6.7.04

Tudo certo



Não saberia dizer, dentre todas as coisas inesperadas com que fora presenteado naquele dia, qual delas tinha sido pior. O despertador não tocou, o chuveiro queimou, estava sem cigarros, a condução, um inferno. Isso tudo e ainda não eram 10 da manhã.

Levou a bronca de praxe do chefe. "Atrasado de novo!" já era o seu bom dia fazia algumas semanas. Senta-se na mesa, pilhas de papéis, trabalho atrasado de dias, semanas, até meses. Olhares-reprimenda de todos os lados: companheiros(?) de trabalho, gerentes, sub-chefes e toda uma hierarquia do tédio, conspirando e tramando contra.

"Fodam-se todos!", era o que queria gritar. Resolveu tomar uma atitude. Foi até a copa beber um café. Olhares-reprovação o acompanham.

Como sempre, queimou a mão na xícara muito quente e a língua no café idem. Quando a temperatura da bebida ficou suportável, notou que estava com pouco açúcar. "Hoje está pior que o normal", pensou. E ainda faltava a pilha de papéis, o almoço caro, a volta insuportável para casa...

Acabou o café e foi lavar a xícara - estava cansado das broncas, exclusivas para ele, da servente do escritório - e num movimento descuidado, encostou a mão molhada no fio desencapado da cafeteira. Nunca ia imaginar que uma simples mão molhada e um pedaço microscópico de fio sem capa pudesse causar tamanho tranco.

Acordou num lugar branco, rodeado por pessoas de branco. A claridade era tanta que teve dificuldades em abrir os olhos. Dera sorte: morreu e estava no céu. Já estava imaginando que tudo mudaria quando sente uma mão pesada no ombro. Era o seu superior no escritório.

- Que papelão, hein? Além de matar todos de susto na repartição, você desmaia, quebra uma xícara, uma cafeteira e perde meio dia de trabalho. Saiba que tudo isso vai ser descontado no seu salário do mês que vem.

Vendo que seu sonho de um paraíso não era real, começa a chorar, baixinho. O que faz seu chefe se compadecer dele, pela primeira vez.

- Olha, rapaz, não fique assim! Por que está chorando? Seja homem!!! Está tudo bem com você, eu sei. Não está?

- Está - respondeu, em meio a uma crise de soluços - está tudo absolutamente certo. Certo, como sempre esteve...

14.6.04

Cinza



para Ginger

O céu carregado que cobria sua cabeça e da sua atual namorada o faziam lembrar dela. Ela gostava do cinza, dos dias nublados. Para ela, eram um convite a reflexão.

- Mentira! Você gosta por causa daquela música!

Falou para irritá-la, dizendo que era por causa de "Happy When it Rains", do Jesus & Mary Chain. Ele gostava de implicar com a importância que ela dava ao rock. Ela não admitia, mas tinha a noção exata do quanto seu humor dependia de ouvir a canção certa pela manhã ou passar pela sua cabeça um refrão que a alegrasse.

Mas agora, esse céu acinzentado - que nem era o mesmo para ele e para ela - só prenunciava a chuva e outra série de memórias. Ele seguia calado, a cabeça realmente nas nuvens e o coração longe daquela que agora levava pela mão.

Era o começo de mais um domingo, sem que o sábado ainda tivesse realmente terminado. Só depois de ir para casa e fazer um sexo mais por reflexo que por vontade, entupidos de álcool e "outras cositas más" que ambos estavam. Aí poderiam considerar o dia oficialmente terminado.

Não que com ela fosse diferente, mas era diferente. Era com ela. Iam para o clube, bebiam, dançavam, encontravam os amigos, ficavam loucos e, as vezes, davam vexame. Não brigavam, pelo contrário: só depois de virarem amigos dos seguranças acabou-se a ameaça constante de serem expulsos por excessos de intimidade no meio da pista de dança.

- Pega leve, menina...a gente faz em casa, aqui é bandeira!

E como não seria, entre 30, 40 pessoas espremidas na pequena pista? Mas estavam loucos de amor e ácido e não conseguiam se controlar. Sempre eram cutucados pelos seguranças, que amigos, só pediam para maneirarem. Hoje, os clubes são outros, como outra é sua mulher. Não há mais excessos. Só há a lembrança, toda vez que tocava alguma música que ela gostava.

Ele se divertia com sua atual namorada, mas depois de algumas doses e principalmente de algumas músicas, costumava ficar quieto. A atual namorada notava que algo não estava bem, via-o pensando, coisa anormal de se fazer no meio de tanto barulho e movimento. Repentinamente, falava que queria ir. A atual namorada perguntava se ele estava se sentindo mal.

- Não, não é nada. Não suporto Mazzy Star, só isso.

No fim das contas, foi melhor sair daquele ambiente infestado de fumaça e recordações. Queria ar puro. Estava meio alto e se a garota que ele estava namorando agora começasse a fazer perguntas, ia se irritar. Esperava que o nascer do sol, que devia estar próximo, iluminasse seu raciocínio. Ele só não contava com o céu totalmente nublado.

-"You were my sunny day rain/ You were the clouds in the sky/ You were the darkest sky/ But your lips spoke gold and honey"

Não pode evitar o tom ríspido quando sua atual namorada perguntou o que ele balbuciava. Tentou consertar a situação, explicando com a voz mais delicada que podia fazer que era uma música sobre a chuva, condizente com o tempo que inesperadamente pegaram na saída do clube. A atual namorada o abraçou e ele retribuiu, mas, olhando para o céu, percebeu que esse abraço foi mesmo para ela.

Chegaram em casa antes da chuva. Falou com a atual namorada que estava cansado demais para tomar banho, que desmaiaria imediatamente. A namorada respondeu que ela não deixaria que isso acontecesse, que iria tomar um banho e já, já estaria na cama com ele. Deu um beijo nele e saiu, sem imaginar que o gosto ruim na boca do namorado não tinha nada a ver com as várias bebidas que ele havia tomado.

Tirou os sapatos, a camisa e se jogou na cama. Era inevitável, ainda pensava nela. Tentou imaginar - e conseguiu facilmente - como seria se ela estivesse aqui, no lugar da atual namorada: ele falaria que estava cansado, ela o beijaria, levaria ele pela mão até a cama, deitaria ele, colocaria uma música - dependendo do clima, poderia ser "Just Like Honey" do Jesus ou alguma mais eletrônica, como a banda Air - e então transariam, de várias maneiras, também dependendo do clima, mas esses eram muitos, e mudavam inúmeras vezes. Nessas situações, só uma coisa era rotina: era ela quem sempre dominava.

Sua atual namorada apareceu de repente, saída do banho, nua, secando os cabelos. Ele estava excitado, mas apesar da bela visão à sua frente, não era por isso. Era por ela. Ela ainda o deixava de pau duro, e não precisava estar presente para isso. Mesmo em outra cidade, outro estado, bastava que ela surgisse em sua mente.

A visão dele excitado fez sua atual namorada abrir um sorriso. Não foi direto para cama. Foi até o som e colocou um cd. Veio andando até a cama, com o controle remoto do som na mão. Deitou-se em cima dele e lhe deu um beijo. Sem parar de beija-lo, virou o controle em direção ao play. A música demorou uns segundos para começar.

Era o disco da Maria Rita.

Ele se levantou e ficou sentado na cama. A atual namorada perguntou o que houve. Enquanto acendia o cigarro, respondeu que não era nada, já tinha dito que estava cansado. A namorada abraçou-o e beijou-lhe o pescoço, falando que estava tudo bem, que se ele estava cansado, era só se deitarem. Ele saiu da cama, colocou a camisa e os sapatos novamente, e disse que precisava dar uma volta. A atual namorada protestou. Além dele não ter descansado nada, estava ameaçando um temporal.

- Eu gosto de chuva - foi o que disse, saindo do quarto e fechando a porta.

Na rua o vento era forte, mas eram tantas nuvens, em milhares de camadas sobrepostas, que não espantava a chuva iminente. Ele estava com frio. Cruzou os braços, cigarro entre os dedos, e seguiu em frente, enquanto as primeiras gotas começavam a cair.

Tinha vontade de chorar. Sabia que não era por causa da MPB na hora do sexo que ele tinha fugido do quarto daquela maneira. Gostava da sua atual namorada, mesmo sabendo que nunca deixaria de amá-la. Ela estava entranhada em sua vida, como o cheiro de nicotina estava na camisa que usara no clube esta noite.
A chuva agora era realmente chuva, apagou o cigarro dele e encharcou sua camisa. No meio da já quase tempestade, ele lembrou das razões que ela deu para ir embora, da sua casa, da sua cidade, da sua vida. Ela disse que não gostava muito de finais felizes, que não tinham graça. Foi uma conversa difícil que virou briga depois dela dizer que ainda o amava e que iria amá-lo sempre. Isso ele não podia agüentar. Se ela o amava ainda, não aceitava que ela fosse. Não entendia o porque.

- Porque assim que é a vida, porque é melhor assim e principalmente porque eu quero.

No meio da chuva, repetiu as últimas palavras que ouviu dela. Aceitou a tormenta como um batizado para sua nova vida, sem ela e sem ilusões sobre ela. Assim é a vida e ele aprendeu de uma forma dolorosa. E não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.

Ele olhou o céu acinzentado com a certeza que nunca mais o veria com os mesmos olhos, com a mesa esperança amarga. Depois virou-se e fez o caminho de volta para casa, para aquela que seria sua atual realidade.

8.6.04

O Ralo



Começou com uma lacraia, ainda filhote, saindo pelo ralo. Jorgina quase teve um ataque ao ver o sinuoso artrópode. Além de detestar insetos, sempre tivera pavor de veneno de lacraia. Todo mundo sabe que uma picada do bicho traria no máximo uma dor de cabeça a moça, mas ela não ligava para os argumentos.

- E se eu tiver uma alergia ao veneno e morrer? - perguntava, irritada.

Jorgina matou a lacraia com o rodo que estava ao seu lado, escorado na parede. Foi mais por sorte, já que ela batia com os olhos fechados, sem a menor preocupação com a mira. As pancadas do rodo foram acompanhadas por gritos estridentes.

- Ô, Jorgina!!! Vamos parar com essa gritaria, merda!
- Tem uma lacraia no banheiro, pai!
- E você tá gritando por que? Quer deixar a bicha surda?

Depois de uma sessão de berros e rodadas no chão, Jorgina abriu os olhos, devagar. Viu o cadáver da lacraria no chão, estraçalhado. Pode então terminar seu banho. Mas não conseguia tirar os olhos do corpo esmagado. A cara de nojo só foi desfeita depois de sair do banheiro. Foi direto à cozinha reclamar com a mãe.

- Mãe, alguém tem que dar um jeito naquele ralo!
- Jorgina, não me atormente, minha filha! Fala isso com teu pai.
- Taca água sanitária naquele buraco maldito que resolve! - gritou o pai, da sala.
- Isso resolve, mãe?
- Não sei...Sei que se você não ficasse horas penteando esse cabelo no chuveiro, o ralo entupiria menos e as lacraias não iriam precisar fugir do afogamento.
- Tava demorando! A culpa é sempre minha!

Tendo sido responsabilizada pelo incidente, Jorgina resolveu parar de discutir. Foi até a área pegar a água sanitária. Faria algo prático, ao invés de ficar só reclamando com os pais. Parou diante do ralo, garrafa de água sanitária aberta, e foi derramando com cuidado e atenção. Se alguma coisa viva saísse do buraco, incomodada com a água diferente, ela estaria pronta para sair correndo. Sorte dela, nada aconteceu.



