27.4.07

O despertador



A manhã o acordou com seu grito luminoso, ensurdecendo seus olhos.Virou-se com dificuldade, pegou o maço amassado de cigarros na cabeceira, retirou um cigarro tão amassado quanto e o acendeu com seu sólido Zippo prateado. Pegar o isqueiro fez com que ele tivesse seu primeiro contato com a realidade. A luz do dia, a fumaça nos pulmões e a ligeira dor de cabeça não o tinham tirado do aparente estado letárgico de quem ainda não acordou totalmente. Esfregou os olhos, pôs-se sentado na cama. O chão, tocado pelos seus pés, foi seu segundo contato com a dureza da realidade. O próximo passo seria levantar. Valeria a pena?

O relógio digital anunciava seu atraso. Sentia falta do seu antigo despertador da infância, artefato analógico, pesado, mas extremamente confiável. Olhar os traços que formavam os números no relógio não lhe lembravam a realidade. Aqueles números não existiam, eram uma seqüência de algarismos binários que dispostos na ordem certa, informavam que já eram 10: 23.

-Aonde foram parar os ponteiros nesse mundo? - ele se perguntava.

Durante mais de 15 anos, seu antigo despertador redondo e convencional nunca falhara. Sempre acordava ao som do seus sinos. Era sempre o mesmo som irritante e por isso, eficiente. Não havia a opção de acordar com música, com sirenes, com galos cantando ("galos cantando na Zona Sul?" Ele pensou quando leu essa opção entre os alarmes do artefato). As vezes atrasava, mas nunca mais de uma hora. E nunca deixou de tocar, como esse maldito relógio digital à sua frente. Era sólido e confiável. Já esse despertador digital à sua frente era muito leve, um primor do design contemporâneo.

-Mas essa merda não desperta - reclamou consigo mesmo.

Viu seu laptop no chão, outra maravilha da tecnologia. De certa forma, seu atraso hoje era culpa desse computador portátil. Se não estivesse trabalhando com ele até tarde aquele dia, se não tivesse resolvido entrar numa sala de bate papo para espairecer um pouco, se não tivesse conhecido ela...Ela. Ela tinha escolhido o novo despertador.

"-Essa sua velharia está caindo aos pedaços. E é muito feio!" - ela dizia.

Se conheceram num chat, trocaram e-mails - essa impalpabilidade que substituiu as cartas, que funcionaram muito bem durante séculos - resolveram se conhecer e pimba! Gostaram um do outro. Começaram a sair, começaram a namorar, resolveram morar juntos e nessa, seu velho, feio, caindo aos pedaços mas confiável despertador analógico, de corda e com ponteiros, foi jogado fora.

- E ela dizia que eu ia agradecer por isso algum dia! - ele pensou, revoltado.

Ela não parou no despertador. Mudou muita coisa na vida dele. Hábitos, gostos, viagens, apetites. Tudo. Ele mudou muito, mas ela, aparentemente, não havia mudado nada. Continuou entrando nas salas de bate-papo (talvez usando seu próprio laptop), continuou conhecendo pessoas, trocando e-mails. Um dia ela conheceu algum sujeito mais "antenado", segundo as próprias palavras dela. E agora, estava ele no quarto, sozinho e cercado por equipamentos eletrônicos.

A bronca do chefe seria inevitável. Era o terceiro ou quarto atraso grande no mês. E tudo porque ele não conseguiu aprender direito como programar o maldito despertador digital, uma obra de arte do design moderno. Em 15 anos com seu antigo e analógico despertador de corda, ele nunca havia deixado de despertar. E, por mais que fosse irritante o som da sua campainha em seus ouvidos, ele nunca pensou em realizar o lugar comum de quebrar o relógio por ter sido acordado.

Antes de ir tomar um banho, ele pegou o rádio-relógio digital e o atirou longe, espatifando com ele na parede.

18.4.07

Reservado


Solange achava incrível como um banheiro de faculdade, lugar de gente estudada e com educação, podia ser tão imundo. Nunca tivera tanto trabalho quanto agora, desde que arranjou esse bico de faxineira. O pior é que, além de pesado, era obrigação chata, uma eterna rotina de esperar as turmas saírem, pegar o material de limpeza e limpar a porcaria “desses meninos mimados”, como costumava dizer. Se soubessem o quanto Solange odiava seu serviço, veriam como fizeram certo em deixa-la com sua faxina apenas depois do fim das aulas. Se visse algum aluno fazendo das suas porcarias enquanto trabalhava, poderia cometer um desatino.

Tinha resolvido começar pela pior parte. Estava em um reservado feminino, limpando a privada e pensando que se tivesse uma filha que deixasse seu banheiro naquele estado, ela ia apanhar muito. Seguia na esfrega e nos devaneios quando ouve a porta se abrir. Se preparava para sair do reservado e dar uma bronca merecida na engraçadinha que pretendia sujar o banheiro fora do horário quando reparou que não era uma menina. Pelo menos, não uma menina sozinha, mas um casal.

Encostou a porta do reservado, deixando uma pequena brecha para espiar. Queria ver se conhecia o casal. Não conseguiu ver os rostos direito. O casal estava agarrado num desespero tal que parecia que não haveria amanhã para ambos. Solange ficou olhando, não sem certa malícia, os dois jovens que se atracavam.

