique quieto - disse Tobias, ríspido.

Mário nem conseguia ler direito as folhas que tinha nas mãos. Estava espantado com Tobias. Ele parecia um possesso. A impressão que tinha era de que o teclado não resistiria mais vinte minutos de tecladas tão firmes e rápidas. Antes que conseguisse terminar de ler as 30 páginas impressas, Tobias gritou um "acabei". Tinha escrito mais vinte e tantas folhas, num fôlego só.

- Acabou o livro?
- Claro que não, Mário. Não tenho mais ideias, por hora. Só isso.
- Mas...Você viu como escreveu? Parecia possuído.
- Quem garante que não era exatamente isso? - disse Tobias, enigmático.

Mário terminou as folhas que tinha nas mãos, depois terminou as que Tobias tinha acabado de criar. Estava pasmo. Além de ser um excelente texto, numa primeira olhada não precisava sequer de uma revisão. Parecia pronto para ir ao prelo.

- Não exagera, Mário. Ainda tenho que revisar isso. Com calma. - disse Tobias, depois de ficar em completo silêncio enquanto o amigo lia. Do canto escuro da sala em que estava, fumava um cigarro. Dele só se via a fumaça.

Ficaram em silêncio por uns momentos. Mário sabia que algo estranho se passava com Tobias. Tobias também sabia que não estava agindo normalmente. Mas o que os dois sabiam é que algo estranho não é necessariamente ruim. E se essa mudança repentina no comportamento ajudasse Tobias a escrever, não haviam do que reclamar. Pelo contrário.

- Acho que vou dormir, Mário. Quero escrever mais pela manhã.
- Tá certo. Está tarde mesmo. Se escrever algo cedo, me manda por e-mail.
- Combinado.

Tobias foi para cama, sem querer pensar muito no que se passava. Não estava com sono, mas deitou-se. No escuro, acendeu outro cigarro. Não tentava mais pensar em Calvin e no desenrolar dos seus feitos. Só pensava no porque de precisar sonhar para escrever.

Acordou só no dia seguinte, com o sol esbofeteando-lhe o rosto. Correu para o livro. Tinha seu último sonho ainda vívido na cabeça e não queria esquecer nenhum detalhe. Escreveu tomado pela febre que o acometia desde que começou a ser um relator de sonhos. Em 45 minutos tinha escrito mais 20 páginas. Então a fonte secou.

Mandou as novas páginas para o Mário e foi tomar um café na padaria. Voltou para casa, conversou com Mário pelo telefone por uns minutos, leu os jornais de domingo, ligou a tv apenas para ver que não havia nada que prestasse. Voltou para o micro.

- Não vai adiantar nada, eu sei - pensou.

Era fato. Suas idéias só surgiam na inconsciência do sono. Estava com quase uma centena de páginas escritas, algumas, das melhores que jamais havia produzido. E não sabia de onde vinha a ideia criadora. Era frustrante. Pior, exasperante: saber que talvez nunca considerasse seu de verdade o que pode ser o melhor trabalho já feito por ele era de matar.

- Ora, diabos! Os sonhos são ou não meus? Por que me envergonhar disso? - pensou depois de meia hora estático de frente para as páginas no monitor.

Não tinha muito o que fazer. Domingos são dias normalmente chatos e esse estava especialmente monótono. Voltou para tv, ficou olhando os programas, sem realmente ver. Depois de algum tempo, acabou cochilando. Acordou de súbito, uns 15 minutos depois. E com novas ideias. Escreveu apenas seis páginas. Teve a certeza de algo que já desconfiava: a duração do seu sono determinava o andamento do livro.

Tobias então teve que se adaptar a esse novo método de escrita, que era seu, mas que não fora criado por ele. Passava a maioria do tempo dormindo. Não saía mais de casa. Quando tinha afazeres na rua, andava com um bloco e uma caneta, para a eventualidade de um cochilo no ônibus ou em alguma fila. Seus amigos ligavam e sempre quem atendia era sua secretária eletrônica. Falava apenas com Mário, mais para avisar que tinha mais material e que o enviaria em breve. O amigo estava adorando o livro, só não compreendia a mudança de comportamento de Tobias. Durante um tempo, resolveu aceitar que talvez fossem excentricidades de artista. Chegou mesmo a pensar que seu novo modo de agir fosse necessário para que Tobias voltasse a escrever. Quem garante que a fórmula antiga, que usou para escrever o primeiro livro, teria que funcionar no segundo?

Só que o tempo foi passando e o livro não terminava. Tobias tinha planejado um volume com no máximo 300 páginas - o que ele sempre achou um exagero para contar uma história - e ele já estava com quase 500. Mário dizia para deixar fluir a trama, para terminar quando ele pensasse em um ótimo final para o livro. Mas o final não vinha. Os sonhos sempre ditavam os rumos de Calvin, exatamente na seqüência de um para o outro, mas aparentemente não estavam sequer próximo de um encerramento.

Apesar de estar gostando muito do resultado, Tobias começava a ficar tenso. Que esse segundo livro era muito melhor que o primeiro, ele não tinha dúvidas. Mas por não ter planejado a estrutura da história, ele não tinha o controle sobre ela. Não sabia como, e pior, nem quando o livro terminaria. Isso começava a tirá-lo do sério.

Ele queria dar um final logo para o livro, apesar de saber que ele estava tão bom que tinha que acabar por si mesmo. Tomou a decisão de não sair mais de casa enquanto não colocasse um ponto final ao livro. Comunicou sua decisão ao Mário, pediu que ele resolvesse o que aparecesse. O amigo entendeu e até apoiou.