Dia seguinte, "Seu" Manoel, pai de Jorgina, acorda as cinco da manhã para o trabalho. Tem sua rotina programada há décadas e detesta qualquer tipo de alteração nela. Todo dia é assim: sai da cama, escova os dentes, faz a barba enquanto se banha, olhando-se no espelhinho pendurado na torneira do chuveiro, bebe uma xícara de café com um pedaço de bolo de fubá. Sai de casa para abrir sua venda levando a página de esportes debaixo do braço.

"Seu" Manoel já tinha aberto chuveiro e provado a temperatura da água com a mão que não estava ocupada com a toalha e o aparelho de barbear. Pôs o aparelho no porta-sabonete e começou seu banho. Antes de sair debaixo da água, começou a se barbear. Fez uma espessa espuma esfregando o sabonete nas mãos e passou-a pelo rosto e pescoço. Barbeava-se com esmero, não queria que seus fregueses achassem que o dono da venda onde compravam comida não tinha cuidado com a própria aparência.
Quando estava concentrado em seu reflexo no espelho, passando a lâmina pela segunda pelo rosto, Manoel sentiu algo viscoso tocar seu pé. Sua reação foi imediata, misto de instinto e o reflexo. No pulo que deu, acabou cortando-se com a lâmina. Mas não reparou no corte ou no sangue que corria com a água do chuveiro. A cobra que estava rastejando no box era dona total da sua atenção.

- Ô Matilde! Matilde!!!! Corre aqui, acuda! - gritou "seu" Manoel, se esgueirando pelas paredes do box, fugindo do réptil.
- Mas o que foi, homem de Deus! Que desespero é....
- Uma cobra saiu do ralo, mulher!!!
- Uma o que?

Dona Matilde correu para o banheiro. Vinha do interior e conhecia muito mais de cobras que seu marido, filho de imigrantes que sempre morou na cidade. Entendia o pavor do esposo. Mas chegando ao banheiro, viu que nada podia fazer.

- Manel, meu filho! A porta do banheiro tá trancada! Não dá pra eu entrar!
- Ai, meu Deus!!! Mas você não consegue fazer nada sozinha, mulher!

Dona Matilde não respondeu. Ficou aflita com a situação onde não podia fazer nada de imediato. Colou o ouvido na porta e ouviu os barulhos que o marido fazia. De repente, um estrondo: ao que parecia, Manuel tinha saído do box. Ou melhor, pelo box.

Mas o barulho do vidro quebrado não foi nada, se comparado com a cena a seguir. "Seu" Manuel abriu a porta do banheiro e se jogou por ela. Ele não contava com a Dona Matilde colada com a cabeça na porta. O esbarrão foi inevitável.

Foi por pouco que dona Matilde não teve um ataque cardíaco. Não sabendo ainda o que tinha havido dentro do banheiro, se vê jogada ao chão, com o marido nu, com sangue e sabão no rosto todo. Só o fato de ver o marido seu roupas - fazia tempo - assim, de repente, já seria algo totalmente inesperado. Mas o sangue realmente a assustou.

- Manel - gritou dona Matilde - fala comigo, homem! Você está bem?
- Tá louca? Eu estou do seu lado! Não precisa gritar no meu ouvido!

A grosseria típica. Ele devia estar bem.

- Vai se vestir, Manoel - disse firme Matilde, se dirigindo ao banheiro.
- Tá...mas cuidado, mulher! Tem uma cobra enorme aí...- respondeu seu esposo, com uma voz bem mais contida, quase envergonhada.

Dona Matilde entrou devagar no banheiro. Olhou para cada canto do banheiro e dentro da armação do box semidestruído. "Seu" Manoel ia atrás, como um garotinho assustado, vendo a inspeção da mulher por cima dos seus ombros. Ela entra no Box, se agacha, pega alguma coisa no chão e se levanta, rindo.

- Mas era disso que você estava com medo, homem? Não tem vergonha?

Matilde segurava uma cobra cega, a maior que já tinha visto, mas inofensiva. "Seu" Manoel se encolheu quando a esposa aproximou o animal dele.

- Sai pra lá com isso, Matilde! Pra você que é do mato, é fácil! Nunca uma cobra tinha se esfregado em mim. E se ela me morde? Como eu ia saber se tinha veneno ou não?
- Nem boca esse bicho tem, Manuel! Não seja frouxo!

Diante desse argumento, Manuel se calou. Não tinha cara sequer para pedir para esposa parar de rir.

- Que seja, que seja - falou "seu" Manoel - de qualquer forma, tenho mesmo que dar um jeito nesse ralo. Uma lacraia é aceitável que saia. Uma cobra já é um exagero. No sábado eu vou dar uma olhada nesses canos.
- Só no sábado? E se sair outro bicho quando EU tomar meu banho, Manel?
- Ué? Mas não é a senhora que entende tudo de bicho selvagem? Se vire com suas cobras e lagartos até eu consertar isso.

Manuel se virou sem dar maiores satisfações à dona Matilde. Com o marido de costas, ela não pode ver o sorrisinho de triunfo que ele ostentava.



Jorgina chegou da rua à tarde. Foi recebida pela mãe, esbaforida.

- Onde você andou, menina! São quatro da tarde!
- Ué, mãe! Eu sempre chego às 3:30...o ônibus só demorou um pouco. Que foi que aconteceu?
- Eu precisando tomar um banho e nada de você chegar!
- E eu com seu banho?
- Olha a boca, menina!
- Desculpe, mãe...não quis ser grossa. Só quero saber porque você teve que me esperar para ir pro chuveiro.
- É que eu não estou confiando nesse ralo do banheiro. Hoje seu pai destruiu o box porque saiu uma cobra dele.
- Uma cobra?!? Meu Deus!
- Uma cobrinha à toa, não precisa entrar em choque, Jorgina.
- Mãe, eu tenho medo de lacraia...Imagina o que aconteceria comigo se eu visse uma cobra no banheiro.
- Deixa de frescura, garota. Estava esperando você chegar porque vou tomar banho com a porta aberta. Se eu te chamar, já entra levando um pedaço de madeira para qualquer eventualidade.
- Tá bom mãe....Eu levo uma madeira para VOCÊ resolver qualquer eventualidade. Eu não vou esmagar uma cobra com um pau...
- Mas é tão cagona quanto o pai! Tá bom, garota. Só presta atenção se eu te chamar, tá?
- Tá...

Dona Matilde entrou no banheiro, toalha no ombro. Colocou-a sobre a armação agora desvidraçada do box e abriu o chuveiro. Mantinha o olhar fixo no ralo. Não tinha medo do que quer que pudesse sair de lá, só não queria ser pega de surpresa. Estava quase terminando sua limpeza, só faltava enxaguar os cabelos, que estavam cheios de xampu.

A espuma caiu-lhe sobre os olhos. A ardência fez dona Matilde fechar os olhos com força. Estava esfregando o rosto quando sentiu um vento passando pelas suas pernas, seguido de um ruído de...seriam asas?

Fosse uma lacraia ou uma cobra, Matilde saberia como reagir. Mas quando ela, ao abrir os olhos, se deparou com uma dúzia de morcegos voando à sua volta, não soube o que fazer.

- AAAAAAHHHHHH!
- Mãe??? O que foi?!?! - gritou Jorgina.
- Venha cá! DEPRESSA!!!

Jorgina voou pelos cômodos da casa até chegar ao banheiro. Como a porta não estava trancada, foi entrando.

- Jorgina? É você - falou a mãe, sem poder vê-la, com a cabeça coberta com os braços.
- AAAAAHHHHH!
- JORGINA!

Dona Matilde ouviu os passos acelerados da filha se afastando. Pensou na hora o que seria dela se dependesse da filha para estar viva. Criou coragem, tateou as paredes atrás do rodo, até encontrá-lo. Saiu do banheiro nua e encharcada, distribuído pauladas no ar com o cabo do rodo. Caiu no chão da cozinha, esbaforida. Tinha acabado de se enrolar com a toalha que cobria a mesa quando surge a filha.

- Jorgina, sua retardada! Onde você se meteu quando eu precisei da sua ajuda no banheiro!!!
- Você não viu o bando de morcegos que tinha lá?
- CLARO QUE EU VI, sua burra!!! E pra que você acha que te chamei, mula?????
- Pra que?
- PRA VOCÊ ME AJUDAR A TIRÁ-LOS DE LÁ. CARAMBA!
- Mas mãe....Se eu tenho medo de lacraia, imagina o que eu senti quando vi aquele monte de rato voador no banheiro!
- Mas é uma imprestável mesmo!

A discussão terminou com o segundo barulho de vidros se quebrando no banheiro. Mãe e filha correram até o banheiro para ver o que tinha acontecido. Os morcegos tinham sumido, junto com o vidro que vedava o basculante.

- Primeiro eles saem por um buraco de onde mal sai uma cobra. Depois quebram um vidro que se eu socasse, só machucaria minha mão. Essa história está ficando muito estranha, minha filha. - disse dona Matilde, preocupada.
- Será que se a gente tacar a tal da água sanitária que papai falou, da jeito?

Dona Matilde olhou para Jorgina com pena. "Como é burra!", pensou sobre a filha.



- Manel, você TEM que dar um jeito nesse ralo agora! Não me interessa que sejam 7 da noite ou 4 da madrugada. Eu não vou mais me arriscar a entrar nesse banheiro e ser atacada por um bicho selvagem.
- Mas Matilde..eu acabei de chegar do trabalho, estou cansado e você nem vai mais tomar banho hoje, vai?
- Manel, eu não quero saber! Dê um jeito nisso, agora! Não quero ter que colocar um fiscal do IBAMA de plantão aqui em casa.
- Mas, Matilde, meu amor...veja bem...
- Eu estou vendo bem, Manel. Estou vendo que na hora que você for ler seu livro enquanto caga depois da janta, uma cobra vai subir pela privada e...
- Tá, tá, tá bom! Não precisa ser grosseira nem imaginar uma desgraça dessas! Eu vou dar uma olhada nesse cano...

Jorgina percebeu o sorriso vitorioso no rosto da mãe. Viu também a cara de descontente do pai, por isso nem perguntou se ele ira querer a garrafa de água sanitária. "Seu" Manoel voltou visivelmente irritado do quintal, trazendo a caixa de ferramentas.

- Eu só não quero nenhuma reclamação se eu tiver que quebrar o chão do banheiro todo. E se o barulho que eu fizer incomodar a novelinha de vocês, azar. Ouviram?
- Tá bom, Manel. Resolve logo esse troço e depois vem comer que o jantar tá quase pronto.

"Seu" Manoel entrou bufando no banheiro, batendo a porta. Ao contrário das ameaças feitas por ele, o banheiro manteve-se silencioso por uns bons 15 minutos. Jorgina via a novela sem interrupções e dona Matilde fritava um peixe para o jantar.

Mas a quietude foi subitamente substituída por um rugido e um grito horrível. A voz era do "seu" Manoel, mas o rugido foi inidentificável pelas mulheres. Correram até o banheiro, mas não conseguiram abrir a porta: por algum motivo inexplicável, Manoel havia trancado a porta.

Os gritos continuavam e eram cada vez mais horríveis. Jorgina e dona Matilde jogavam o corpo contra a porta, usando toda a força que tinham. O desespero de ambas ia aumentando, conforme os gritos iam se tornando menos intensos. Antes de ambas darem o golpe definitivo na porta, elas ouviram o ruído de algo se quebrando.

