2.5.07

Pão duro



- Eu não negocio preço.
- Mas não são vocês que dizem sempre "faço porque gosto"?
- Faço porque gosto. Do dinheiro
- Mas está muito caro!
- Ah....Então pode sentar com aquela baranga ali do lado. Ela cobra bem menos.
- Ah, é? Qual? Aquela ali? Você sabe quanto?
- Sai daqui, cara! Estou trabalhando e você me atrapalha.
- Queisso, benzinho? Quero você! Só precisamos acertar esse preço.
- O preço está certo. O que não está certo é você ser tão pão-duro.
- Pão-duro?!?! Eu até já bebi um chope nesse lugar caríssimo!
- É. Bebeu um chope em duas horas e ainda nem terminou.
- Eu bebo devagar e gosto de chope quente.
- Eu devia saber que você era canguinha quando pediu sem colarinho.
- Colarinho eu mesmo faço! É só colocar o guardanapo, puxar e pronto. Pra que vou desperdiçar um chope caro desses?
- Desperdiçar um dedo de chope, você quer dizer.
- Esse não é nosso assunto. E aí? Vai me dar o desconto?
- Não dou descontos, dou outras coisas. Cenzinho, mais o motel, e não tem conversa.
- Você fala cenzinho, no diminutivo, como se notas de 100 nascessem em árvores. 50 e fazemos no carro.
- Você só pode estar de sacanagem!
- Ainda não, mas quero muito!
- Então encare os dragões da Vila Mimosa! É lá que os pobres vão atrás de diversão.
- Não sou pobre. Sou econômico.
- Sai, cara! Desse jeito não tem conversa. Se você acha que eu não valho 100 Reais, tem quem ache. E com você aqui, não vou conseguir nada.
- Ah, vai! Vou te tratar bem! O que custa? !
- Custa cem, já te disse. E prefiro que trate bem minha conta bancária.
- Quanto romantismo!
- Se quer namorar, vai pra casa. Sua mulher deve estar te esperando.
- Aquele tribufu não estou comendo nem que me paguem. Bom, depende da grana...
- Porra...como você é mão de vaca!
- Não fala isso, vai! Gostei de você. 70 e eu reclino o banco de trás do carro?
- Sai fora!



- Ainda por aqui?
- Por pouco tempo. Estou indo. Esse lugar é caro demais.
- Não teve muito sucesso com as garotas?
- Não tive muito sucesso com o preço que elas cobram. E você?
- Nada, nenhum cliente hoje.
- Se cobrasse menos, quem sabe?
- Olha, falando desse jeito, parece que você acha que não valho o preço que cobro.
- Você até vale. Eu é que não tenho a grana.
- Não sei porque, mas gostei de você. Mesmo sendo mão fechada.
- Não sou mão fechada. Sou pobre.
- Não era econômico?
- Dá no mesmo.
- Vai. Eu aceito seus 70, mas não faço no carro e quero uma carona pra casa depois.
- Nada disso. Agora só pago 50.
- O que?!?!?!
- E vai ser no banco da frente! Sem motel e sem reclinar o banco de trás.
- Porra! Você vai gastar dinheiro se reclinar o banco de trás?
- Não, mas dá o maior trabalho fazer isso. E quero economizar energia pra amanhã.
- Quer saber? Vai a merda! Vou esperar meu ônibus aqui.
- Se você prefere. O bom é que não gasto gasolina com você.



- Ta bom. Eu aceito. Essa merda de ônibus não vai passar a essa hora.
- Com carona cai pra 35.
- PQP...você é o cara mais muquirana que eu conheço.
- Quer ou não quer?
- Tá bom, tá bom.
- Menina esperta! Vai, entra no carro. Mas só uma coisa.
- Que foi agora?
- Tem uma grana pra comprar camisinha? Eu estou sem nenhuma.

27.4.07

O despertador



A manhã o acordou com seu grito luminoso, ensurdecendo seus olhos.Virou-se com dificuldade, pegou o maço amassado de cigarros na cabeceira, retirou um cigarro tão amassado quanto e o acendeu com seu sólido Zippo prateado. Pegar o isqueiro fez com que ele tivesse seu primeiro contato com a realidade. A luz do dia, a fumaça nos pulmões e a ligeira dor de cabeça não o tinham tirado do aparente estado letárgico de quem ainda não acordou totalmente. Esfregou os olhos, pôs-se sentado na cama. O chão, tocado pelos seus pés, foi seu segundo contato com a dureza da realidade. O próximo passo seria levantar. Valeria a pena?

O relógio digital anunciava seu atraso. Sentia falta do seu antigo despertador da infância, artefato analógico, pesado, mas extremamente confiável. Olhar os traços que formavam os números no relógio não lhe lembravam a realidade. Aqueles números não existiam, eram uma seqüência de algarismos binários que dispostos na ordem certa, informavam que já eram 10: 23.

-Aonde foram parar os ponteiros nesse mundo? - ele se perguntava.

Durante mais de 15 anos, seu antigo despertador redondo e convencional nunca falhara. Sempre acordava ao som do seus sinos. Era sempre o mesmo som irritante e por isso, eficiente. Não havia a opção de acordar com música, com sirenes, com galos cantando ("galos cantando na Zona Sul?" Ele pensou quando leu essa opção entre os alarmes do artefato). As vezes atrasava, mas nunca mais de uma hora. E nunca deixou de tocar, como esse maldito relógio digital à sua frente. Era sólido e confiável. Já esse despertador digital à sua frente era muito leve, um primor do design contemporâneo.

-Mas essa merda não desperta - reclamou consigo mesmo.

Viu seu laptop no chão, outra maravilha da tecnologia. De certa forma, seu atraso hoje era culpa desse computador portátil. Se não estivesse trabalhando com ele até tarde aquele dia, se não tivesse resolvido entrar numa sala de bate papo para espairecer um pouco, se não tivesse conhecido ela...Ela. Ela tinha escolhido o novo despertador.

"-Essa sua velharia está caindo aos pedaços. E é muito feio!" - ela dizia.