- Se você precisa disso para acabar, ótimo. - respondeu.

Ficou semanas sem ver ninguém além do Mário. Dormia, acordava e escrevia febrilmente. Essa era sua rotina diária, sem modificações. Não via mais TV, não lia mais jornais. Era apenas ele, seus sonhos e seu livro. E o fim não chegava.

A ansiedade de por um fim definitivo à história causou a única coisa que não poderia acontecer: Tobias começou a ter insônia. Tentava dormir, girava na cama e despertava. Não chegava a escrever sequer duas, três páginas. Ligou para o editor.

- Mário, vou parar de mandar as partes do manuscritos para você.
- Ahn? Mas....por que isso agora, Tobias?
- Acho melhor, Mário. Isso me pressiona.
- Tobias...que tal parar de viadagem? Qual é o problema, afinal?
- Não consigo terminar o livro, não parece óbvio? E qualquer tipo de pressão atrapalha.
- Não vejo como isso pode ser uma pressão.
- Pra falar a verdade, nem eu. Mas eu prefiro te mandar tudo quando acabar.
- "Acabar" seria bom mesmo. Você já está na página 700. Vamos ter que dividir seu livro em dois. Ou três.
- Nem pense nisso, Mário! O livro é único e....Deixa pra lá! É por essas e outras que não vou mais te mandar o que estou escrevendo.
- Quem sou eu para atrapalhar o grande "artista" - disse Mário, irritado - se você acha que vai te ajudar a terminar logo esse diabo de livro, é melhor pra todos. Você parece um lunático desde que criou esse Calvin.

Tobias quase contou para o amigo o motivo do mistério, mas achou que se Mário soubesse que ele estava plagiando o próprio subconsciente - ou que pelo menos acreditava nisso piamente - aí mesmo que seria chamado de louco. Desligou o telefone e tentou dormir. Não conseguiu.

Resolveu sair de casa pela primeira vez depois de dezenas de dias. Era como se tivesse tido um pequeno surto. Bebeu em todos os bares que encontrou abertos, fez amizades e desafetos entre a fauna boêmia. Chegou à casa trôpego, dia já claro. Teve apenas um raciocínio ligeiramente sóbrio antes de desabar na cama.

- No estado em que estou, vou dormir tanto que conseguiria terminar uma nova versão da bíblia. - pensou antes de apagar por completo.

Durante algumas horas, Tobias dormiu como uma pedra. O problema é pedras não sonham. E foi justamente isso que aconteceu. Tobias teve um sono pesado e despovoado de sonhos. A única coisa que ele tinha conseguido com a bebedeira foi uma ressaca avassaladora. "Mesmo que eu tivesse sonhado, não conseguiria escrever nada", pensou com sua cabeça inchada e surpreendentemente ainda bêbada. Passou mal o resto do dia, prostrado na cama, sem ideias, sem sono, apenas mal estar. Agora ele sabia que álcool não ajudava. Se sua insônia continuasse essa noite, teria que tomar alguma providência.

As horas passaram, lentas. O sono de Tobias não veio. Eram duas da manhã quando ele resolveu tomar calmantes. Tomaria uma bela dose, se sentaria na frente do micro e dormiria ali mesmo. Queria acordar e já terminar com o trabalho. Antes que o trabalho terminasse com ele.

Tomou três comprimidos, que resultaram em um amolecimento físico e mental de Tobias. "Não é o bastante", pensou. Pegou mais três e engoliu com ajuda da cerveja que estava à sua frente. Sentiu sua pressão cair, estava até com frio. "Agora vem", estava ele, quase feliz. Antes de apagar pela segunda vez em menos de 24 horas, novamente Tobias teve um breve momento de lucidez.

- Talvez eu não devesse tomar esse remédio estando bêbado - foi a última coisa que conseguiu pensar.

Mário só começou a ficar preocupado na segunda semana sem contato com Tobias. Eles tinham combinado de não se falarem, nem por e-mail, até que o livro estivesse pronto. Mário se controlou para não ligar e não ligou. No meio da segunda semana sem que Tobias desse sinais de vida, pediu por e-mail que o amigo mandasse notícias. Não teve resposta. Ligou dois dias depois e ninguém atendeu. Resolveu ir até a casa do amigo. Bateu na porta e nada. Não ouvia nenhum som de dentro do apartamento. Esperou um tempo. O porteiro não via seu amigo há muito tempo, pelo menos não no seu turno. Foi até o boteco em que Tobias costumava almoçar e não o viam há dias. Perguntou ao jornaleiro, ao apontador de jogo de bicho. Ninguém sabia de Tobias.

Teve um mal pressentimento. Correu até o apartamento, chamou o porteiro, arrombaram ambos a porta. Não houve reação ao barulho provocado. Mário correu até o escritório de Tobias. Encontrou o amigo sentado na cadeira, braços pendidos, cabeça solta, boca entreaberta. A saliva escorria viscosa pelo seu peito. Mário pegou o pulso do amigo. Sentiu a pulsação, um sopro, mas estava lá. Ligou para emergência, já olhando o frasco com comprimidos em cima da mesa.

Tobias estava em coma profundo. No hospital, perguntaram ao Mário se ele imaginava porque Tobias havia tentado se matar. Respondeu que não fazia a menor ideia. Que tirando a angústia por não conseguir terminar o livro que estava escrevendo, não conseguia ver Tobias como um suicida. Muito menos quando, segundo o próprio, o amigo estava prestes a acabar a história de Calvin.

Ninguém poderia saber, mas para Tobias, a história ainda não acabou.