Presenciaram um cena surreal, assim que arrombaram a porta e entraram. Manoel estava estendido no chão, esquartejado, com partes de sua anatomia mastigadas e espalhadas por todo chão. Sua caixa de ferramentas estava jogada ao seu lado, completamente vazia. Onde deveria estar o ralo, um buraco com quase meio metro de diâmetro. O que os morcegos havia deixado do basculante não existia mais, tinha sido destruído por o que quer que tenha passado por ali. Pelas pegadas nos azulejos e pelo estrago feito na parede, era um bicho bem forte. Um tigre, talvez.

As duas mulheres se abaixaram diante do cadáver estraçalhado do pai/marido. Estavam ainda chorando, em choque, sem saber o que fazer quando, sorrateiramente, surge um par de mãos vindas da cratera onde ficava o ralo. Uma das mãos segurava uma chave inglesa.

21.5.04

O Escritor Arrependido



"O velho homem lava suas calças em plena Presidente Vargas, de manhã. Com esmero, passa o sabão pelo quase farrapo, dando especial atenção aos fundilhos da peça. Está sol, e apesar de ser inusitado varal, a calçada da movimenta avenida é perfeita para que sua roupa seque"

- Eu não aguento mais, André. Nunca fui um sujeito obsessivo. Acho ridículo isso, até esteticamente falando.
- Chico, você tem que relaxar. Tente olhar as coisas sem esse tipo de obrigação. Isso passa! Internação é um exagero.

O carro de André passa sem pressa pela Av. Presidente Vargas, em parte por conta do trânsito, em parte porque ele precisa prestar atenção não só ao trânsito, mas ao que diz Francisco. Depois do seu amigo ter conseguido se tornar o que sempre quis - um escritor respeitado - ele resolveu aparecer com manias estranhas. Segundo o Chicão, como era conhecido desde a infância por André, ele não conseguia mais pensar de forma normal. Tudo o que ele presenciava se tornava cena literária. Era como se a realidade à sua volta não passasse de uma obra, escrita por algum ser superior.

- Bom, pra alguns religiosos mais poéticos, é isso mesmo. Deus escreve certo...
- Porra, André, não brinca com isso! Estou ficando maluco com essa história.

"Os garotos correm pela avenida, com suas caixas de engraxate. A depor contra eles, sua cor e o preconceito já estabelecido e velado: 'preto correndo? Devem ter aprontado alguma!'. O erro das crianças foi ter passado na frente de um guarda".

- Que foi agora, Chicão? - pergunta André, vendo o amigo abaixar a cabeça e fechar os olhos com força.
- Eu não paro de pensar desse jeito! Tudo que eu vejo vira livro!
- Porra, Chico, e não foi sempre assim? Não é isso que te distingue dos não escritores? Não é esse o seu dom?
- Claro que não! Você acha que Machado de Assis pensava em prosa? Ou que Eça de Queiroz não pensava coisas corriqueiras de vez em quando? Até essa nossa conversa já virou palavra escrita, André.
- Jura?

"O que o amigo não entendia é que isso era um comportamento obsessivo, o que não condizia com sua mente analítica. Ele sempre trouxe seus pensamentos em rédea curta e agora parecia que ele estava precisando doma-los."

- Isso não é engraçado, André.
- Para de dramatizar, Chicão! É por isso que viviam te chamando de viado quando era moleque.
- Não era por isso. Era porque eu não participava das brincadeiras estúpidas da turma.
- Tá bom.

André entra na Rio Branco e repara que o problema do Chico é mais grave do que ele imaginava. Pelo menos para seu amigo, que parece estar levando essa questão muito a sério. Ele percebe a cara triste do Chicão olhando pela janela, as vezes mantendo o olhar em alguma pessoa em particular, virando o pescoço para ver a cena até onde o andar do carro permitisse.

"A velhinha subiu com dificuldade no ônibus, apesar da ajuda do menino que pode ser seu neto, talvez bisneto. A caixa na mão do moleque denuncia: são pedintes e vão explicar para as pessoas de classe média que se dirigem para suas casas confortáveis na Zona Sul que é melhor pedir do que roubar"

- Me fala Chicão, sério dessa vez. E não foi sempre assim? Você desde criança tem essas...visões.
- Mas não eram tão recorrentes. Eu também acredito que isso possa ser uma das coisas que me fazem um escritor. Não chegaria a chamar de dom, mas apenas uma forma diferente de ver o mundo. Acontece que agora eu só tenho esse ponto de vista. Pra mim, uma banca de jornais não é apenas uma banca de jornais.

" Só Deus sabe o quanto Batista lutou para conseguir comprar sua banca. Anos e anos acordando às três da manhã para organizar os cadernos dos jornais, aprendendo a rotina da profissão..."

- Acorda, Chico! - gritou André, balançando o amigo - Sem devaneios, porra!
- É esse o problema, André!!! Eu tenho vivido em devaneio! Eu não raciocino mais, eu crio metáforas!

André ficou quieto um momento, pensando no que Chico tinha acabado de dizer. Se estava nesse pé, a coisa toda realmente não era tão simples como ele imaginava. Será que o amigo precisava de algum tipo de tratamento? Seria isso uma doença?

- Eu não quero mais isso, André. Não quero mais olhar a vida e pensar em escrevê-la. Ia dar um livro muito extenso, e eu não gosto de escrever muito, você sabe. - disse Chicão, com um sorriso triste.
- É bom te ver sorrindo.
- Vá se desacostumando com isso, André. Não que eu vá parar de sorrir. Eu não quero mais ser o relator das pequenas misérias cotidianas. Não quero mais ser o escriba que tira algo bonito desse cotidiano decrépito...
- Chicão, você está me assustando. E usando adjetivos incomuns para as palavras...Não gosto disso.
- Calma, André - falou Chico, rindo - No mínimo você está pensando que vou me matar.
- Claro! Você tem essa mania de ser dramático. Sempre te chamaram de viadinho por causa disso.
- Não era por isso, caralho...mas isso não importa. Eu não vou me matar, seu idiota. Eu tenho cara de quem se mata?
- Tem razão, não tem mesmo. É muito gay pra isso - respondeu André, rindo.
- Tá bom, humorista. Aí, chegamos.

André para o carro em frente ao prédio do Chico, na Glória. Chico desce e da a volta no carro, para falar com o amigo. Estende a mão para o aperto.
- Se cuide André.
- Ih....Para com isso, Chico. Você está me deixando preocupado. Não vá fazer nenhuma loucura, porra.
- Claro que não André, não seja estúpido.
- Tá. Bom...deixe de ser viadinho. Depois a gente se vê.
- Tá. Até.

"O carro parte com uma das poucas coisas que o escritor arrependido vai sentir falta, que são suas amizades. O escritor pega as chaves de casa no bolso, abre a portaria do modesto prédio, sem porteiro. Pega o elevador, sobe até o sétimo, sai do elevador e entra no 701. "Reclusão!" pensa o escritor, antes de fechar a porta atrás de si e tentar imaginar essa nova fase como um recomeço."

26.4.04

A Amarelinha



- Amarelinha?!? Você está falando sério?

O pior é que Mateus falava. E ao reparar nisso, Fernanda não conseguia esboçar uma palavra. Só conseguia manter, sem o menor esforço, sua cara incrédula.

- Isso mesmo. Vamos decidir nosso futuro brincando de amarelinha. Nossos desentendimentos são tão surreais que só uma solução só pode surgir de uma decisão louca. Ou nós chegamos no céu e ficamos juntos ou seguimos caminhos diferentes.

Fernanda continuou muda, olhando estupefata para Mateus. Esses acessos de infantilidade que beiravam a insanidade eram um dos motivos das suas constantes rusgas. Segurou o acesso de raiva que estava prestes a ter e resolveu ver até onde ia mais essa demonstração de irracionalidade do marido. Ou ela fazia isso ou partiria para agressão.

- E como vamos fazer isso? - falou Fernanda, com a voz mais calma que pode.
- Fácil. Nós dois vamos jogar. Se algum dos dois conseguir chegar até o céu, esqueceremos nossos desentendimentos e viveremos felizes para sempre. Com nós dois jogando, teremos o dobro de chances de continuarmos juntos.
- E se nós dois perdermos?
- Aí é o destino: nos separamos.

Era o caso de se pensar se, depois de uma idéia esdrúxula dessas, valia a pena continuar com Mateus. Colocar três anos de casamento em jogo dessa forma só podia significar duas coisas: um descaso total com o relacionamento ou uma doença cerebral crônica. Fernanda observava o marido fazendo a amarelinha no chão de barro irregular e não sabia se chorava ou se gargalhava.

- Veja, Nanda. Estou fazendo um céu beeeeem grande pra gente.

Decidiu ver até onde ia a loucura de Mateus. Vendo-o agachado no chão, riscando o chão com um caco de telha, chegou a achar a história bonitinha. Esse pensamento não durou mais que dez segundos. Terminado o desenho, Mateus se levanta e oferece uma pedra para Fernanda.

- Quer começar?

Fernanda toma a pedra das mãos do marido e, sem olhar para Mateus, se posiciona na frente do desenho da amarelinha. Ela quase não acredita que está tomando parte dessa história. Se pergunta o que diriam sua mãe e suas amigas se visse a cena. Ela fecha o olho e joga a pedra. Ela quica no chão e quase sai do primeiro quadrado.

- Cuidado! Jogando assim parece que você quer que terminemos mesmo. - falou Mateus.

Fernanda olhou para trás, com ódio indisfarçado. Sem responder ao comentário do esposo, ela pula o quadrado onde está sua pedra e segue numa perna só, como mandam as regras do jogo. Completa a volta e apanha a pedra do chão, sem falhas.

Mateus bate palmas, que são retribuídas pela Fernanda com um sorriso sarcástico. Ela só ficava imaginando até onde iria isso tudo. Será que Mateus achava que, finda a brincadeira sem falhas, os problemas deles desapareceriam?

Jogou a pedra no segundo quadrado e fez o percurso sem problemas. Achou que teria mais dificuldades. Há quanto tempo não brincava de amarelinha? 15, 20 anos? Quando tirou a pedra do terceiro quadrado, viu que ainda estava afiada. Jogou a pedra no primeiro dos quadrados duplos e foi a sua busca. Estava chegando nela quando Mateus grita.

- Epa! Errou!

Ela não entendeu. Permaneceu parada, olhando para o marido, esperando explicações. Onde errara? E quem era ele para achar uma falha dela em um jogo que ela jogou muito mais vezes? Ela era uma menina, diabos! Nenhum menino pode corrigir uma menina num jogo de amarelinha!

- Quando você pegou a pedra, era pra continuar num pé só! Você abaixou o pé na casa do lado! Você errou Nanda!

Ele tinha razão. Na hora, Fernanda não sabia se estava mais irritada com o erro numa brincadeira que ela estava cansada de saber ou se pela felicidade de Mateus denunciando seu erro, mesmo que isso tenha reduzido à metade a chance deles permanecerem juntos. E a metade que ficou era a mais fraca, com certeza.

Saiu de cima da amarelinha mais irritada do que entrou. Chegou a pensar que perder o marido não era nada, comparado a perder o amor próprio, por ter sido corrigida no seu jogo. Antes disso tudo, perdeu a paciência.

- Chega, Mateus. Vamos como adultos, uma vez na vida.
- Calma, Nanda. É a minha vez.