Se conheceram num chat, trocaram e-mails - essa impalpabilidade que substituiu as cartas, que funcionaram muito bem durante séculos - resolveram se conhecer e pimba! Gostaram um do outro. Começaram a sair, começaram a namorar, resolveram morar juntos e nessa, seu velho, feio, caindo aos pedaços mas confiável despertador analógico, de corda e com ponteiros, foi jogado fora.

- E ela dizia que eu ia agradecer por isso algum dia! - ele pensou, revoltado.

Ela não parou no despertador. Mudou muita coisa na vida dele. Hábitos, gostos, viagens, apetites. Tudo. Ele mudou muito, mas ela, aparentemente, não havia mudado nada. Continuou entrando nas salas de bate-papo (talvez usando seu próprio laptop), continuou conhecendo pessoas, trocando e-mails. Um dia ela conheceu algum sujeito mais "antenado", segundo as próprias palavras dela. E agora, estava ele no quarto, sozinho e cercado por equipamentos eletrônicos.

A bronca do chefe seria inevitável. Era o terceiro ou quarto atraso grande no mês. E tudo porque ele não conseguiu aprender direito como programar o maldito despertador digital, uma obra de arte do design moderno. Em 15 anos com seu antigo e analógico despertador de corda, ele nunca havia deixado de despertar. E, por mais que fosse irritante o som da sua campainha em seus ouvidos, ele nunca pensou em realizar o lugar comum de quebrar o relógio por ter sido acordado.

Antes de ir tomar um banho, ele pegou o rádio-relógio digital e o atirou longe, espatifando com ele na parede.

18.4.07

Reservado


Solange achava incrível como um banheiro de faculdade, lugar de gente estudada e com educação, podia ser tão imundo. Nunca tivera tanto trabalho quanto agora, desde que arranjou esse bico de faxineira. O pior é que, além de pesado, era obrigação chata, uma eterna rotina de esperar as turmas saírem, pegar o material de limpeza e limpar a porcaria “desses meninos mimados”, como costumava dizer. Se soubessem o quanto Solange odiava seu serviço, veriam como fizeram certo em deixa-la com sua faxina apenas depois do fim das aulas. Se visse algum aluno fazendo das suas porcarias enquanto trabalhava, poderia cometer um desatino.

Tinha resolvido começar pela pior parte. Estava em um reservado feminino, limpando a privada e pensando que se tivesse uma filha que deixasse seu banheiro naquele estado, ela ia apanhar muito. Seguia na esfrega e nos devaneios quando ouve a porta se abrir. Se preparava para sair do reservado e dar uma bronca merecida na engraçadinha que pretendia sujar o banheiro fora do horário quando reparou que não era uma menina. Pelo menos, não uma menina sozinha, mas um casal.

Encostou a porta do reservado, deixando uma pequena brecha para espiar. Queria ver se conhecia o casal. Não conseguiu ver os rostos direito. O casal estava agarrado num desespero tal que parecia que não haveria amanhã para ambos. Solange ficou olhando, não sem certa malícia, os dois jovens que se atracavam.

- Pelo menos estão usando o banheiro pra uma coisa boa e não pra emporcalhar tudo - pensou.

Os dois namorados, não tomando conhecimento da vouyeur inesperada, tomavam mais e mais liberdade um com o outro. Solange, que no começo via a cena com algum prazer, começou a se sentir constrangida com os avanços do casal. Por respeito e vergonha - menos o primeiro que o segundo - , Solange fechou a porta do reservado e continuou sua limpeza, fazendo o mínimo de barulho possível.

Solange tentava seguir com seu trabalho mas os ruídos do casal tiravam sua concentração. Era uma mulher um tanto e quanto recatada, não estava acostumada a fazer o que os dois jovens estavam fazendo assim, em um lugar público. Achava até uma sem-vergonhice. Talvez devesse sair e acabar com a festa. Até porque, ela não ia ficar ali escondida esperando os dois exibidos terminarem para continuar sua limpeza. Decidida a interromper os arroubos amorosos do casal, Solange abre novamente a porta do reservado, devagar, para não flagrar nenhuma cena chocante demais. Não adiantou, mas o choque foi inesperado. Ao ver pela fresta na porta os dois agarrados, Solange percebe, horrorizada que o que era para ser uma transa se transformou em outra coisa: um assassinato.

No lugar de beijos, Solange viu o rapaz agarrando a moça por trás e a enforcando com uma espécie de fio. Os braços da garota, ainda se debatendo, lutando pela vida, deixaram Solange congelada. Ela não conseguia esboçar uma reação, além se forçar a não gritar. Apesar de terrificante, não conseguia deixar de ver a cena. Olhou, petrificada, até ver a moça parar de lutar e ser deixada, sem vida, no chão.

Com o desfecho macabro, Solange não se conteve e deu um suspiro. Assustada com a possibilidade de ter sido ouvida, tapou a boca com a mão e fechou a porta do reservado, devagar. As lágrimas corriam pelo seu rosto e ela procurou se controlar o máximo que pudesse. Depois de alguns segundos, ouviu com terror os passos do assassino, vindo em direção ao reservado. Solange tremia. Intimamente, rezava, sem saber se desejava que tudo aquilo não passasse de uma alucinação ou se pedia para que o homem fosse embora sem vê-la. Mas o desespero tomou conta de Solange de vez quando percebeu a porta do reservado sendo aberta, vagarosamente. Encolheu-se na parede, numa mudez cadavérica. Para sua sorte, estava atrás da porta e o homem saiu, sem notar sua presença.

Solange mordia seus lábios até quase sangrar. Chorava em silêncio, mas copiosamente. Esperou um tempo, desejando com todas as suas forças que o criminoso fosse logo embora. Queria abandonar logo aquele lugar, não queria estar no mesmo ambiente onde algo tão cruel tinha ocorrido. Controlou seu choro, viu que não estava mais tremendo e, criando uma coragem que não sabia que tinha, abriu a porta, vagarosamente. Olhou pela fresta da porta e não viu o homem, apenas as pernas estiradas da menina morta. Um leve tremor tomou conta do seu corpo ao vê-la. Colocou a cabeça fora do reservado, olhou para os dois lados e viu que estava sozinha. Apenas a presença inexorável da morta a acompanhava.

