5.2.06

Sem noção


Sem a menor noção da realidade, resolveu desafiar o destino inevitável. Tinha alguma ideia da roubada em que estava se metendo, claro. E não eram apenas os alertas dos amigos sinceros e as célebres e várias histórias com finais infelizes que conheciam que indicavam o resultado dessa "coragem": mesmo ele, intimamente, sabia que não ia se dar bem.

- Vou fazer merda - pensava.

Mas era teimoso. Não seria uma "quase certezazinha de nada " de que se ferraria que o impediria de tentar. E seguiu firme para seu holocausto. Seus conhecidos de longa data nunca o viram tão empenhado em uma conseguir algo, no caso, se estrepar. "Sem noção é pouco!" diziam os mais chegados. Por esse tempo, a máxima "se conselho fosse bom não seria dado, e sim, vendido" era seu bordão.

Sua preparação não foi muito apurada. Pra falar a verdade, ele não fez nada, era como um carro desgovernado em direção a um muro. E os resultados, de certa forma, seriam bem parecidos. Sentia-se irreparavelmente impelido e fazer o que faria. Como um meteoro atraído pela gravidade, mesmo que isso significasse sua desintegração.

Estava decidido. Era mais forte que ele. Pegou o telefone e ligou para ela. Estava mesmo apaixonado.

30.1.06

Amadurecimento

 (O outro lado)


A última pessoa que eu esperava encontrar, ali, caminhando em minha direção como se nada houvesse acontecido era ela. Ela mudou muito, não fisicamente, mas de uma forma mais sutil, quase imperceptível para quem não a conhecesse bem. Mas para mim, a quem ela não poderia guardar segredos, um mapa completamente visitado, minha garotinha estava quase irreconhecível.

Peguei-a pelos ombros, olhando bem para o rosto dela. Era ela, lógico, mas ainda estava em dúvida. Ela sorriu para mim e a certeza veio. Ela era a mesma ainda. Nunca mudaria a ponto de perder aquela expressão luminosa que sempre teve.

Ela falou primeiro. Não devia estar tão atônita com o encontro como eu. Claro que eu não devo ter mudado tanto quanto ela. Bom...talvez eu tenha uma expressão um pouco mais triste desde que ela se foi. Agora ela voltou. E eu não consigo falar nada.

Depois de um "oi" que não pude definir se alegre ou conformado, consegui falar algo: "Você não precisava ter feito tudo isso sozinha". Idiotice, pensei na hora. Eu sempre fui o maduro entre nós dois e a primeira frase que consigo falar depois de tanto tempo sem vê-la é um lamento de garoto de 2° grau.

Uma resposta sucinta - "eu quis assim", disse ela - mostrou que apesar de ter conservado o mesmo sorriso, ela era outra pessoa. Mais segura, certo ponto petulante. Uma mulher. A "garotinha" tinha partido e essa, aparentemente, não voltaria mais.

Convidei-a para beber algo. Um pouco por falta do que falar, muito pelo choque de a reencontrar daquela forma. Vê-la impassível diante de mim, que estava visivelmente abalado, me deu uma vontade absurda de tomar umas cervejas. Caminhamos juntos, falando inutilidades, trombando nossos ombros, na falta de coragem de darmos as mãos. O bar de sempre, a mesa de sempre e as bebidas de sempre (gin tônica pra ela; uma long neck pra mim). O clima entre nós, no entanto, não poderia ser mais diverso daquele a que estávamos acostumados. O tempo e nossos atos, errados ou não, mudaram tudo o que havia.

E aquela expressão de segurança, a atitude de quem domina uma situação em que eu deveria estar no controle foi me irritando. Eu não conhecia aquela na minha frente. Seu corpo era um simulacro: dentro, havia uma desconhecida. Por isso, quando aquela pessoa que eu ignorava completamente quem era tentou ser como minha garota, puxando minhas mãos para suas coxas por baixo da mesa, eu recuei. Ela estranhou. Aquela que eu conhecia sabia o quanto eu adorava esse tipo de coisa. Vindo dessa desconhecida, esse gesto só me causou uma surpresa incomum. Asco, talvez?