Mateus foi para frente do desenho no chão e jogou a pedra. Sem problemas. Ele fez o percurso sob o olhar de reprovação da mulher, visivelmente fula da vida, porém calada. No segundo e no terceiro quadrados, a mesma eficiência. Vendo o marido jogar, a raiva pela futilidade da disputa virou despeito, por vê-lo sair-se melhor que ela. Quando Mateus passou incólume pelo pedaço onde ela humilhantemente tinha falhado, já não havia mais o ciúme pelo seu desempenho: ela estava torcendo por ele.

E Mateus seguia, firme em direção ao céu da amarelinha, que na sua mente distorcida, significava uma nova fase no relacionamento dele com Fernanda. Quando jogou a pedra na casa mais distante do desenho, o próprio céu, ela ricocheteou e quase saiu do desenho. Mateus ouviu claramente o suspiro de alívio de Fernanda, mas não deixou que ela notasse. Seguiu em frente. Foi numa perna só para o primeiro, segundo e terceiro quadrados. Fincou decidido os dois pés nas casas juntas e seguiu, corretamente, num pé só, para a próxima casa. Mais duas casas juntas, feitas perfeitamente. Faltava agora um quadrado antes do céu.

Mateus parou um momento, respirou fundo e olhou para Fernanda, que não conseguia mais disfarçar a torcida. Pulou, num pé só a casa que faltava. Perdeu o equilíbrio por um momento. Com o susto, Fernanda soltou um grito.

- Cuidado!

Ele ainda bambeou mais um pouco, mas conseguiu se fixar. Deu um salto para cair com os dois pés no céu e, pelo menos para ele, numa nova fase do casamento. Ele deu um pulo de felicidade e correu ao encontro da Fernanda.

- Viu? Eu consegui!
- Retardado... - falou Fernanda, abraçando-o e dando-lhe um beijo.
- Agora vai dar tudo certo entre nós! E nem vem que eu vi você torcendo por mim...
- Pois é. Acho que sua doença mental é contagiosa.- Fernanda respondeu, rindo.
- Não reclama. Essa sua torcida não era pelo meu sucesso no jogo, e sim pelo nosso sucesso.
- Isso mesmo...
- Então, por uns momentos, você acreditou na minha solução, mesmo ela sendo meio louca.
- Meio é pouco...
- Então. Essa foi a prova! Ainda acreditamos em nós juntos. Não interessa que o meio tenha sido um jogo de amarelinha.
- Hmmm... Pode ser. Quem sabe se nessa sua mente alucinada não existe uma lógica, ainda que distorcida?
- É o que dizem: o coração tem razões...
- Olha: me chame prum jogo da velha pra resolver nossas diferenças, mas não me venha com um chavão desses. - disse Fernanda, cortando a frase dele.
- Tá bom, tá bom...Eu faço o que você quiser agora. Acha que eu sou louco de te contrariar?

14.3.04

O vestido azul

para Ginger


Encontrei Martin, depois de semanas sem que desse as caras, apenas quando fui ao seu apartamento. Ele demorou vários minutos para abrir a porta, mesmo eu tendo tocado a campainha inúmeras vezes, Só insisti porque conseguia ouvir a música que vinha, alta, do seu aparelho de som.

Ao abrir a porta, vi que Martin tinha uma aparência péssima. Entrei em seu pequeno quarto e sala sem que trocássemos uma palavra. Notei que não só ele, como sua casa estavam em completo abandono. Devia fazer vários dias que ele não se preocupava com a higiene pessoal ou com uma arrumação. Vestia umas roupas sujas, tinha a barba por fazer e eu ainda não sabia se o cheiro ruim que estava sentindo vinha dele ou do verdadeiro caos de embalagens de comida, pratos e talheres abandonados pelos móveis e peças de roupas pelo chão. Tive que praticamente gritar pra me fazer ouvir.

– O que houve, Martin?
– Sobre o que especificamente você está falando? –respondeu ele, também em altos brados.

Como não pretendia ficar rouco, desliguei o som. Martin foi até o aparelho e o ligou novamente, colocando a mesma música que tocava antes, já pela terceira vez desde que toquei a campainha. Parecia obcecado por Blue Dress, do Depeche Mode. Ele teve pelo menos o bom senso de diminuir o volume.

– Não tire a música, por favor.
– Afinal de contas o que houve, Martin? Você desaparece por semanas e ainda te encontro desse jeito, largado e vivendo nesse chiqueiro.
– Largado? Chiqueiro? Não sei porque diz isso. Eu estou bem. Ou quase.
– Acho que “quase” não define sua situação. Olhe pra você: está imundo. Olhe à sua volta: sua casa está um pardieiro e eu espero sinceramente que esse fedor não esteja vindo de você. Há quanto tempo você não se lava? Por que seu apartamento está nesse estado? E por que essas calcinhas estão espalhadas pelo chão? O que diabos aconteceu por aqui, Martin?

Martin se abaixa e pega uma das lingeries do chão, delicadamente. Tem os olhos tristes agora, parece até mesmo que vai chorar. Uma cena que eu nunca imaginaria ver: Martin era uma rocha.

– O que te incomoda são as calcinhas – disse Martin, levando ela até o nariz e aspirando profundamente – ou é o cheiro delas?
– Não. O que me incomoda mesmo é ver você desse jeito.

– “Desse jeito”? Não se preocupe, eu melhoro. Você também estaria assim, ou até pior, se tivesse conhecido a Clarice.
– E foi essa tal de Clarice que te deixou assim? O que ela pode ter feito pra deixar o cara mais firme que eu
conheço assim, sem o mínimo cuidado com sua casa ou consigo mesmo, vivendo no meio do lixo, convivendo feliz com comida estragada e o cheiro de calcinhas sujas?

A reação de Martin me surpreendeu. Ele avançou na minha direção, agarrando meu colarinho, disposto a me esmurrar a cara. Vendo o espanto nos meus olhos e que estava prestes a bater no seu melhor amigo, Martin me soltou e desabou sobre uma cadeira, com a cabeça entre as mãos, chorando.

– Você não entende. Ela não era virgem. Não era...

Era realmente inacreditável vê-lo assim, ainda mais por causa de uma mulher. Martin sempre se dera bem no terreno das conquistas amorosas. Seu sucesso com as garotas era notório, como sua aversão total aos compromissos. Ele conseguia todas as mulheres que lhe interessavam, mas assim que elas se mostravam apaixonadas ou muito grudentas, Martin as dispensava sem o menor remorso. Não chegava a ser má pessoa por conta disso. Simplesmente tinha tal repulsa a se sentir preso que não conseguia ter um relacionamento duradouro. Fez muitas das suas conquistas sofrerem, claro, mas nunca chegou a brigar com nenhuma delas. O normal era, depois de um tempo natural de raiva por terem sido dispensadas sem um motivo justo, era ficarem amigas do Martin. E no fundo, a maioria delas preferia assim. Essas esperavam que um dia ele se ajeitasse e não perdiam as esperanças de conseguir agarrá-lo.

Sentei ao seu lado e perguntei novamente o que tinha ocorrido. Ele me levantou seus olhos desesperados e começou a me contar sua história.

Martin conheceu Clarice num café, depois de ter ido sozinho ao cinema. Ela estava numa mesa, lendo um livro, também só. Ele a achou interessante: devia ter pouco mais de 18 anos, tinha cabelos de um loiro resplandecente e uma pele que só quem freqüenta a praia com certa assiduidade pode ter. Usava um vestido azul que realçava seu belo colo, um casaco de lã por cima e – uma das fraquezas do Martin – óculos, com uma armação fina e delicada. Ele não pensou duas vezes antes de abordá-la.

– Este lugar está vago? – perguntou fazendo sua típica cara de “Don Juan” da Zona Sul.
– Parece estar ocupado? – respondeu com outra pergunta, sem mover o rosto, apenas levantando os olhos por cima das lentes.
– Gosto das garotas mordazes. Principalmente quando são assim para responder minhas perguntas estúpidas. Meu nome é Martin – disse, já se sentando.
– Já eu não gosto muito dos abusados, que vão se sentando sem receber permissão – antes que Martin pensasse que tinha tomado um fora, a moça abriu o mais belo sorriso que ele já tinha visto – Prazer, Clarice.

Se deram bem logo de cara. Tinham muitos interesses em comum, do livro que ela estava lendo – um dos preferidos dele – passando pelo filme que tinham acabado de ver, gostos musicais, opiniões políticas e outros assuntos vários. Ficaram encantados um pelo outro, e conversaram, sem notar o tempo, até acabarem as duas sessões seguintes no cinema. O café iria fechar, e como Martin não queria precipitar as coisas – não com alguém como Clarice – resolveu só trocar telefones. Combinaram tomar outro café qualquer dia desses.

Pretendia seguir sua cartilha. Não iria ligar no dia seguinte, para não demonstrar um interesse demasiado. Mas as horas foram passando, garotas que Matin não tinha a menor intenção de ver novamente ligavam, chamando-o para programas que tinha intenção menor ainda de fazer e a vontade de telefonar para Clarice aumentava. Quando estava a ponto de quebrar com um dos dogmas do seu manual de conquistas, o telefone toca. Era Clarice.

– Sabe o que é? Eu tenho uma festa para ir hoje e queria pedir emprestado o seu Violator do Depeche Mode. Me pediram pra levar uns cds.
– Melhor: eu copio o cd e dou pra você. Faço agora mesmo. Onde nos encontramos?
– Não quero te dar mais trabalho. Posso passar na sua casa? Fica melhor pra você?

Martin ficou surpreso e, obviamente, excitado com a inusitada proposta. Aceitou na hora, claro. Combinaram o horário e foi copiar o cd, arrumar a casa e a si próprio. Tomou um banho demorado, colocou perfume, coisa que não estava acostumado, e vestiu uma roupa bonita, mas casual o bastante para não parecer que estava se convidando para a festa que Clarice iria. Na hora marcada, o interfone toca. Martin a espera na porta, cumprimenta com dois beijos no rosto e a convida para entrar.

– A não ser que você esteja com pressa. Que horas é a festa?
– Não se preocupe. Faltam umas duas horas pro pessoal chegar lá. Marquei cedo com você por isso.
– Por isso o que?

Clarice respondeu abraçando Martin e dando um beijo em sua boca. Surpreendeu-se novamente, mas por pouco tempo. Acostumado com sua sorte com as mulheres, achou normal a atitude dela. Calrice estava muito sexy, apesar do visual quase inocente. Usava um vestido de alças com flores azuis, um pouco acima dos joelhos e um tênis. Martin agradeceu a Deus pelo calor que fazia, o que devia ser o motivo dela usar uma roupa tão leve.

Ofereceu uma bebida para Clarice, que entre as várias opções, escolheu uma cerveja. Martin adorava mulheres que não tinham a tão em moda preocupação com a “barriguinha” e bebiam com prazer uma cerva gelada. Não que Clarice precisasse se preocupar com isso. Com o corpo que tinha, Martin não conseguia imaginá-la barriguda nem com muito esforço.

Beberam, ouviram música e ficaram juntos por um tempo. Naturalmente as coisas foram esquentando, apesar de Martin não querer apressar as coisas com Clarice. Não com ela. Estavam deitados no sofá quando ele começou a desabotoar a calça. Vendo isso, ela se levantou e disse:

– Calma, Martin. Não precisamos nos afobar. Ainda temos uma festa para ir.
– Claro, amor...desculpe – respondeu, aliviado. Era a reação que Martin esperava dela, a prova de que Clarice era diferente das outras e merecia um tratamento especial.

