28.2.07

Mr. Sandman



"Tentando tirar a poeira dos olhos", ele disse. Ela não entendeu e ele repetiu, dessa vez explicando que a expressão significava que estava tentando espantar o sono. Ela riu, porque não conhecia a expressão "poeira nos olhos" e porque a entendeu na hora ("a pálpebra fica mesmo arranhando os olhos quando queremos muito dormir", ela disse). Ele se lembrou da história do Mr. Sandman, que joga o pó do sono nas pessoas para que durmam, mas ficou com preguiça de contar a história para ela.

Ela lhe ofereceu um café e ele não aceitou. Não queria tanto perder o sono assim, "já está tarde, ele disse, "daqui a pouco teremos que ir mesmo para cama". Ela perguntou "teremos?" e ele respondeu que esperava que ela o acompanhasse "nesse momento importante" - eram essas as palavras que ela lembrava.

"Não tinha essa intenção, mas se você quer, eu vou com você, foi o que ela respondeu. "Não precisa ir, se você só vai pra me agradar", ele disse. "Não", disse ela por sua vez, "será um prazer". Apesar das palavras agradáveis, ele viu que seu rosto dizia justamente o contrário. "Você tem certeza?" ele disse. E ela respondeu que o problema é que não pretendia acordar cedo no dia seguinte. Lembrou a ele que quinta-feira era o único dia na semana em que podia esticar um pouco mais o sono.

"Tá bom. Não precisa ir, querida", ele disse. Então foi a vez dela notar que o que ele dizia não entrava em total desacordo com a expressão na sua face. Vendo isso ela - sem dizer nada - levantou-se da cadeira e foi ao quarto. Ele ficou sozinho na mesa de jantar, ainda tentando tirar a poeira dos olhos.

Ela volta com o despertador na mão e pergunta que horas eles teriam que acordar. Ele respondeu que não precisava do rádio relógio, que quem tinha que acordar cedo era ele e que ele sabia quanto ela detestava o alarme do aparelho. "Ué? Mas eu vou com você!", ela disse. E ele respondeu: "não precisa. Amanhã você vai poder dormir mais e não quero atrapalhar seu sono". Algo no tom de voz dele fez com que ela se sentisse mal. Sabia o que aquele tom significava: ele estava contrariado. Foi o necessário para que ela também ficasse emburrada.

"Prefiro quando você diz a verdade e não me vem com esse tonzinho de compreensão ensaiada", ela disse. Ele rebateu com "não quero uma pessoa de má vontade comigo amanhã, só isso". Essa parte do diálogo foi o começo de uma discussão: para ele, era tudo insensibilidade, falta de companheirismo e egoísmo da parte dela ("me abanar num momento tão crucial que estou vivendo!" foi o argumento dele). Já ela o acusou de ser cheio de vontades, fútil e também egoísta (ela disse a ele "onde já se viu me fazer perder minha manhã de folga por causa de um campeonato de pelada onde você sequer sai do banco de reservas! Sua noção de 'momento importante' precisa ser revista urgentemente!)

Ficaram batendo boca por horas. Acusações pra cá, acusações pra lá, ficaram de mal, justo no dia da semifinal do campeonato. Ele queria que ela fosse, considerava-a seu talismã. E foi justamente quando ele falou isso para ela, que a briga acabou. "Sou mesmo?!?!", ela perguntou, deslumbrada. Ele confirmou que sim, abraçando-a. "Claro, minha coelhinha! Se um pé de coelho dá sorte, imagine eu tendo seus dois pés perto de mim!", completou ele. Depois desse abraço (e das horas de discussão) foram juntos para cama. E não dormiram imediatamente, porque nenhum dos dois tinham um grão de poeira sequer nos olhos.

Resultado: ela esqueceu de ajustar o despertador e ele não acordou na hora que deveria. Ambos - e o time dele também - perderam o jogo.

23.2.07

As carnes escuras do frango



Abriu a velha marmita de sempre e a visão não lhe agradou nem um pouco. Purê, uma ou duas colheres de arroz e um frango em pedaços mal cortados que já vinha se arrastando por dias na sua geladeira. Se fosse dado a muitas frescuras, teria perdido o apetite.

Não perdeu naquele momento, mas sua fome desaparecera momentos depois. Reparou com mais atenção sua refeição e, vendo-a com detalhes, achou-a ainda pior: como já deveria ser o terceiro almoço seguido com o mesmo frango assado comprado no final de semana, os nacos da ave que haviam sobrado eram pouco e escuros, exatamente das partes que ele menos gostava.

O garfo entrou sem resistência na carne marinada pelo tempo e pela geladeira. Não ousou cheirar o pedaço apanhado. Sabia de cor o odor daquela carne, desde o tempo em que sua mãe insistia em não desperdiçar comida e o obrigava a comer qualquer parte de frango que lhe fosse oferecida. A mordida veio hesitante, impregnada da certeza de que não ia gostar do que colocaria na boca.

Não deu outra: era o mesmo gosto ruim de sempre, o gosto das partes escuras do frango.