- Pelo menos estão usando o banheiro pra uma coisa boa e não pra emporcalhar tudo - pensou.

Os dois namorados, não tomando conhecimento da vouyeur inesperada, tomavam mais e mais liberdade um com o outro. Solange, que no começo via a cena com algum prazer, começou a se sentir constrangida com os avanços do casal. Por respeito e vergonha - menos o primeiro que o segundo - , Solange fechou a porta do reservado e continuou sua limpeza, fazendo o mínimo de barulho possível.

Solange tentava seguir com seu trabalho mas os ruídos do casal tiravam sua concentração. Era uma mulher um tanto e quanto recatada, não estava acostumada a fazer o que os dois jovens estavam fazendo assim, em um lugar público. Achava até uma sem-vergonhice. Talvez devesse sair e acabar com a festa. Até porque, ela não ia ficar ali escondida esperando os dois exibidos terminarem para continuar sua limpeza. Decidida a interromper os arroubos amorosos do casal, Solange abre novamente a porta do reservado, devagar, para não flagrar nenhuma cena chocante demais. Não adiantou, mas o choque foi inesperado. Ao ver pela fresta na porta os dois agarrados, Solange percebe, horrorizada que o que era para ser uma transa se transformou em outra coisa: um assassinato.

No lugar de beijos, Solange viu o rapaz agarrando a moça por trás e a enforcando com uma espécie de fio. Os braços da garota, ainda se debatendo, lutando pela vida, deixaram Solange congelada. Ela não conseguia esboçar uma reação, além se forçar a não gritar. Apesar de terrificante, não conseguia deixar de ver a cena. Olhou, petrificada, até ver a moça parar de lutar e ser deixada, sem vida, no chão.

Com o desfecho macabro, Solange não se conteve e deu um suspiro. Assustada com a possibilidade de ter sido ouvida, tapou a boca com a mão e fechou a porta do reservado, devagar. As lágrimas corriam pelo seu rosto e ela procurou se controlar o máximo que pudesse. Depois de alguns segundos, ouviu com terror os passos do assassino, vindo em direção ao reservado. Solange tremia. Intimamente, rezava, sem saber se desejava que tudo aquilo não passasse de uma alucinação ou se pedia para que o homem fosse embora sem vê-la. Mas o desespero tomou conta de Solange de vez quando percebeu a porta do reservado sendo aberta, vagarosamente. Encolheu-se na parede, numa mudez cadavérica. Para sua sorte, estava atrás da porta e o homem saiu, sem notar sua presença.

Solange mordia seus lábios até quase sangrar. Chorava em silêncio, mas copiosamente. Esperou um tempo, desejando com todas as suas forças que o criminoso fosse logo embora. Queria abandonar logo aquele lugar, não queria estar no mesmo ambiente onde algo tão cruel tinha ocorrido. Controlou seu choro, viu que não estava mais tremendo e, criando uma coragem que não sabia que tinha, abriu a porta, vagarosamente. Olhou pela fresta da porta e não viu o homem, apenas as pernas estiradas da menina morta. Um leve tremor tomou conta do seu corpo ao vê-la. Colocou a cabeça fora do reservado, olhou para os dois lados e viu que estava sozinha. Apenas a presença inexorável da morta a acompanhava.

Andou com passos vacilantes em direção do corpo. Sentiu uma enorme pena da moça, que tinha morrido sabe-se lá por que razão. Não conseguia ver o rosto da morta, e isso a deixou ainda mais penalizada: além de assassinada, morrera com a face virada para o chão imundo do banheiro. Ainda estava imersa nesses pensamentos quando ouviu um barulho atrás de si. Solange virou-se e viu um homem entrar no banheiro. Não precisaria ter reconhecido as roupas do assassino. Ele vinha na sua direção segurando a mesma corda que tinha usado no pescoço da garota.

Solange não conseguiu sequer gritar. Sua voz tinha sumido, sentiu suas pernas bambas, seria incapaz de qualquer reação. O homem a mirava impiedosamente, sem piscar. Levantou as duas mãos esticando a corda que segurava.

A vontade de viver reacendeu-se em Solange. Ela começou a vasculhar com o olhar algo que pudesse usar como arma. Olhou as paredes do banheiro, o chão, a pia, os outros dois reservados. O homem se aproximava com passos lentos mas seguros e ela não encontrou nada que a ajudasse. Só viu sujeira. As paredes pichadas, o espelho encardido, a pia com manchas de ferrugem, o chão, com respingos e restos de papel. O homem estava cada vez mais perto e Solange viu, diante da morte iminente, que sua vida seria um constante limpar de coisas que ela não sujara, uma servidão à faxina injusta, e pior, para pessoas que não sabiam sequer da sua existência (?). Seus ombros penderam diante dessa realidade inescapável. Desistiu de procurar com o que se defender com olhos cansados.

O homem estava diante de Solange que, parada, não parecia pretender nada. O assassino leva a corda em direção ao pescoço dela e o último ato de Solange foi dar as costas ao homem.