Se recomporam e foram para festa. Não se largaram durante toda noite, Martin vendo que seu interesse por Clarice era o maior que já tivera por uma mulher. Quando Clarice já estava meio alta, pegou Martin pela mão e o levou até a área de serviço, o único lugar da casa em que a festa não tomava conta. A mistura do pileque com o tesão que sentia pela Clarice fizeram Martin propor que fossem para um lugar “mais calmo”. Ela aceitou na hora.

Iam para casa dela. Antes de descer do carro, em frente ao prédio em que ela morava, começaram os beijos e amassos, sem se preocuparem com quem passasse pela rua. Martin abaixou os bancos e quando estava quase chegando às vias de fato, Clarice pediu que ele parasse.

– Tá, tá...Vamos subir então? – ele quase suplicava.
– Tá louco, Martin? Eu moro com meus pais – disse Clarice sorrindo
– Então vamos lá pra casa. Em cinco minutos estamos lá.
– O problema não é esse Martin.
– E qual é o problema, amor? – foram conversando sem que Martin parasse de beijá-la.
– Eu sou virgem. Esse é o problema.
– Ahn? O que?
– Isso mesmo. Sou virgem. Isso te incomoda? – Clarice parecia ofendida com a expressão incrédula de Martin.
– Não, claro que não...Mas...Não vejo porque isso seria impedimento para...
– Você não é burro, Martin. Claro que você sabe que isso é um impedimento.

Martin se recriminou pela grosseria cometida. A bebedeira embotou seu raciocínio, e para quem não queria apressar as coisas, querer transar no primeiro encontro com uma garota que acabara de se revelar virgem era o cúmulo da afobação. Temeu ter posto tudo a perder.

– Você tem razão – ele falou, mais decepcionado com sua gafe que com a foda não dada.

Ela saiu do carro sem se despedir. Martin já começava a esmurrar o volante quando Clarice colocou a cabeça pela janela e lhe deu um longo beijo.

– Amanhã eu te ligo, tá?

Antes de subir, Clarice fez algo que o deixou atônito. Ela levantou o vestido no meio da rua, tirou a calcinha, sem pressa, como se estivesse no lugar mais discreto do mundo e a entregou para um estupefato Martin.

– Sonha comigo – ela disse antes de subir correndo as escadas da portaria do prédio.

Martin seguiu para casa sóbrio. Não haveria porre no mundo que resistisse ao que Clarice fez. E ela era virgem! Mesmo para ele, que tivera uma boa quantidade de mulheres na cama, a virgindade era quase uma abstração. E encontrar uma como Clarice, linda, gostosa, inteligente, com 20 anos e morando no Rio ainda intacta era praticamente uma impossibilidade. Ainda mais com a experiência – ele só podia definir assim – para deixar um sujeito mais velho como ele completamente louco de tesão. Tirar a calcinha daquele jeito, como uma menina fazendo uma travessura, tinha sido o golpe final. Martin estava apaixonado.

Começaram um romance tórrido, apesar de nunca realizarem a apoteose mais óbvia. Apesar de virgem, Clarice nunca poderia ser taxada como inexperiente. Gostava de fazer sua peraltices com Martin nos lugares mais extravagantes. Cinemas, boates, festas, nenhum lugar era perigoso ou indiscreto demais para ela. Martin enlouquecia, mas raramente pedia para que consumassem a transa. Quando ela dizia que seria no tempo certo, ele respeitava e aguardava.

Ficava imaginando com seria a primeira vez com ela. Sentia seu fogo e sabia que Clarice era a mulher da vida dele. Depois de deixá-la em casa, era inevitável que se masturbasse com alguma das calcinhas que ela lhe dava, que já estavam em um número considerável. Já era um hábito Clarice lhe presentear com suas lingeries, sempre que tinha quase chegado a foder. Não achava que fosse provocação dela. Via mais como uma compensação dela, por não ceder todo seu corpo para ele. Estava acostumado, e as vezes até as pedia.

Um dia Clarice chegou de surpresa à casa de Martin, tarde da noite. Tinha dito que viajaria com os pais e só voltaria no dia seguinte. Queria fazer uma surpresa para o namorado e o levou direto para o quarto. Ele estava acostumado com esses arroubos de paixão de Clarice, mas nunca acontecera na sua casa. Era um pedido dele: era um território perigoso demais para que ele se controlasse. Clarice o jogou na cama e se despiu sem dizer uma palavra, diante de um aparvalhado Martin. A primeira visão por inteiro do corpo perfeito de Clarice foi o bastante para que Martin tivesse a maior ereção da sua vida. Ele estava até com medo de gozar sem que ela sequer o tocasse. Clarice se deitou ao lado dele e tirou ela mesmo a roupa de Martin, que preferiu deixá-la comandar o espetáculo. Ela subiu nele, ambos nus, e se beijaram.

Acontece que depois de terem transado, Martin percebeu algo estranho. Ficou mudo após a rápida trepada, deitado ao lado de Clarice, pensativo. Ela notou que algo tinha acontecido e perguntou o que era.

– Acho que você sabe o que é, Clarice. Se você me falasse seria melhor. Não me faça perguntar.
– Do que você está falando? Não achou bom?
– Eu não sou criança, Clarice. Não me trate como uma.

Clarice se calou por uns instantes, preocupada. Depois olhou para Martin.

– Eu prefiro que você me diga, Martin. O que houve?
– Se você quer assim – respondeu, sentando na cama – Clarice, você não era virgem.

Ela não respondeu. Pegou o lençol e cobriu o corpo, sem dizer palavra. Nem precisaria. A acusação estava
confirmada pelo olhar perdido de Clarice.

– Por que, Clarice? – perguntou, sem olhar para namorada.
– Martin, olha...
– Clarice, a verdade, por favor. Eu não quero mais ouvir mentiras. Você não precisava ter inventado isso.
– Eu queria que fosse diferente com você. Eu estava virgem, queria ser, pra você. O que eu tinha vivido antes não tinha importância. Você foi meu primeiro homem, o primeiro a realmente valer a pena.
– E você acha que um cabaço ia fazer alguma diferença, porra! – disse Martin, exaltado – Se você me pedisse um tempo antes de transar comigo, eu entenderia e te respeitaria da mesma forma.
– Então é isso? Por causa do tempo que demoramos para transar?
– Você não entende, não é? Não é pela merda do tempo, nem mesmo pela mentira em si. É pela falta de necessidade da mentira.
– Meu amor, me per...
– Nem termine a frase, Clarice. Vai embora.

Ao terminar de contar sua história, eu também não entendi o porque da explosão do meu amigo. Martin parecia realmente apaixonado por Clarice, como eu nunca tinha visto antes. Se não era pelo tempo, nem pela mentira, o que o teria levado a ser tão irredutível em não perdoá-la?

– A ilusão que ela criou da virgindade – me explicou, chorando – seria minha redenção também. Eu não estava com ela apenas por sexo, como era com as outras. Eu esperaria por ela, pelo resto da vida. Era o que eu achava.
– Então foi pela mentira.
– Mas não pela mentira dela, e sim por me fazer ver a mentira em que eu vivia. Quando percebi a farsa, me
enraiveceu não a falta de honestidade, mas o fato dela não ser virgem. No fundo estava me enganando, queria mesmo era sua virgindade, como um troféu especial. Sem isso, ela não era diferente das outras. Pensei que a amava e estava amando um hímen.
– Tá. Mas então não vejo razão pro seu estado lastimável. Autocrítica por ser um idiota fútil e
sexista – coisa que só você não sabia – não justifica você se afundar em calcinhas e autopiedade. Se você entendeu que não era da Clarice que gostava, por que chora por ela?
– Não é por ela, mas pela dúvida. Se ela fosse realmente virgem, pode ser que eu tivesse mesmo mudado. Se no dia em que a vi naquele vestido azul maravilhoso, ela tivesse me dito que não era virgem, eu provavelmente a teria tratado como tratei todas as outras, e não teria tido ilusões sobre uma possível
mudança no meu comportamento. Estou assim por ela ter me dado uma ilusão que eu não precisava, de ter me tornado uma pessoa melhor. Estou chorando pelo o que eu poderia ter sido.
– Martin...se é por isso, vá tomar um banho e chame uma diarista. Você acabou de falar a maior quantidade de asneiras sem sentido que eu já ouvi na vida.
– Não te recrimino por não entender. Nem eu mesmo estou plenamente convicto se o que falei é certo. Mas
você tem razão. As vezes, o amor é mesmo um monte de asneiras sem sentido.

19.2.04

Inútil



Começou com um simples frasco de catchup. Ele tentou abri-lo de todas as formas e nada. Forçou com as mãos, usou toalhas, molhou a embalagem com água quente, tudo inútil.

- Desiste, Gilberto...depois eu abro isso! - falou a esposa, vendo seu desespero
- Não, Marisa. Agora é questão de honra! - respondeu, nervoso.

Poderia até ser questão de vida ou morte: ele não conseguiu abrir o catchup. Desistiu, irritado, largando o condimento em cima da mesa bruscamente. Marisa largou o que estava fazendo na pia e também resolveu tentar abrir a embalagem.

- É melhor nem tentar, Ma....Acho que não é pra girar a tampa, é pra furar.
- Deixa eu dar uma tentadinha. Não custa nada.
- Se você acha que vai conseguir, boa sorte. - havia desdém na voz dele.

Marisa pegou o catchup e com uma simples girada em sua tampa, abriu o frasco. A cara aparvalhada do Gilberto já era diversão bastante. Por isso o comentário feito por ela incomodou tanto o marido.

- Se você não serve mais nem pra abrir as coisas, pra que você presta, Gil?
- Depois de eu ter afrouxado bem a tampa foi fácil, né? - respondeu irritado, já dando as costas para cozinha. Marisa viu gargalhando sua retirada cheia de dignidade ferida.




- Marisa, quando você vier da cozinha, me traz uma cerveja!
- Tá...mas espera um pouco que estou ocupada.

Marisa notou pelo tom meio irritado da voz do marido que a história da tampa ainda o apoquentava. Por isso nem fez caso do abuso dele, de pedir uma cerveja enquanto ela se matava de trabalhar. Se ele ainda estivesse fazendo algo útil, mas nem isso. Estava prostrado diante da tv assistindo o VT de algum jogo de futebol.

- Ô, Ma! Traz logo!!! Eu não posso sair agora! O Zico tá quase fazendo aquele golaço em cima da Escócia!

Era o fim! Ela ali, cara fervendo diante das panelas, e Gilberto e o filho vendo um jogo de mais de 20 anos de idade. "Quero mostrar pro Maurício o que era um time de futebol!", era a justificativa para ver os tapes da Copa de 82 com o filho, e de tabela ter uma tarde de mordomias sem mexer uma palha. Se não fosse pelo catchup não aberto, Gilberto ouviria umas verdades.

Levou a cerveja pro marido e um suco pro filho. Ia chegando na cozinha quando ouviu o marido berrando.

- MERDA!!!

Marisa voltou pra sala. Não entendia como uma pessoa podia reclamar com tanta veemência de um lance de futebol que aconteceu há duas décadas. E o pior é que ele sabia de cor que a jogada não daria certo. Ele já tinha decorado todo os jogos daquela mal fadada Copa do Mundo.

- Gil, você sabe que eu não gosto que você fique gritando palavrões na frente do menino. Ainda mais por causa de um jogo que você já está cansado de saber o final.
- Não foi por isso, porra! - Gilberto estava descontrolado, para assombro da Marisa - Eu não consigo abrir a merda da lata de cerveja!!!
- O que? - perguntou Marisa, perplexa. Não porque isso também não era motivo pra apresentar tal vocabulário para o filho de 8 anos, mas porque ver seu marido forçando a argola da lata inutilmente era uma cena pra lá de inusitada.