Ela ficou sem graça por uma fração de segundo, para logo depois estar completamente dona de si. Mas sua expressão, seu rubor inesperado e contido, seu olhar ofendido pela minha recusa a denunciou. Ela era minha garotinha, a mesma de sempre. Apenas tinha virado uma mulher.

O fascínio voltou nessa hora. Em questão de segundos, minha sutil repulsa por uma estranha que tentava se passar pela pessoa que melhor conhecia na vida se tornou uma mistura de ternura, afeto e tesão absolutos. Não sei ao certo se eram as cervejas que havia tomado, mas tinha certeza que, naquele momento, eu a amava de novo. E sabia que essa mulher, ao mesmo tempo tão misteriosa e tão cara-metade para mim, estaria agora e sempre em mim.

Mais cervejas, mais gin tônicas e eu poderia jurar que ela nunca havia sumido, que tudo era como antes. Nada havia mudado e éramos um casal perfeito, feitos um para o outro. O tempo, que no começo do nosso encontro parecia ser o mais cruel dos carrascos, tinha parado. E quando a vi se levantando para ir ao banheiro, meio tonta e vacilante, como antigamente, eu sabia o que tinha que fazer.

Mas o que me parecia tão correto e natural resultou no maior erro de avaliação que já tive. A tentativa de surpreendê-la com um beijo ao abrir a porta do banheiro só a fez rir. Um riso aberto, franco, sem uma ponta de arrependimento de rir e o que é pior: de me humilhar. Me lembro dela ter me chamado de babaca. E nunca vi esse adjetivo ser usado com tanta propriedade. Depois do que aconteceu, eu me sentia a própria definição do babaca.

Nos olhamos. Eu sem jeito, ela impassível. Aquela menina que há alguns anos me abraçaria e faria ao menos uma piada pra quebrar o gelo e melhorar meu humor não estava mais lá. Uma mulher, sem dúvida.

Voltamos para nossa mesa, pedimos a conta e ficamos em silêncio. Demos "até logo" um ao outro e seguimos em direções diferentes. As milhares de palavras que deveríamos trocar, perderam seu significado. "Não há amadurecimento sem perda" pensei.

22.1.06

Bem-me-quer


para Paula

Era uma garota simples, que cresceu uma mulher simples, mas, no fundo, era ainda uma garota. Simples, como sempre.

Não entedia porque as coisas não davam certo. Com a família, com os amigos, no trabalho, nos relacionamentos. Tudo ia bem, mas depois de algum tempo, as pessoas pareciam não entender que ela não queria nada muito complexo: só queria ser feliz. Mal sabia a moça que esse desejo não tem nada de simples.

Estava em pé no ônibus, espremida entre desconhecidos, sendo apalpada eventualmente - já acostumada, não ligava muito se não houvesse excessos - e sem que o rapaz adolescente sentado no banco à sua frente se oferecesse sequer para segurar sua bolsa.

Entre uma cotovelada e outra em um abusado, ela pensava. Não exigia muito. Não criava problemas pra ninguém. Só queria ter alguém que a respeitasse, que fosse medianamente educado e gentil (queria alguém que comprasse seus sorvetes e umas flores de vez em quando), que soubesse amar uma mulher decentemente - nem exigia fidelidade, desde que o cara fosse discreto. Mal sabia que querer alguém assim era exigir demais.

De repente, o estalo: podia ser essa sua imaginada simplicidade, essa modéstia de sonhos e desejos, a razão de todas as suas insatisfações. Por que não exigir muito? Por que não exigir muito de tudo?

Começou a mudar sua vida no ônibus mesmo, ao descer bem antes de onde deveria. Deu uma cotovelada mais forte naquele que seria o último cara a tirar proveito dela e ficou em um ponto longe daquele trabalho que detestava. Estava agora perto de um parque que nunca tinha entrado, só via pelas janelas dos coletivos que a levavam para o trabalho. Hoje, para estrear sua nova vida, iria conhecê-lo.