Andou com passos vacilantes em direção do corpo. Sentiu uma enorme pena da moça, que tinha morrido sabe-se lá por que razão. Não conseguia ver o rosto da morta, e isso a deixou ainda mais penalizada: além de assassinada, morrera com a face virada para o chão imundo do banheiro. Ainda estava imersa nesses pensamentos quando ouviu um barulho atrás de si. Solange virou-se e viu um homem entrar no banheiro. Não precisaria ter reconhecido as roupas do assassino. Ele vinha na sua direção segurando a mesma corda que tinha usado no pescoço da garota.

Solange não conseguiu sequer gritar. Sua voz tinha sumido, sentiu suas pernas bambas, seria incapaz de qualquer reação. O homem a mirava impiedosamente, sem piscar. Levantou as duas mãos esticando a corda que segurava.

A vontade de viver reacendeu-se em Solange. Ela começou a vasculhar com o olhar algo que pudesse usar como arma. Olhou as paredes do banheiro, o chão, a pia, os outros dois reservados. O homem se aproximava com passos lentos mas seguros e ela não encontrou nada que a ajudasse. Só viu sujeira. As paredes pichadas, o espelho encardido, a pia com manchas de ferrugem, o chão, com respingos e restos de papel. O homem estava cada vez mais perto e Solange viu, diante da morte iminente, que sua vida seria um constante limpar de coisas que ela não sujara, uma servidão à faxina injusta, e pior, para pessoas que não sabiam sequer da sua existência (?). Seus ombros penderam diante dessa realidade inescapável. Desistiu de procurar com o que se defender com olhos cansados.

O homem estava diante de Solange que, parada, não parecia pretender nada. O assassino leva a corda em direção ao pescoço dela e o último ato de Solange foi dar as costas ao homem.

21.3.07

O reencontro



A emoção seria grande. Rever a mulher da sua vida, dois anos depois da separação por motivos profissionais. Depois da relação, que parecia ser perfeita, ser abalada por causa de uma promoção - "maldita promoção", dizia ele - que a levou para outro continente.

Ele, orgulhoso, não quis falar com ela por mais de um ano. Até que na semana anterior, ela escreveu, dizendo que estava voltando. E que queria ele de volta. Não havia orgulho que resistisse a isso. Planejaram tudo por e-mail, durante a semana: ele iria pegá-la no aeroporto, ela iria direto para casa dele e tentariam falar o mínimo possível sobre o que fizeram ou deixaram de fazer nesse hiato de dois anos. Ele concordou, mas voltou a fumar só de imaginar o que ela poderia ter aprontado.

Tinha parado com o cigarro algumas semanas antes da volta dela. Depois da crise de orgulho, veio o sentimento de perda e com isso, a depressão e todos seus efeitos: bebedeiras, perdas de emprego e cigarros, muitos cigarros. Achou um sinal da providência ter resolvido acordar para a vida novamente justo quando ela estava para voltar. E teria continuado sem fumar, a saúde já rateava, se ela não viesse com essa história de "falar o mínimo sobre o que fizeram".

Ele não teria muito pra contar mesmo. Mas ela, linda e tão tipicamente brasileira, no meio de um bando de europeus tarados? Devia ter um monte de histórias - escabrosas - pra contar. Ele tentava parar de imaginar isso, a amava ainda e não tinha sentido ter uma crise de ciúmes pelo que ela fez ou deixou de fazer quando não estavam juntos.

Mas cadê que ele conseguia evitar?

O primeiro sintoma foi voltar a fumar. Isso, na véspera da chegada dela. Não dormiu. Fumou um, dois, três maços. Foi sonado para o aeroporto. E meio bêbado ("já que voltei a fumar", pensou, "não tem mal beber um pouco").

No aeroporto soube que o voo ia atrasar uma hora. Era tudo o que ele não precisava. Por mais que tentasse não pensar no assunto, as cenas não saiam da cabeça dele: ela, mãos branquelas no seu corpo moreno, sotaques estranhos juntos com seus gemidos carioquíssimos. Ódio, nervosismo, vontade de vingar 500 anos de colonização com as próprias mãos.

- Não, pensou, estou ficando maluco!

Foi ao banheiro. Lavou o rosto, molhou os cabelos. Se sentia melhor. Pediu um café caro na lanchonete metida a besta e acendeu um cigarro. Se concentrou nos bons momentos com ela. Nos momentos em que ela era sua. E tudo ficou bem.

É anunciado o pouso do voo que a traria. Ele se dirige ao portão indicado pela bela voz que anuncia os pousos e decolagens. A voz parece a dela. E quando a mulher repete o portão, dessa vez em inglês, ele imagina a mulher que ama falando outro idioma, com outro homem que não ele. Ele sente um aperto no peito, uma dor, a certeza de que não conseguirá viver com isso, por mais que a ame.

Ela aparece no portão. Linda, mais que nunca. Ele tem lágrimas nos olhos, ela tem lágrimas nos olhos. Correm um em direção ao outro. Ele sente a dor mais profunda que jamais sentiu no coração. Quando ela está ao alcance dele, ele dá um tapa no rosto dela. "Puta!", grita, chamando a atenção de todos.

A dor que ele sentiu ao ver a estupefação no rosto da mulher da sua vida foi a maior que ele jamais teve. E a definitiva: teve um ataque cardíaco fulminante.

28.2.07

Mr. Sandman



"Tentando tirar a poeira dos olhos", ele disse. Ela não entendeu e ele repetiu, dessa vez explicando que a expressão significava que estava tentando espantar o sono. Ela riu, porque não conhecia a expressão "poeira nos olhos" e porque a entendeu na hora ("a pálpebra fica mesmo arranhando os olhos quando queremos muito dormir", ela disse). Ele se lembrou da história do Mr. Sandman, que joga o pó do sono nas pessoas para que durmam, mas ficou com preguiça de contar a história para ela.

Ela lhe ofereceu um café e ele não aceitou. Não queria tanto perder o sono assim, "já está tarde, ele disse, "daqui a pouco teremos que ir mesmo para cama". Ela perguntou "teremos?" e ele respondeu que esperava que ela o acompanhasse "nesse momento importante" - eram essas as palavras que ela lembrava.