Seria patético, se não fosse preocupante. Pra piorar de vez a situação, vendo o desespero do pai com a lata, Maurício pega a lata da sua mão e a abre, sem o menor esforço. A expressão do Gilberto era um misto de incredulidade e ódio absolutos.

- Toma pai! - disse o garoto, estendendo a cerveja para Gilberto.

A primeira atitude do Gilberto foi olhar para a cara da Marisa. Ela estava compenetrada, e intimamente, rezando para não deixar escapar a gargalhada já entalada na garganta.

- Não adianta fazer essa cara, viu? Sei o que você está pensando e o que você está se controlando pra não rir - vociferou Gilberto.
- Eu?? Imagina! - respondeu Marisa, deixando seus dentes a mostra pela fração de segundo necessária pra o marido perceber que ela ria.
- Vá para o inferno, Marisa! - berrou Gilberto, antes de sair bufando da sala.

Sem a presença do marido, Marisa gargalhou diante do espanto do filho, que não entendeu nada do ocorrido.

- Ah, meu filho, nem fique assustado. Seu pai está um pouco nervoso, só isso.

Abraçou Maurício, ainda sorrindo, mas no fundo um pouco preocupada. O que teria acontecido com Gilberto? E ele devia estar muito estressado mesmo, pra abandonar o VT da seleção canarinho. Pensava nisso enquanto na tv, Zico passava por três zagueiros escoceses e marcava um gol para o Brasil.




Gilberto entrou como um vendaval pelo seu quarto. Bateu a porta e deitou na cama, tentando compreender o que se passava. Nunca tinha ouvido falar de nada parecido. Estava doente, só não sabia como explicar isso para qualquer médico. O que diria ele? Que estava com "síndrome da ineficácia em abrir embalagens"? Não tinha o menor sentido.

Resolveu dormir um pouco. Pensou na piada feminista de que homem só serve para abrir lata de conserva. Percebeu que, no fundo, ele estava mais irritado com a brincadeira da mulher que preocupado com a "doença". Era algo inexplicável, é certo, mas ser sacaneado pela Marisa era pior. "Talvez seja tudo um trote dela", deduziu. Marisa deu um jeito de travar a tampa do catchup e a lata de cerveja só para se vingar dos anos de brincadeiras dele. E para chamá-lo de inútil, claro.

Antes de dormir, iria trocar a bermuda jeans meio apertada e ficaria de cueca. Mas no que Gilberto tentou abrir o botão da roupa, nada. Lembrou daquele regime que se prometia fazer há tempos. Se estivesse menos barrigudo, já teria tirado a bermuda. Prendeu a respiração, encolheu a pança e nada. O botão não saia da casa. Tentou o zíper. Teve o mesmo resultado.

Começou a ficar desesperado. A Marisa não faria uma brincadeira dessas. Estava quase rasgando a bermuda quando começou a gritar pela mulher. Com a porta fechada e ela na cozinha, ela não ouviria. Tentou sair do quarto, mas não conseguiu abrir a porta que ele mesmo havia batido há alguns minutos. A mistura de raiva e frustração fizeram-no esmurrar a porta e gritar o nome da esposa com toda força. Marisa chegou e abriu a porta com a facilidade que ele deveria ter tido para fazer o mesmo. Ela encontrou Gilberto no chão, pronto para dar mais um murro na porta.

- Gilberto?!?! O que houve??? - Marisa estava mais alarmada pela expressão do marido que pela barulheira provocada por ele.
- Ma...temos que ir a um médico...




Depois de contar a Marisa o que tinha ocorrido no quarto e tirado a dúvida se ela era ou não a responsável pela brincadeira que já havia há muito passado dos limites, Gilberto foi com a mulher ao consultório de um médico, amigo do casal. Ele relutara muito em ir no "doutor" Caio. Além de ter que depender da Marisa para abrir todas as portas - o que era uma punhalada no seu machismo enrustido - ir ao consultório de um dos seus amigos mais piadistas era o fim para ele. Sabia que sofreria na mão do Caio, mesmo que o caso dele fosse gravíssimo.

"Desde moleque que falo que você é um imprestável!", foi o primeiro comentário feito pelo amigo médico ao saber de toda a história. Gilberto aturou a piada com estoicismo. Fosse nos tempos de criança, já estariam trocando socos. Caio não parecia muito convencido sobre a estranha enfermidade, até que fez alguns testes com Gilberto. Deu tudo na mesma: gavetas, portas, roupas, bolsas, nem a carteira dele, daqueles modelos clássicos, sem fechos, ele conseguiu abrir.

- O que você tem é realmente muito estranho, Gil - começou Caio - Nunca vi nada parecido. Nem nos compêndios de medicina. Isso só pode ser coisa da sua cabeça. Não sei o que te recomendar.Talvez um psicólogo te ajude.
- Tá falando sério, Caio? Eu, deitado num divâ, porque não consigo abrir as coisas? Vão me mandar prum psiquiatra na mesma hora.
- Também acho. Mas você tem a opção de deixar tudo como está. E tem um lado bom: se você não consegue nem abrir sua carteira, a Marisa não vai mais gastar tanto....

O casal não conseguiu achar graça da piada. Não tendo agradado, Caio voltou a um tom sério que raramente costumava usar. Estava mesmo preocupado, mas não com a saúde física do amigo, mas com a sanidade do Gilberto. Anotou o endereço de um psicólogo conhecido dele e entregou a Marisa, e por via das dúvidas receitou uns calmantes para o Gilberto. Caio sabia como o amigo de infância poderia ficar nervoso.




E Gilberto foi ao psicólogo, sempre acompanhado da Marisa para abrir as portas para ele. As sessões não foram de muita ajuda. De todos os remédios que indicaram, apenas os calmantes surtiram algum efeito, e mesmo assim, durante pouco tempo. A raiva do Gilberto se transformou em frustração e depois em impotência. Estava entregue. Largou o trabalho depois de uma semana de brincadeiras dos amigos. Não agüentava mais as piadinhas sobre sua "inutilidade" ou as gozações pela esposa levá-lo e buscá-lo, como uma criança. Não tinha mais paciência para aturar isso.

Do psicólogo foi ao psiquiatra e depois a cientistas. Chegou a adquirir uma certa - e indesejada - celebridade. Não gostava nem um pouco de servir como objeto de estudo. Passou a não sair de casa, depois do quarto. Somente Marisa e o filho o viam. Não queria visitas, recusava remédios e qualquer outro tipo de tratamento. A única terapia que Gilberto aceitava tinha sido criada por ele mesmo. Sempre que Marisa acordava e se levantava da cama para cuidar das coisas da casa, Gil pedia que fechasse a porta. Ele então levantava, metia a mão na maçaneta e tentava, em vão, abrir a porta. As vezes Marisa ficava atrás da porta e ouvia o choro abafado do marido.




As coisas não melhoraram nada para Gilberto com o passar do tempo. As vezes, sentia o braço meio preso, sem conseguir movimentá-lo. No começo, ele e Marisa pensaram que era estresse ou algo do gênero. Foi quando ele não conseguiu abrir os olhos ao acordar que Gilberto entendeu tudo.

- Marisa, disse ele, balançando a mulher, ainda dormindo, não consigo abrir os olhos.
- Ahn...o que foi? - disse Marisa nervosa...
- Não estou conseguindo abrir os olhos! É isso...ABRIR...Não posso mais abrir os olhos! Por isso meus braços não se mexiam também! Não posso mais abrir os olhos!

Marisa pegou nas pálpebras do marido e seus olhos ficaram despertos. Ela pode ver a expressão de horror do marido diante das sinistras possibilidades do acontecido. Gilberto coçou os olhos e novamente foi incapaz de mover as pálpebras. Marisa correu ao telefone e ligou para Caio, contando as da doença do Gilberto. Combinaram uma visita, para ver o que o amigo médico poderia fazer.

O exame não revelou nada, como todos infelizmente esperavam. Era a mesma estranha enfermidade, mostrando outro sintoma. Cada vez que Gilberto piscava, Caio precisava abrir-lhe os olhos. Toda vez que encostava os braços no corpo, eles precisavam ser deslocados pelo amigo. Caio disse que ele precisava voltar aos laboratórios, precisava de outro tipo de ajuda que ele não podia prestar. Perguntou ao Gilberto se ele concordava com uma nova bateria de testes. Gilberto pensou um pouco e não respondeu nada.

- Fale Gilberto! Você precisa muito fazer novos exames, mas essa é uma decisão sua.
(...)
- Gilberto?
(...)

Caio não entendia o silêncio do amigo, até que Marisa, olhando para seus olhos, viu seu desespero estampado. Ele não estava conseguindo abrir a boca. Caio entendeu e puxou sua mandíbula para baixo. Gilberto apenas falou sim aos exames e ao fechar a boca, ela permaneceu fechada. O silêncio era quase total. Apenas se ouviam os soluços de Gilberto, saindo de sua boca encerrada.




Gilberto foi examinado por uma grande quantidade de médicos e cientistas, sem que se chegasse a uma conclusão sobre sua doença. Eminentes doutores, vindos do exterior, tentaram drogas, ministraram choques, sugeriram operações. Sem efeito. Gilberto, que precisava de ajuda para andar, falar, ver e comer, estava cansado. Depois de meses nessa situação, desistiu.

Deitado em casa, com o corpo completamente saudável mas imóvel, com os braços abertos para poder movimentá-los, prendedores nas pálpebras, uma caneta amarrada entre os dedos para poder escrever o que queria, cutuca Marisa, que cochilava ao seu lado na cama.

Disse para ela esperar enquanto ele escrevia uma nota para ela. Depois de alguns minutos, entregou a folha do bloco a esposa.

"Marisa,

É triste, mas não agüento mais ver nesse estado. Não agüento mais os exames, os médicos, as entrevistas para revistas científicas, as drogas, a dependência de tudo e de todos. Não posso mais ser um fardo para você. Eu desisto. Não quero mais isso. Quero que você me interne num hospital e que lá cuidem de mim. Não quero ser um fardo, um entrave na sua vida. Não quero mais que você seja minhas pálpebras, minha boca, meus braços
."

Marisa leu a mensagem, com lágrimas nos olhos e tentou convencê-lo.

- Não faça isso, Gil. Nós vamos encontrar um cura. E pode ser que isso passe, assim como surgiu do nada.

Gilberto levou sua mão à boca da mulher, pedindo que ela se calasse. Voltou a escrever no bloco enquanto Marisa chorava. Tirou a folha do bloco e entregou a esposa. Depois tirou os prendedores dos olhos e fechou-os, assim como os braços. Parecia um autômato, se desligando.

Marisa leu a nota.

"Não Marisa. É inútil tentar. Como todos os exames foram inúteis, como todos os remédios e tratamentos. O que resta de mim é um corpo, que sem ajuda, é como o de um defunto. Não quero isso pra mim, nem pra você. Acabemos logo com isso. Sou sem serventia agora. A brincadeira acabou virando realidade. Não sirvo para nada."

Por mais doloroso que fosse, Marisa respeitou a decisão do marido. Ele ficou em um hospital, em estado vegetativo, apesar de consciente durante boa parte do tempo. Vivo e raciocinando, mas numa espécie de coma. Inútil.

4.2.04

A máscara



Foi algo que eu não entendi direito. Só sei que quando ela apareceu, parecia usar uma máscara. Não era ela. Definitivamente.