Procurou um banco e sentou-se. Depois de uma olhada mais cuidadosa, reparou que o parque não era dos mais bem cuidados. Montes de lixo não recolhido, mato crescendo entre os jardins. O próprio banco em que ficou estava meio quebrado. Não se importou. "Não tem problema, aqui está bom o bastante", pensou.

Teve o segundo estalo do dia. Mas todos os seus problemas não eram criados justamente por conta dessa sua atitude "bom o bastante"? Olhou o lugar onde havia decidido, de certa forma, começar vida nova e viu que ele não era nem de perto o local ideal. Sabia que precisava sair dali, mas parte dela achava que não havia nada demais continuar no parque. Ela entendeu que essa decisão - sair ou ficar - era significativa para o resto dos seus dias.

Pegou uma margarida, no meio do jardim descuidado, entre tufos de grama alta e lixo amontoado. Começou o velho jogo que gostava tanto de fazer na infância. "Bem-me-quer, mal-me-quer". De certa forma, uma volta aos tempos em que não tinha tomado as decisões, certas ou não, que norteavam sua vida até hoje. Agora ela arrancava as pétalas da flor não por uma paixão infantil, mas pela pessoa que mais merecia ser amada por ela, desde o começo.

No fim das pétalas, deu bem-me-quer. Ela se levantou e saiu do parque, sabendo exatamente o que tinha que fazer a partir daquele momento.

8.1.06

Imortalidade


- "Se a imortalidade fosse algo ruim, os deuses não seriam eternos"...
- Ahn?
- "Se a imortalidade fosse algo ruim, os deuses não seriam eternos"...
- Eu tinha ouvido. Eu só não entendi porque você falou isso.
- Li isso em algum lugar.
-E isso é motivo para você falar isso do nada?
- Não é do nada. Você não concorda?
- Nunca pensei a respeito. Você e essa mania de conversas metafísicas inúteis, sempre querendo discutir o sexo dos anjos.
- Quem falou em "anjos"? Eu falei em deuses! Não compare os deuses com....
- Não se trata disso! Você deve estar querendo me irritar.
- Que isso, querida?!? Só estou querendo ter um papo interessante com você.
- Só se "interessante", agora, virou sinônimo de "chato".
- Nossa...tem dias em que você fica intratável!
- Intratável é essa sua mania de pensar besteiras. Por que não pensa em algo mais prático e útil?
- Prático e útil?
- É
- Bom....
- O que foi?
- Você pode fazer uma coisa prática pra mim. E seria bem útil.
- O que é?
- Espreme essa espinha que me apareceu atrás da orelha?
- Ah, porra! Você está falando sério?
- Estou. Por que? Isso não é prático o bastante pra você?
- Foi só nisso que você conseguiu pensar?
- No momento, sim.
- Tá bom. Vem cá. Vira a cabeça. Isso. Só você mesmo pra ter uma espinha aí.
- Ai! Calma, mulher! Isso dói!
- Não seja chorão! Pronto....
- Parece que você gostou disso, né?
- Pelo menos foi algo prático, nada "filosófico".
- Putz. Tá vendo como você é?
- O que foi agora?
- Não sei se você é fútil por achar mais interessante espremer uma espinha a ter uma discussão filosófica ou se é sádica por gostar mais de me ver sentir dor a conversar algo mais profundo comigo.
- Putaqueopariu! Tá bom, mala! A imortalidade não é boa, seria uma punição para os mortais e os deuses só são eternos porque a eles cabe a responsabilidade de tomar conta e as vezes interceder por suas crias, a humanidade. Tá bom? Satisfeito agora?
- Pô...tá vendo? É um excelente ponto de vista! Não sei porque você não expõe mais esses seus insights! Eles são geniais. Você já tinha pensado no tema "imortalidade" antes da frase que eu disse? Sua resposta parece ser fruto de algum tempo de ponderação sobre o assunto.
- Não. Pensei em tudo isso agorinha mesmo.
- Sério?
- É. Foi só imaginar o que seria passar a eternidade tendo que ouvir suas abobrinhas. Nenhum deus seria tão cruel comigo.
- Nossa! Tem dias em que você...
- ...fica intratável. Eu sei, eu sei...