"Não tinha essa intenção, mas se você quer, eu vou com você, foi o que ela respondeu. "Não precisa ir, se você só vai pra me agradar", ele disse. "Não", disse ela por sua vez, "será um prazer". Apesar das palavras agradáveis, ele viu que seu rosto dizia justamente o contrário. "Você tem certeza?" ele disse. E ela respondeu que o problema é que não pretendia acordar cedo no dia seguinte. Lembrou a ele que quinta-feira era o único dia na semana em que podia esticar um pouco mais o sono.

"Tá bom. Não precisa ir, querida", ele disse. Então foi a vez dela notar que o que ele dizia não entrava em total desacordo com a expressão na sua face. Vendo isso ela - sem dizer nada - levantou-se da cadeira e foi ao quarto. Ele ficou sozinho na mesa de jantar, ainda tentando tirar a poeira dos olhos.

Ela volta com o despertador na mão e pergunta que horas eles teriam que acordar. Ele respondeu que não precisava do rádio relógio, que quem tinha que acordar cedo era ele e que ele sabia quanto ela detestava o alarme do aparelho. "Ué? Mas eu vou com você!", ela disse. E ele respondeu: "não precisa. Amanhã você vai poder dormir mais e não quero atrapalhar seu sono". Algo no tom de voz dele fez com que ela se sentisse mal. Sabia o que aquele tom significava: ele estava contrariado. Foi o necessário para que ela também ficasse emburrada.

"Prefiro quando você diz a verdade e não me vem com esse tonzinho de compreensão ensaiada", ela disse. Ele rebateu com "não quero uma pessoa de má vontade comigo amanhã, só isso". Essa parte do diálogo foi o começo de uma discussão: para ele, era tudo insensibilidade, falta de companheirismo e egoísmo da parte dela ("me abanar num momento tão crucial que estou vivendo!" foi o argumento dele). Já ela o acusou de ser cheio de vontades, fútil e também egoísta (ela disse a ele "onde já se viu me fazer perder minha manhã de folga por causa de um campeonato de pelada onde você sequer sai do banco de reservas! Sua noção de 'momento importante' precisa ser revista urgentemente!)

Ficaram batendo boca por horas. Acusações pra cá, acusações pra lá, ficaram de mal, justo no dia da semifinal do campeonato. Ele queria que ela fosse, considerava-a seu talismã. E foi justamente quando ele falou isso para ela, que a briga acabou. "Sou mesmo?!?!", ela perguntou, deslumbrada. Ele confirmou que sim, abraçando-a. "Claro, minha coelhinha! Se um pé de coelho dá sorte, imagine eu tendo seus dois pés perto de mim!", completou ele. Depois desse abraço (e das horas de discussão) foram juntos para cama. E não dormiram imediatamente, porque nenhum dos dois tinham um grão de poeira sequer nos olhos.

Resultado: ela esqueceu de ajustar o despertador e ele não acordou na hora que deveria. Ambos - e o time dele também - perderam o jogo.

23.2.07

As carnes escuras do frango



Abriu a velha marmita de sempre e a visão não lhe agradou nem um pouco. Purê, uma ou duas colheres de arroz e um frango em pedaços mal cortados que já vinha se arrastando por dias na sua geladeira. Se fosse dado a muitas frescuras, teria perdido o apetite.

Não perdeu naquele momento, mas sua fome desaparecera momentos depois. Reparou com mais atenção sua refeição e, vendo-a com detalhes, achou-a ainda pior: como já deveria ser o terceiro almoço seguido com o mesmo frango assado comprado no final de semana, os nacos da ave que haviam sobrado eram pouco e escuros, exatamente das partes que ele menos gostava.

O garfo entrou sem resistência na carne marinada pelo tempo e pela geladeira. Não ousou cheirar o pedaço apanhado. Sabia de cor o odor daquela carne, desde o tempo em que sua mãe insistia em não desperdiçar comida e o obrigava a comer qualquer parte de frango que lhe fosse oferecida. A mordida veio hesitante, impregnada da certeza de que não ia gostar do que colocaria na boca.

Não deu outra: era o mesmo gosto ruim de sempre, o gosto das partes escuras do frango.

"Porra!" - pensou, jogando o garfo no tupperware cheio de comida. Isso não era vida! Ele tinha estudado, era razoavelmente culto e sabia que merecia, se não ainda uma vida melhor, ao menos uma refeição decente. Mais irritante que o apetite perdido, era se ver naquela situação. Resolveu jogar a marmita no lixo e gastar sua hora de almoço andando.

Caminhava de cabeça baixa, ainda irritado. Resolveu fumar pra tirar o gosto do frango da boca. "Gosto ruim, por gosto ruim, prefiro o da nicotina" - pensou. Quando estava no meio do cigarro, viu-se em frente aquele restaurante caro que sempre quis ir mas que, tinha certeza, não teria grana para pagar sequer o couvert.

"Foda-se!" - pensou antes de abrir a porta do estabelecimento.

Nem o ambiente precisamente climatizado, ou as luzes suaves, tão diferentes das que iluminavam o refeitório onde almoçava, ou as pessoas elegantemente vestidas, com dentes perfeitos e peles brilhosas e nem mesmo a cara de desconfiança do sujeito da recepção o impediriam de ter uma refeição decente.

"Mesa para um, por favor" - falou, tentando mostrar uma classe que não tinha.

O recepcionista fez aquela cara de quem ia dizer "tem reserva?", mas se conteve. Certamente, não em respeito a um cliente (mesmo que mal vestido) e sim porque não teria como explicar a necessidade do procedimento com metade das mesas vazias e às duas da tarde.

"Por aqui, sim" - disse meio a contragosto o recepcionista.

"Não se pode dar uniforme pra pobre que acontece isso! A primeira coisa que faz quando veste a roupa é começar a desconfiar de outros pobres!" - pensava enquanto seguia o sujeito. Sentou-se em uma mesa de centro, olhou os talheres e os pratos, os copos e taças, o guardanapo de linho alvíssimo, o cardápio - forrado com um couro cheiroso e entregue após uma mesura estudada feita pelo maître - o menu em italiano, a carta de vinhos. Tudo era completamente fora da sua realidade, mas ele se sentia a vontade. Muito a vontade.