- O que houve? Que cara é essa? , ela perguntou.

Não sabia o que responder. As vezes tenho esses surtos paranóicos, mas nunca foram tão reais. Era ela, mas não era, ao mesmo tempo. Comentei que ela parecia diferente.

- Deve ser meu novo corte de cabelo.

Não era. E ela sabia disso. Ela sabia que a menos que ela passasse a máquina no couro cabeludo, eu não repararia. Tentava desconversar, isso sim. Ela, mais que eu, sabia que algo havia mudado. Falei que ela sabia mais sobre sua mudança que eu. Apesar de ser um dos mais inexplicáveis chavões literários, tenho que dizer: assim que terminei o comentário, uma sombra passou pelo seu rosto.

- Doideira sua.

Seria? Duvidava disso. O problema é que eu não conseguia traduzir em palavras o havia de diferente nela. O olhar talvez? Não, era algo mais sutil, subcutâneo quase. Andávamos pela rua e conversávamos. As mesmas palavras e trejeitos. Era ela. E não era. Definitivamente.

Parece que ela notou meu estranhamento. Tocou no assunto da mudança, exigindo que eu me explicasse. Disse que era melhor resolver esse problema, era preferível a me ver agindo estranho com ela. Não entendi. Então ela falou que eu estava, como ela disse mesmo? A perscrutando com os olhos. Era ela. Só ela falaria perscrutando.

Disse que não saberia explicar o que era, que a melhor definição para minha sensação em relação a ela é de que ela parecia estar usando uma máscara. Ela ficou me olhando, com aquela cara não-ela. Ela deu um sorriso e me pegou pela nuca, me dando um beijo. Não esperava por isso. Não era ela. Não a minha amiga de séculos. Ela nunca me daria um beijo.

Depois do beijo - que foi muito bom, aliás - ela se afastou e pegou no meu rosto. Deu um puxão forte e veio na mão dela um objeto estranho, algo com uma textura de resina emborrachada e cor de pele. Ela esticou a resina com as duas mãos e me mostrou. Era o meu rosto.

- Quem estava mascarado era você. E essa máscara caiu agora, quando você finalmente me viu de verdade. Pela primeira vez.

Choque. Ela era ela, como sempre fora. Eu que havia mudado, a via como sempre deveria ter visto, com olhos livres. Antes era eu, mas não era; agora, nós dois somos.

3.2.04

Pontualidade



Estava ansiosa e por isso não parava de olhar o relógio. Da última vez que conferira a hora, faltavam exatamente 101 minutos para o encontro.

Já tinha tomado banho e acabava de se arrumar. Enquanto penteava os longos cabelos escuros, já faltavam apenas 87 minutos. Achou melhor se aprontar mais rapidamente.

Pediu ao porteiro para abrir o portão da garagem, recebendo seu cumprimento, "bom dia, dona Regina" e não teve tempo, ou melhor, cabeça, para responder. Faltavam 70 minutos. Não chegou a ver o portão se fechando. Saindo em disparada, o carro já tinha virado a esquina.

A cada sinal fechado, uma olhada no relógio que usava. Depois, desistiu: o timer do rádio estava a seu favor: 61 no display contra 58 no pulso. Começou a confiar mais no rádio. A situação se complicou quando viu o relógio enorme na rua. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, na rua faltavam apenas 59 minutos. Estava ficando nervosa. Queria entender a estranha lógica desses três microfusos horários. "Se ele não fosse tão rígido que esse lance de pontualidade", pensava.

"Quem tem um relógio sempre sabe a hora; quem tem dois nunca tem certeza", foi o ditado que Regina lembrou nessa hora. Estava decidida a ignorar a hora. Mas não conseguia. Qualquer ponteiro, qualquer número digital era um tormento. Pisava no acelerador, fugindo dos sinais amarelos. 44 minutos.

Faltavam 22 minutos quando chegou à rua marcada. Agora, encontrar uma vaga era um empecilho que ela já imaginava que teria, mas que não tinha como evitar. Não tinha muito tempo a perder. Assim que viu um espaço entre dois carros, tentou encaixar o seu no meio. Nunca tinha sido especialista em baliza, mas a necessidade às vezes é a mãe da habilidade. Quando conseguiu estacionar o automóvel na mais improvável das vagas e saiu do carro, viu que o flanelinha aplaudia. Ela ainda tinha 17 minutos.

- Muito bem, dona! Pensei que não ia conseguir...

Antes do guardador terminar a frase, Regina já estava longe. Corria, mas não a ponto de suar e borrar a maquiagem, na qual havia consumido preciosos 8 minutos. Pela primeira vez se sentiu aliviada. Com os 12 minutos que sobravam, tinha tempo de sobra.

Chegou ao restaurante e pediu a mesa reservada. As cadeiras vazias já eram seu troféu: ele não havia chegado. Estava 5 minutos adiantada, a primeira vez que o precedia em meses de relacionamento.

Quando ele estava 2 minutos atrasado, Regina começou a se deliciar. Se vingaria de todas as broncas e gozações que sofreu por conta dos seus deslizes com as horas marcadas entre os dois. 10 minutos depois, ela - que não ligava tanto assim para atrasos - já estava rindo sozinha da situação. Era o dia da forra.

20 minutos e nada. Tentou o celular dele, fora de área. Não queria dar o braço a torcer e mostrar que estava irritada com o atraso dele. Estava era preocupada. Onde ele poderia estar? Ele prezava tanto a pontualidade que Regina nunca imaginou vê-lo tão fora da hora acertada. Teria acontecido algo?

Meia hora. Ela já batia o pé no chão, sem perceber. Já tinha desistido do celular. Já tinha bebido dois aperitivos. Algum tempo depois, toca o telefone dela. Era ele. Estava atendendo um cliente, fora da cidade. Não conseguiu falar com ela antes. Que ela fosse comendo, porque ele, infelizmente, não poderia ir. Ela estava tão irritada com - ela já confessava para si mesma - o atraso dele que nem conseguiu falar nada. Ficou até feliz dele não ter aparecido. Teriam um arranca-rabo ali mesmo no restaurante.

Quando ele desligou, Regina viu a hora no visor do telefone. Ele demorou 47 minutos para avisar que não iria.

20.1.04

Antes só...



Acordou e encontrou a casa vazia. Pensou consigo mesmo "bom dia, silêncio" e foi ao banheiro. Enquanto lavava o rosto, notou como os vestígios dela já estavam desaparecendo.Desenvolveu uma teoria: nenhum lugar da casa se transforma tanto após a saída de uma mulher como o banheiro. Os vários frascos de cosméticos que ele não fazia ideia da serventia, as toalhas sempre arrumadas, a indefectível calcinha pendurada em algum lugar visível, a tampa do vaso sempre abaixada. Nada era como antes.

Acabou sua higiene matinal pela metade. Não fez a barba. Não havia ninguém para reclamar que ela arranhava. Fez questão de pensar que não era pela falta de reclamação que ele não estava escanhoado. Até que achava que aquele visual "universitário-engajado-na-luta-armada-em-68" caía bem. Era bom variar.

O café da manhã era em pé, na pia da cozinha. Nada parecido com os "breakfast" de outrora. Suquinhos, bolos, pães e frios eram frescuras. Era tempo de uma reciclada. Nada de exageros gastronômicos pela manhã. Sejamos frugais e práticos! pensava. Comeu fria mesmo a pizza de ontem. Na falta de uma faca limpa - 'preciso chamar uma diarista" - cortou sua fatia com uma tesoura. Pra acompanhar, uma das maiores maravilhas da moderna tecnologia alimentícia: o café instantâneo. Ficou meio fraco, mas um dia, pensou, eu acerto.

Sua indumentária também seria impossível nos tempos de casado. Pés calçados com meias de pares diferentes, chinelos mal colocados e uma cueca. Só de imaginar essa cena (impossível de acontecer) há cerca de duas semanas, já imaginava a gritaria. "Vá já colocar um short! Não quero que seus pelos fiquem jogados onde nós comemos!". Ah! Liberdade é poder coçar o saco em qualquer lugar da nossa casa!

Acabado o café, foi se trocar, tinha que trabalhar. Agora tinha tempo pra escolher a roupa com calma, já que tomava banho sem ter que esperar por séculos que o banheiro desocupasse. Seria ótimo, claro, se ele tivesse uma grande variedade de peças limpas, o que não era o caso. Ainda não dominava aquele trambolho na área. A última vez que tentou usar a máquina de lavar, conseguiu manchar uma camisa que ele adorava - que por acaso ela tinha dado. Pra isso, e pra escolher homens, tinha bom gosto.

Reparou que o armário também ressentia a falta de uma presença feminina. Não tinha muita intimidade com cabides. Não que isso fizesse muita diferença. Não sabendo passar uma camisa sequer, daria no mesmo deixar suas poucas roupas emboladas ou amarrotadas nos cabides.

Mas isso tudo era futilidade. O que interessa é a pessoa, e não sua vestimenta. Vestiu-se e se olhou no espelho. A barba por fazer, as roupas amarfanhadas e o aspecto abandonado do quarto por trás do seu reflexo foi o bastante para fazê-lo desabar na cama. Precisava de ajuda. Precisava dela.

Estava ainda sentado, segurando a cabeça com as mãos quando toca a campainha. Ele se levanta em um salto, pensando, exultante, "é ela". Corre até a porta e a abre, antes que seja necessário um segundo toque. Ela está em frente a ele, com duas malas no chão e uma cara de quem espera desculpas. Então ele fala.

- Amor! Ainda bem que você apareceu! Preciso muito de você. Você pode me indicar uma boa empregada?

19.1.04

Tradução



Veio de fora e não dominava nossa língua. As vezes, soltava uma frase surreal.

- Seria legal se você fosse paçoca!

Dificilmente eu seria um derivado do amendoim legal. Perguntei o que ela queria dizer com aquilo.

- Ahn...Não sei certo! Você podia ser menos certinho...anh... "nastyer". Como diz?
- Sapeca, talvez?
- Isso!

Expliquei que mesmo em português essa expressão era de um arcaísmo gritante. Ela ficou sem graça - e linda, toda enrubescida - e perguntou qual seria a melhor palavra para se aplicar nesse caso, no seu inglês também carregado de sotaque e meio capenga pela falta de uso (parece incrível, mas ser norueguesa tem suas desvantagens).

- Hmmm...Você pode me pedir pra ser mais sodomita - provoquei.
- Não é isso! Você está me escaneando!
- Sacaneando...
- Isso! - ela assentiu, feliz por se fazer entender.

A idéia de ser um scanner para ela não me desagradou de todo. Fazer a leitura de cada poro daquela pele alva seria no mínimo um ótimo passatempo. Falei isso com ela em inglês, pra ela não se confundir.

- Em português! Fala em português...por favor...

Nem o mais frio escandinavo bebedor de vodca resistiria a esse pedido. Não com a carinha que ela fez. E o sotaque...Ah, aquele sotaque!

A noite foi pequena pra tudo o que fizemos. Durante a transa, ela pouco falou em português. E eu ainda estou na dúvida se os sons que ela produziu faziam parte de alguma linguagem. Linguagem com gramática, léxico e regras normativas, entendam. O que ela disse era ininteligível, mas fazia todo sentido do mundo naquele momento.

As poucas palavras que eu entendi foram algumas palavras em norueguês que ela disse, em meio ao êxtase. E todas deixavam a expressão "sapeca" em seu devido - e comportado - lugar.