"Porra!" - pensou, jogando o garfo no tupperware cheio de comida. Isso não era vida! Ele tinha estudado, era razoavelmente culto e sabia que merecia, se não ainda uma vida melhor, ao menos uma refeição decente. Mais irritante que o apetite perdido, era se ver naquela situação. Resolveu jogar a marmita no lixo e gastar sua hora de almoço andando.

Caminhava de cabeça baixa, ainda irritado. Resolveu fumar pra tirar o gosto do frango da boca. "Gosto ruim, por gosto ruim, prefiro o da nicotina" - pensou. Quando estava no meio do cigarro, viu-se em frente aquele restaurante caro que sempre quis ir mas que, tinha certeza, não teria grana para pagar sequer o couvert.

"Foda-se!" - pensou antes de abrir a porta do estabelecimento.

Nem o ambiente precisamente climatizado, ou as luzes suaves, tão diferentes das que iluminavam o refeitório onde almoçava, ou as pessoas elegantemente vestidas, com dentes perfeitos e peles brilhosas e nem mesmo a cara de desconfiança do sujeito da recepção o impediriam de ter uma refeição decente.

"Mesa para um, por favor" - falou, tentando mostrar uma classe que não tinha.

O recepcionista fez aquela cara de quem ia dizer "tem reserva?", mas se conteve. Certamente, não em respeito a um cliente (mesmo que mal vestido) e sim porque não teria como explicar a necessidade do procedimento com metade das mesas vazias e às duas da tarde.

"Por aqui, sim" - disse meio a contragosto o recepcionista.

"Não se pode dar uniforme pra pobre que acontece isso! A primeira coisa que faz quando veste a roupa é começar a desconfiar de outros pobres!" - pensava enquanto seguia o sujeito. Sentou-se em uma mesa de centro, olhou os talheres e os pratos, os copos e taças, o guardanapo de linho alvíssimo, o cardápio - forrado com um couro cheiroso e entregue após uma mesura estudada feita pelo maître - o menu em italiano, a carta de vinhos. Tudo era completamente fora da sua realidade, mas ele se sentia a vontade. Muito a vontade.

Tinha algum conhecimento de gastronomia, tinha lido alguns livros, visto programas. Ele sabia que não faria feio no restaurante. E não fez: pediu consomês, pastinhas, conservas, pães e uma sopa de entrada. Evidentemente, não esqueceu o aperitivo antes, para reabrir o apetite perdido pelo (não queria nem lembrar!) gosto do frango de três dias da sua marmita. Depois, com bastante desenvoltura, escolheu uma salada, um prato principal - não sem antes perguntar como era preparada a fina carne que havia pedido - e uma sobremesa que, pelo nome, sabia-se de complexa feitura. Chamou o maître com um gesto estudado e pediu um conselho sobre que vinho acompanharia melhor seu pedido. Achou que esse ato de modéstia seria elegante e assim, também não corria o risco de pedir uma bebida que o fizesse ser motivo de chacota para os garçons da casa.

Comeu com uma sofreguidão calma, um deleite selvagem. Mais que a estupenda refeição, ele saboreava o momento. Estava perfeito, dono da situação, se portando como se aquele fosse seu restaurante favorito, onde almoçava 4 vezes por semana. Não fosse pelos seus trajes destoantes, qualquer um diria que ele estava entre seus pares.

Mas não estava. E ele se lembrou disso quando, depois de um café maravilhoso, veio a conta. Os três dígitos, bastante altos, eram maiores do que o salário dele. Mantendo a classe que nem ele esperava ter, pediu que chamassem o gerente. Explicou a situação ao senhor de cara séria. Esse, após ficar a par dos fatos, mostrou que não apenas suas feições eram severas. Não havendo a possibilidade de pagamento, o cavalheiro seria conduzido ao distrito policial mais próximo, sem estardalhaço e com o máximo de discrição possíveis. Ele achou justa a proposta. Levantou-se e seguiu os seguranças (que também pareciam ter uma prazer especial em estar colocando um pobre, como eles, em seu devido lugar).

A delegacia foi sua volta ao mundo real. Apesar de tudo, o gerente não prestou queixa. Pediu apenas, como forma de corretivo, que ele ficasse algumas horas no xadrez, para que pensasse na idiotice que fez. O delegado achou justa a proposta. Antes de ser conduzido à cela, ele ligou para o trabalho. Disse que teve problemas e que iria para casa. A desculpa? Passou mal com a marmita que levou.

Sentado no xadrez, tinha tão vívida em sua mente os momentos que passou no restaurante que nem teve medo das companhias sinistras que estavam com ele. Estava alheio aos gritos e reclamações dos presos, parecia que reclamavam de algum atraso. Depois de algum tempo, voltando à realidade, compreendeu o que havia na cela e agradeceu por já ter almoçado.

As marmitas dos presos estavam duas horas atrasadas. E quando elas chegaram, pode ver os pedaços escuros de frango dentro das embalagens de alumínio.