Tinha algum conhecimento de gastronomia, tinha lido alguns livros, visto programas. Ele sabia que não faria feio no restaurante. E não fez: pediu consomês, pastinhas, conservas, pães e uma sopa de entrada. Evidentemente, não esqueceu o aperitivo antes, para reabrir o apetite perdido pelo (não queria nem lembrar!) gosto do frango de três dias da sua marmita. Depois, com bastante desenvoltura, escolheu uma salada, um prato principal - não sem antes perguntar como era preparada a fina carne que havia pedido - e uma sobremesa que, pelo nome, sabia-se de complexa feitura. Chamou o maître com um gesto estudado e pediu um conselho sobre que vinho acompanharia melhor seu pedido. Achou que esse ato de modéstia seria elegante e assim, também não corria o risco de pedir uma bebida que o fizesse ser motivo de chacota para os garçons da casa.

Comeu com uma sofreguidão calma, um deleite selvagem. Mais que a estupenda refeição, ele saboreava o momento. Estava perfeito, dono da situação, se portando como se aquele fosse seu restaurante favorito, onde almoçava 4 vezes por semana. Não fosse pelos seus trajes destoantes, qualquer um diria que ele estava entre seus pares.

Mas não estava. E ele se lembrou disso quando, depois de um café maravilhoso, veio a conta. Os três dígitos, bastante altos, eram maiores do que o salário dele. Mantendo a classe que nem ele esperava ter, pediu que chamassem o gerente. Explicou a situação ao senhor de cara séria. Esse, após ficar a par dos fatos, mostrou que não apenas suas feições eram severas. Não havendo a possibilidade de pagamento, o cavalheiro seria conduzido ao distrito policial mais próximo, sem estardalhaço e com o máximo de discrição possíveis. Ele achou justa a proposta. Levantou-se e seguiu os seguranças (que também pareciam ter uma prazer especial em estar colocando um pobre, como eles, em seu devido lugar).

A delegacia foi sua volta ao mundo real. Apesar de tudo, o gerente não prestou queixa. Pediu apenas, como forma de corretivo, que ele ficasse algumas horas no xadrez, para que pensasse na idiotice que fez. O delegado achou justa a proposta. Antes de ser conduzido à cela, ele ligou para o trabalho. Disse que teve problemas e que iria para casa. A desculpa? Passou mal com a marmita que levou.

Sentado no xadrez, tinha tão vívida em sua mente os momentos que passou no restaurante que nem teve medo das companhias sinistras que estavam com ele. Estava alheio aos gritos e reclamações dos presos, parecia que reclamavam de algum atraso. Depois de algum tempo, voltando à realidade, compreendeu o que havia na cela e agradeceu por já ter almoçado.

As marmitas dos presos estavam duas horas atrasadas. E quando elas chegaram, pode ver os pedaços escuros de frango dentro das embalagens de alumínio.

30.1.07

Irmãos



A casa vivia em total silêncio. Era assim desde que Miguel trouxe Humberto, seu irmão, do hospital. Beto como Miguel chamava seu irmão mais novo havia tentado o suicídio. Mesmo não tendo conseguido seu intento funesto, Beto conseguiu matar algo na sua relação com o irmão.

- O que se diz a um suicida? pensou Miguel, ao encontrá-lo no leito.

Era a imagem do fracasso, seu irmão Beto. O fracasso na vida, ainda tão jovem, sempre lhe fora claro. Não sabia como ajudar o irmão, que também não parecia muito interessado em ajuda. Todo esse abatimento, imagem que Beto há tempos carregava, agora era tanto que parecia criar uma aura em torno do seu corpo. Miguel chegou a titubear, com medo de alguma influência maléfica ao tocar no irmão. Depois de apagar tal sandice da mente, abraçou o caçula e o conduziu até o carro.

- Não precisa me apoiar, posso andar normalmente. Meu ferimento é nos pulsos e não nas pernas - Beto falou com um rancor dirigido não se sabe para quem ou que. Miguel ficou quieto. Respeitou a dor do irmão e também a sua. Ao entrarem no carro, Miguel apenas balbuciou: Estou feliz que você ainda esteja aqui. Beto respondeu virando o rosto para janela.

Os dias seguintes foram parecidos. Beto pouco falava, Miguel era compreensivo. Ajudava o irmão mais novo em tudo o que podia. Fazia-lhe uma companhia silenciosa, como o próprio Beto parecia querer. Não tinham mesmo muito o que falar. Beto, por falta de assunto. Miguel, por medo de falar algo que magoasse seu irmão.

Esse medo tornou Miguel quase tão mudo quanto Beto. "O que se diz a um suicida?", ele sempre pensava. Media as palavras em sua mente e, maioria das vezes, as achava impróprias. Não queria falar do receio de deixar seu irmão sozinho, nem da raiva que ficou por não ter recebido um pedido de ajuda, nem da preocupação pela parca melhoria de humor do Beto. Achava que todos esses assuntos poderiam melindrá-lo, deixá-lo desconfortável, ou pior, poderiam fazê-lo lembrar-se da tentativa de suicídio.

O que Miguel não levou em consideração, já que só pensava nas suscetibilidades de Beto, era o quanto do desespero do irmão menor poderia impregnar-lhe a alma. A visão continuada do sofrimento do Beto, seu espírito alquebrado duplamente - pela vida que ele não queria e pela morte que não conseguiu obter - e o ambiente de funeral sem defunto que se transformou sua casa acabaram por transformar a angústia de Beto em um mal transmissível, que como uma peste, apoderou-se de Miguel.

Agora, nem a preocupação com o irmão suicida passava pela cabeça de Miguel. Estava entregue, prostrado, sem ação. Era um sentimento de derrota, diante da incapacidade de Beto ficar melhor, da sua própria incapacidade de ajudá-lo e da incapacidade dessa vida ser minimamente justa com quem merece.

O silêncio na casa, com dois habitantes que não falavam, era total. Os dois irmãos, com suas funções vitais em perfeita ordem, não eram mais vivos que dois autômatos criados por algum desatinado cientista. Não saiam dos seus quartos e não sentiam mais falta um do outro. Se a tentativa de se matar de Beto não tinha dado cabo à sua vida, dera à fraternidade entre os dois irmãos.

E não foi movido por qualquer espécie de carinho ou saudade que Beto saiu do seu quarto, no meio da madrugada, para falar com Miguel. Beto apenas precisava de analgésicos para suas constantes dores de cabeça, que muitas vezes, não o deixavam dormir. Essa era uma dessas noites em que seu cérebro parecia a ponto de explodir dentro do seu crânio. Beto estava sem comprimidos e foi pedir um ou dois ao irmão. Foi quando descobriu da pior maneira que Miguel não poderia ajudá-lo nisso: encontrou Miguel estirado no chão do seu quarto, esparramado ao lado de um frasco de aspirinas vazio.

Era a primeira vez em muitos meses em que se poderia ver Beto tomando uma atitude. Enquanto levava o irmão para o hospital voando pela estrada, chorava e pedia aos céus que não lhe tirassem a única pessoa que importava em todo o mundo. Deu entrada no hospital, cuidou de toda a burocracia, brigou com enfermeiras e médicos por um atendimento melhor para seu irmão, gritou por notícias. A morte, na segunda vez que passou pelos irmãos, dessa vez trouxe de volta a vida à irmandade entre ambos.

Quando teve alta no dia seguinte, Miguel viu Beto entrar no quarto, aos prantos. Foram ao encontro um do outro e se abraçaram, como não faziam há muito. Diferentemente de Miguel, Beto sabia exatamente o que dizer naquele momento. Mas eles não disseram sequer uma palavra.

29.1.07

Marisa se foi



- Dessa vez é sério.

Eu não acreditei, mais uma vez. Fiz pouco, calcei meu tênis e saí. A turma estava toda lá, já preocupada com meu atraso.

- Nada demais. Mais um ataque da Marisa, daqueles de vou embora. Estou acostumado.

Não me preocupei mais com o incidente. O jogo estava animado, a cerveja gelada, não havia ninguém reclamando da fumaça ou do som alto. Tudo estava normal, como eu sempre esperava às quartas. Até o ataque pré-saída da Marisa era esperado, uma rotina a qual não me irritava mais e muito menos inquietava. Estava tudo como sempre. Exceto por uma coisa.

- A Marisa não ligou - falei para mim mesmo.

Mas como ninguém na mesa era surdo, todos deram seus palpites. "Foi dormir", "Tá na casa da mãe", "Ficou puta demais pra ligar" e outras elucubrações inúteis. Exercícios de adivinhação que não me ajudariam em nada. A discussão antes do jogo era normal. O "vou embora" era normal. A vinda pro jogo, mesmo depois da briga era normal. Marisa não ligar não era normal. E eu não gostava de nada que estivesse fora da normalidade.A ligação da Marisa, invariavelmente revoltada, era o sinal de que eu poderia ficar mais quarenta minutos, uma hora, com a turma. Se já era onze da noite e Marisa ainda não tinha ligado, algo estranho havia acontecido. Peguei o celular e liguei pra casa. Ninguém atendeu.

- Tá vendo? Casa da mãe!
- Nada. Tá puta demais pra atender a chamada
- Duvido! Tomou um calmante e capotou no sono. Ou tirou o som do telefone pra não a acordarem.

A opinião da turma não só não tinha valor como serviu pra me preocupar mais. Casa da mãe? Mas então isso não seria cumprir a promessa de ir embora? E não atender a chamada? Se ela estivesse tão revoltada, a possibilidade dela cometer uma loucura era enorme. E uma das loucuras possíveis era ela derrubar um frasco inteiro de calmantes.

- Galera, fui. Não dá mais pra ficar.

Sob os protestos da turma ("Pau mandado!" , "Antes das 11:30?!?!", "Vai acabar com a partida, viado!!!") fui embora. Tentava ligar e Marisa não atendia. Eu não demoraria mais que vinte minutos para chegar em casa, mas o tempo parecia estar voando. E Marisa não atendia. O que poderia ter acontecido?

Cheguei em casa, tudo escuro e silencioso. Procuro o interruptor, acendo a luz e, depois da vista se acostumar com a claridade, vejo a sala. Nada diferente. Tirando o fato de que Marisa não estava vendo TV com a cara emburrada padrão de quarta-feira. Estava tudo muito estranho. E eu não gosto de nada estranho.

- Marisa! - gritei, sem resultado.

Inspecionei a casa. Instintivamente fui antes aos lugares onde achava que Marisa não poderia cometer uma loucura. Então procurei primeiro na cozinha. Por mais que Marisa estivesse furiosa, ela não cometeria uma loucura na cozinha. Não na cozinha que ela tinha tanto orgulho de ser "mais limpa que a da fanática-obsessiva da sua mãe". Marisa não estava lá.

E também não estava no banheiro, nem na área de serviço, nem na varanda, nem no escritório e nem no quarto. E no quarto, além de não estar a Marisa, não estavam também suas roupas. Mas havia um bilhete em cima da cama. A primeira linha dizia "Eu avisei que dessa vez era sério".

No bilhete, Marisa falava e como falava o de sempre: acusações de desprezo pelos seus desejos, descaso com seu esforço como dona de casa, falta de atenção conjugal, etc, etc, etc. "As reclamações estão normais, pelo menos" pensei. Dizia que ia pra casa da mãe, que não ligasse e que ela faria o mesmo.

A ficha caiu alguns minutos depois. Marisa, a minha Marisa tinha ido embora. Lembrei de tudo o que passamos juntos, dos momentos felizes e dos nem tantos. De como ela tinha sido minha companheira por tantos anos. Não conseguia acreditar que tinha perdido a Marisa por causa de um jogo bobo, de uma tradição infantil que mantinha desde os tempos do secundário. Antes mesmo de conhecer Marisa, as quartas já eram sagradas. Teria sido ela intransigente, em não entender que esse tipo de atividade coletiva é uma necessidade masculina ou teria sido eu o cabeçudo por não largar a mão de ser criança e ver que um homem, casado, tem suas responsabilidade e que jogar cartas com seus amigos de infância não é uma delas?

Depois de pensar muito, olhei a hora. 11:35 da noite. Marisa saiu sozinha, sem carro, pra casa da mãe. Estava tarde, mas não ainda não era tarde demais. Corri pro carro, dei a partida e só no meio do caminho resolvi ligar. Demorou a atender. Foram os três toques mais demorados da história da telefonia celular. No quarto, finalmente pude falar:

- Juvenal? O jogo tá acabando ou ainda tem uma vaguinha aí pra mim?

12.1.07

Paraíso



O sujeito morre e vai direto para o famoso juízo final. Está em uma sala que, poderia se dizer, fazia parte do Fórum Celestial. Um anjo o recepciona e lhe dá dicas.

Anjo - ...E fique de pé diante do Senhor!
Carlos - Claro, claro, vou ficar. Eu não imaginava que o céu fosse assim, tão informal. Parece mesmo um tribunal isso aqui.
Anjo - Mas aqui É um tribunal. Você será julgado por seus pecados agora.
Carlos - Ah, claro. É que eu estou tão tranquilo da minha ida pro Paraíso que nem lembrei disso.
Anjo - Vamos ver se será tão fácil assim.
Carlos - Que isso? Você não é uma espécie de anjo? É normal um cara da sua posição vir com esse papo pra me assustar?
Anjo - Não estou assustando. Apenas digo que as coisas nunca são tão simples como as almas recentes acham que serão.
Carlos - Você está me assustando sim! Deus não é infinito em sua misericórdia? Por que eu, que tive uns pecadilhos bobos aqui e acolá vou ter um julgamento "não tão simples"?
Anjo - Cale-se. Chegou o Senhor.
Carlos - Você é muito autoritário, sabia?
Deus - Silêncio!
Anjo e Carlos - Sim Senhor!
Deus - Vamos logo que eu tenho muito o que julgar hoje. Você faz ideia de quantos pecadores eu tenho que julgar por dia?
C - Mas o Senhor não é onipresente? Não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo?
A - Ihhhh...uma insolência dessas e o sujeito ainda quer um julgamento simples e piedoso
D - Você quieto também, anjo.
A - Desculpe Senhor
D - E você, está rindo de uma ordem do teu Deus?
C - Rsrsrsrs...não Senhor..Imagina!
A - Tá ferrado.
C - Quem disse?
D - Calem-se ambos!
A e C - Desculpe, Senhor.
D - Então, Carlos Alberto Antunes da Costa. Subiu aos céus na idade de 45 anos e...
C - Muito cedo na minha opinião, se me permite comentar, Senhor.
D - Quem sabe se é cedo ou não sou eu.
C - Tem razão. Desculpe.
D - Sem mais interrupções. Vi que você espera um julgamento rápido e um acesso direto ao reino dos Céus. É isso?
C - O Senhor ouviu minha conversa com o alado aqui? Ah...pra isso o Senhor é onipresente, né?
A - Levo o insolente direto pras profundas, Senhor?
C - Não se meta!
D - Os dois, calados. E espero que agora me obedeçam. Só falem se assim forem solicitados.
A e C - Sim, senhor.
D - Mas então, Carlos. Você espera ir pro céu com essa sua ficha?
C - Claro! Sempre fui religioso, sempre ajudei os pobres - quando pude - e o Senhor sabe que eu sempre acreditei em Vossa Senhoria acima de qualquer coisa.
D - Ah...É mesmo? Colocaria sua alma imortal como garantia disso?
C - Bom....eu acreditava muito na Seleção de 82 também. Mas o Sr. sabe no que deu, né?
A - Claro que ele sabe, incrédulo! Quem você acha que fez o Cerezo entregar aquela bola?
C - FOI O SENHOR?
D - A soberba de toda uma nação, ainda mais sendo um povo tão religioso, precisava ser coibida, meu filho. E anjo: delação é um pecado muito grave, sabia?
A - Desculpe, Senhor.
D - E o seu apetite, Carlos?
C - Que tem ele, Senhor?
D - Não acha que ele era um tanto quanto exacerbado?
A - Nota-se pela pança...
C - Anjos não têm sexo. Preferia que esse não tivesse língua!
D - O que eu já falei para vocês dois?
A e C - Desculpe, Senhor.
D - A questão, Carlos, é que sua fome há muito tempo deixou de ser apetite para ser gula.
C - Queisso, Sr.! Eu comia tão pouco!
D - Sei. Por isso aquelas feijoadas duplas toda sexta-feira, não?
C - Mas Senhor! A feijoada de sexta é sagrada!
D - Não blasfeme!
C - Desculpe, Senhor.
D - Eu até deixaria isso passar se fosse apenas a feijoada. E a sirizada? E os galetos? E os rodízios de massa? E os churrascos?
C - Saco vazio não para em pé, senhor!
A - De vazio esse saco não tem nada!
D - Anjo....
A - Desculpe, Senhor.
D - Você era uma draga de comida, Carlos.
C - Tá bom, Senhor, admito que várias vezes pequei pelo excesso nesse caso.
D - Pecar é o termo mais apropriado. Mas a gula não é o único dos seus pecados graves.
C - Não, Senhor? E tem mais?
D - Tem, claro que tem. De preguiça à luxúria, você fez de tudo um pouco.
C - Assim o Senhor me ofende!
D - Carlos: o nome disso é juízo final porque você está sendo julgado por tudo o que fez na vida. Acha mesmo que ofendo você? Sei de todas que você aprontou. Querendo esconder algo quem ofende aqui é você a mim.
C - Tá, Senhor...reconheço que tive meus pecadilhos.
D - Nem tão "ilhos", Carlos. Teve aquela vez que você roubou dinheiro da sua avó doente.
C - Aquilo não foi um roubo, Senhor! Eu estava fazendo uma antecipação compulsória de herança. E além do mais, a velhota não podia nem mais andar naquela época! Pra que ia precisar de grana?
A - Tsk, tsk, tsk...querendo justificar um pecado com esse linguajar politicamente correto? Roubo é roubo!
C - E o que você entende desse linguajar? Vai me dizer que o "politicamente correto" também é obra divina?
D - Não, Carlos. Isso veio lá das profundas.
C - Não me surpreende.
D - E sua preguiça? Essa talvez seja uma característica sua mais marcante que a gula.
C - Mas aí o Senhor há de concordar que é normal uma certa letargia depois de comer muito...
D - Isso não o exime do pecado. E eu nem quero falar da luxúria.
C - Luxúria?!?!
D - É. Você quando não pensava em comida, tinha sexo na cabeça o tempo todo.
C - E pensar é pecado?
D - Não se lembra do ato de contrição na missa? "Confesso a Deus Todo-Poderoso e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes..."
A - ...por pensamentos e palavras, atos e omissões".
C - Não se mete, Anjo
D - Agora ele acertou, Carlos. Não se lembra disso?
C - Lembro, Senhor.
D - Mas não foi apenas em pensamento que você pecou contra a carne, Carlos. Na sua obsessão sexual, você desejou várias vezes a mulher do próximo. E não apenas desejou, não é mesmo?
C - Ah...o Senhor está falando da Dina? A mulher do Ananias? Foi apenas uma vez. E ela dava mole pra todo mundo, né?
D - E isso justifica sua falha de caráter.
C - Não. Mas mais injustificado foi o meu mau gosto. Ela era feinha.
D - Pois então? Como uma pessoa com sua história pode pleitear uma lugar no paraíso?
C - Mas Senhor...claro que tive meus deslizes. Sou humano, passível de falhas, como qualquer outro. O Senhor sabe que, apesar de tudo isso, sou uma boa pessoa. Pelo menos, em essência.
D - Sei, claro que sei. Mas seus pecados devem ser expiados de alguma forma. Por isso, te condeno a vagar com essa sua lista de pecados, com letras garrafais, por onde quer que você vá. E aviso logo: muitas pessoas da sua família e amigos estão por aqui. Inclusive o Ananias. E a Dina.
C - Senhor! Mas isso é muito constrangimento pruma alma só! Será um inferno!
D - Não queira sequer imaginar o inferno, meu filho. Isso é apenas o seu purgatório. Anjo, leve essa alma para que pague por seus pecados.
A - Sim, Senhor.

Deus e toda a sala evaporam no ar. Sobram, em um espaço vazio, branco e indefinido, Carlos e o Anjo, que mal consegue conter os risos.

A - Deu sorte, rapaz. Essa pena, apesar de engraçada, é leve.
C - Você fala isso porque não conhece meu pai. Se ele estiver por aqui, vou ouvir até o final dos tempos.
A - Não se pode dizer que você não mereceu isso.
C - Ah, não posso?
A - Não. Não se esqueça que Ele ouve tudo - diz, sussurrando
C - Tem razão. Eu mereci isso.
A - Pois é.
C - Mas me fala um negócio, em particular...lá na Alemanha. O meião do Roberto Carlos também foi obra dEle?

6.1.07

Ferro de passar



Era uma dessas coisas que só passam pela cabeça dos solteirões de certa idade. Cismou de achar que a sua empregada era boa de cama. Não que fosse do tipo solitário - tinha suas "amigas íntimas" aqui e acolá - mas encasquetou com a ideia de transar com a Marilda.

Marilda nem tinha o tipo físico que mais interessava ao Sérgio. Era baixinha, um pouco acima do peso e, se não era feia, o máximo que poderiam lhe atribuir era uma beleza exótica. Mas cadê que isso era empecilho para o Sérgio?

- Ah...uma mulher que passa a roupa do jeito que ela passa tem mãos de fada! - comentava com os amigos.

Todos achavam graça de mais essa mania do Sérgio. Mas, dessa vez, mesmo que sem ter uma lógica irrefutável e aparente, o argumento dele tinha algo de plausível. Ele nunca tinha visto uma mulher passar tão bem uma camisa. Depois de passar pelas mãos da Marilda, suas camisas sociais, que sempre tinham sido um tormento para suas diaristas anteriores, pareciam que nunca tinha sido dobradas. Era como se o pano tivesse sido medido, cortado, costurado na hora e sem um amassozinho sequer. Era uma coisa de louco.

- Basta eu ver meu armário cheio de cabides que eu fico louco de vontade! - dizia o Sérgio, entre um chope e outro.

Seus amigos riam. Mas Sérgio já havia decidido seduzir Marilda, custasse o que custasse. Ela vinha três vezes na semana. E nos dias seguintes à decisão do apaixonado, ele já agia diferente.

- Deixa que eu te ajudo, Marilda.
- Vou comprar cigarro. Quer algo da rua, Marilda? Um bombom?
- Quer que eu vá montando a tábua de passar?

Apesar dos seus 30 e muitos, Marilda era inocente. Achou engraçado o novo tratamento, mas não desconfiou de nada. Notava que o "seu" Sérgio agora estava sempre por perto, que não saia mais quando ela começava a esfregar o chão e que as vezes ele a olhava de um jeito engraçado. Doidice de patrão, ela estava acostumada.

Até que um dia Sérgio, algumas semanas depois, vendo que ela não seria seduzida por mimos e atenções sutis, partiu para um ataque mais direto: agarrou a Marilda por trás, enquanto ela passava a camisa social que ele mais gostava.

- Que isso, seu Sérgio!?!?!? Me solta!
- Ah, Marilda! Eu não aguento! Você passando minhas camisas fica demais!
- "Seu" Sérgio, me solta! A camisa vai queimar aqui!
- Deixa queimar! Eu já estou aqui pegando fogo!

Os detalhes das cenas seguintes são irrelevantes para a história. O que vale mesmo é saber que Sérgio chegou na mesa do bar, sentou entre os amigos de sempre e pediu um chope. Muito cabisbaixo.

- Mas o que foi, rapaz? Que cara é essa? - perguntou um.
- Ainda não conseguiu levar sua empregada pra cama? - perguntou outro.
- Pelo contrário - respondeu Sérgio - consegui sim.
- E por que a cara de velório, então?
- Tive que demitir a moça.
- Por que?!?! - perguntaram os dois, em uníssono.
- Sabem as mãos de fada que a moça tinha com as minhas camisas?
- Sabemos - disse o primeiro amigo, já ansioso pelo relato - e daí?
- Pois é. Era só com as camisas mesmo. No meu pau ela pegava como quem pega num ferro de passar...

Depois da gargalhada dos dois amigos, um deles pergunta.

- Mas isso é motivo para demitir a coitada?
- Não. Nem foi por isso, não.
- O que foi então?
- Ela queimou minha camisa preferida também.