14.1.04

Almas Gêmeas



Fiz acidentalmente um furo no meu cigarro, e para que todas suas toxinas invadissem meu pulmão a contento, sem que eu perdesse sequer um sopro da sua fumaça, estava fumando como quem segura uma flauta: polegar e indicador no filtro, dedo médio no buraco que extraviava a fumaça. Foi essa mera casualidade, esse ínfimo infortúnio que chamou a atenção dela.

Esperávamos nossos respectivos ônibus, em um ponto cheio de gente com cara de enfado, por conta de horas seguidas de um trabalho entediante. Notei que ela reparou no meu modo pouco ortodoxo de tragar o cigarro. Olhava insistentemente, o que chegou a me incomodar. Talvez por perceber meu incômodo, ela veio falar comigo.

- Desculpe a intromissão, mas notei que você segura o cigarro de forma meio estranha.
- Ah, é isso? Bem, quando eu peguei...
- Não fale. Você pegou o cigarro, apesar de estar pensando em parar de fumar. Para compensar, resolveu fazer um buraco nele, pra engolir menos fumaça e assim, sentir que está parando aos poucos com o péssimo hábito. Depois, vendo que essa atitude é ridícula, se arrependeu e decidiu tapar o buraco com o dedo. Acertei?
- Nunca vi uma dedução tão errada em toda minha vida. Como detetive, você morreria de fome. - respondi, rindo. Você acha mesmo fumar um péssimo hábito?
- Desculpe. Acho que li muito Conan Doyle quando era pequena. Não acho não. Eu até ia te pedir um cigarro. Acho que tem até um certo charme subversivo ser fumante em tempos tão antitabagistas. E eu não confio em pessoas que não tenham nenhum vício - respondeu, sorrindo.
- Gostei da sua forma de pensar, menina. Davi, prazer - falei, passando um dos meus Marlboros.
- Rita, igualmente.

Ficamos conversando sobre assuntos aleatórios e sem importância. Era inteligente e - isso é importante, e todos deveriam saber a diferença entre um e outro - esperta. O papo ia muito bem, até que ela se concentrou por uns instantes no tráfego.

- Putz, é uma pena. Mas meu ônibus chegou. Tenho que ir.

Forçando a vista - eu estava sem meus óculos - pude ver para onde ia ônibus que ela pegava. Era o mesmo que eu esperava.

- Pena, mesmo. E pra você: vou pegar o mesmo. Você não vai se livrar tão fácil de mim.
- Hmmm... O acaso não existe - ela disse rindo.
- Kardec? Prefiro algo mais científico. "Deus não joga dados com o Universo", Einstein.
- Tenho minhas dúvidas se essa sua citação se aplica ao caso - falou Rita, enquanto subia no ônibus.
- Talvez não. Mas citar Einstein costuma impressionar as pessoas.
- Você não precisa disso.
- Não?
- Não comigo.

Estava tudo perfeito demais. Além de inteligente e esperta, Rita era muito bonita. Isso não podia estar acontecendo, não comigo. Não sou o tipo de cara que tem esse tipo de sorte. Alguma coisa deveria estar errada. Ou ela tinha uma doença altamente contagiosa ou era um travesti, não sei.

- No que você está pensando?
- Ahn? Ah, nada....
- Já sei. Você está pensando que essa nossa situação não pode estar acontecendo, que uma garota bonita e inteligente como eu não poderia estar aqui te dando trela, que eu devo ter algo de errado, alguma doença ou...
- Você não é um travesti, né?
- Ah - ela gargalhava - não, não sou. Mas isso eu não posso te provar num coletivo. Isso quer dizer que eu adivinhei seus pensamentos?
- Não - desconversei - não acertou. Como eu disse, sua vocação para detetive é nula.
- Sei. Não teria dinheiro nem pra comprar cigarros. Mas isso eu pego com você.

Dei outro cigarro pra ela, espantado. Se o acaso não existe, como Rita mesmo havia falado há pouco, seria ela a mulher da minha vida? Sempre fui cético demais pra acreditar em "amores à primeira vista" e que tais. Mas era incrível nossa afinidade. Continuamos conversando durante todo trajeto e - outro acaso? - o lugar onde desceríamos não chegava. Só faltava mesmo sermos vizinhos.

- Você vai descer onde, Davi? - ela pergunta de repente.
- Perto da praça General Osório. E você?
- Nossa! Eu também vou! O mundo é mesmo pequeno....
- Sério? Pois é. O mundo é pequeno, e o Rio...
- ...É menor ainda! Era justamente isso que eu ia dizer.

Atordoados por essa sucessão de coincidências, descemos no mesmo ponto. Trocamos telefone, claro. E obviamente nos encontramos uma, duas, várias vezes depois. Começamos um namoro, à primeira vista, perfeito. Éramos almas gêmeas, se é que essas esoterices sentimentalóides existem. Não precisávamos nem olhar os jornais para procurar programas. Instintivamente, queríamos sempre fazer as mesmas coisas. Sempre. Ela adorava meus amigos e eu os dela. Até tínhamos alguns em comum. Gostávamos dos mesmos filmes, dos mesmos livros, dos mesmos discos. Não havia nada que pudéssemos mostrar um para o outro.

E quando nós percebemos isso, foi o fim. "Almas gêmeas", se existem mesmo, são fadadas ao fracasso. Não há o mistério, não há a descoberta, não se cresce com o convívio, exatamente porque elas são iguais em tudo. Nunca chegamos a brigar. Somos amigos até hoje, não havia como fugir disso. Eu a amo e o sentimento é recíproco. Mas nunca poderemos ter um relacionamento.

O fim veio rápido e indolor. Nem precisamos nos falar. Ela olhou nos meus olhos e ambos vimos a mesma coisa.

22.12.03

Conto de Natal



- Já tá na época, né?
- Já, já...Pode pegar o bicho.

Era tempo de pegar o velho Papai Noel inflável e colocar na frente da loja. Pelo estado do grande boneco, não se poderia chamá-lo de decoração de Natal: ele estava imundo. Não era uma coisa que gostassem de fazer. Pegar o inflável no porão, passar uma água nele - com uma mangueira, sem muito esmero - enchê-lo na boca - a bomba estava quebrada desde o final do ano de 92 - e pendurá-lo na frente da velha loja.

Era mais porque a cidade ficava toda emperiquitada. O tal do "espírito natalino" não impregnava os dois como acontecia com todos. Não queriam parecer insensíveis perante sua pouca clientela. Mas o aquele Papai Noel desproporcional à fachada da sua loja era tão pouco sincero quanto os "boas festas!" que desejavam aos seus clientes.

Eram sócios no armarinho. Eram sócios desde nascença, para deixar a situação mais clara. Eram gêmeos. Passavam dos sessenta e só tinham um ao outro. E o seu "comércio", como gostavam de falar. Nunca tiveram muitos amigos, por falta de vontade e de oportunidade. Nem entre si tinham esse afeto todo. Eram irmãos, estavam atados por laços mais fortes que uma mera amizade. Chamavam-se Amâncio e Emanuel.

Nesse ano, era a vez do Emanuel pegar e "limpar" o inflável. Caberia a Amâncio pendurá-lo junto ao letreiro da loja. O enchimento ficava por conta de ambos, decidindo quando ele estava meio cheio quem tivera o trabalho da limpeza. Fazia 20 anos que era assim, cada um tinha a sua parte e nenhum pedia ajuda ao outro. Evitavam brigas desse jeito.

Emanuel encontrou o Papai Noel dobrado, amarrado com uma corda de sisal, acumulando poeira no fundo do estoque. Pegou-o de onde estava, entre resmungos. Cortou a corda com o canivete que sempre trazia no bolso e estendeu o inflável no chão, no fundo da loja. Estava imundo. Parece que no ano anterior, a poluição fizera mais estragos ao boneco. A tradição mandava que Emanuel pegasse a mangueira, borrifasse alguns jatos d?água para tirar o excesso de pó e pronto. Mas esse ano, não se sabe porque, Emanuel achou melhor jogar um sabão e passar ao menos uma vassoura no Papai Noel. Fez isso, apesar de ter mais trabalho do que gostaria.

Amâncio foi ao procurar o irmão. Não entendia o porque da demora do Emanuel, seu vizinho - e concorrente - Petruquio já estava pendurando as guirlandas na frente do seu armarinho. Amâncio encontrou Emanuel soprando o inflável. Os braços e a barba do Bom Velhinho já estavam inflados, como que ganhando vida. Amâncio reparou na dificuldade que o irmão tinha para recuperar o fôlego, a cada bufada.

- Por que a demora, Emanuel? Aquele Petruquio já está com a frente da birosca dele toda enfeitada.
- Resolvi limpar melhor o bicho esse ano. Eles estava muito sujo. Passei sabão e vassoura nele.
- Sério? - respondeu surpreso Amâncio - Cuidando bem do bicho? Posso saber por que?
- Ah...- disse Emanuel, pensando na resposta - Ele estava sujo demais. E eu sou higiênico. Se eu vou ter que meter a boca nele, melhor que ele esteja limpo.
- Nós vamos botar a boca nele, não?
- Isso.

Amâncio ficou vendo o irmão encher o boneco, a muito custo. Quando Emanuel deu mais uma tossida após outra curta soprada, resolveu ajudar.

- Me dá esse boneco aqui, Emanuel. Deixa que eu sopro pra você.
- Ainda não cheguei na metade.
- Eu sei. Mas eu vou te ajudar.
- Me ajudar? - disse um surpreso Emanuel - Posso saber por que?
- Bom...- pensou Amâncio para responder - se continuar nesse ritmo, eu só coloco esse bicho lá na frente no ano que vem.
- Você que sabe.
- Isso.

Amâncio começou a encher o Papai Noel muito mais rápido. Tinha mais fôlego que o irmão. "Se esse idiota não fumasse, teria mais saúde", sempre falava sobre Emanuel. Acabou de encher e ia levando o inflável para frente do armarinho. Era um boneco grande, e sempre dava trabalho para tirá-lo dos fundos.

- Deixa eu te ajudar - falou Emanuel, vendo a dificuldade das pernas do boneco para passar pela porta.
- Tá bom. Empurra aí que vai.

A escada já tinha sido colocada junto à entrada da porta. Os dois irmãos, sem falarem sobre o assunto, levaram o Papai Noel até a marquise da loja, onde seria amarrado. Amâncio passava os fios pelo corpo do boneco sob o olhar atento do Emanuel. Cada agachada que o primeiro dava para fazer os nós em volta do boneco eram acompanhados por gemidos de dor.

- O que você tem, Amâncio?
- Minhas costas...Elas doem quando me abaixo.
- Se você fosse menos preguiçoso e fizesse pelo menos uma caminhada diária, não teria essas dores de velho.
- Emanuel, nós somos velhos.
- Eu sei.

Emanuel se abaixou e começou a dar os laços na outra perna do Papai Noel. Amâncio ficou olhando para ele, atônito.

- O que você está fazendo?
- O que parece que eu estou fazendo? Estou te ajudando, oras.
- Por que?
- Porque...Se você demorar mais um pouco com isso, o Petruquio vai decorar a rua toda antes de você acabar.

Emanuel terminou a amarração do Papai Noel e ambos desceram a escada, um ajudando o outro. Estacaram diante da loja e olharam para o boneco, em silêncio.

- Ficou bonito.
- Pois é. Mais bonito que nos outros anos.
- Está mais limpo, também.
- Isso.

Milhares de frases poderiam ser ditas por ambos, mas eles preferiram ficar calados, olhando a loja, sua loja, há anos o único elo de ligação entre duas pessoas que dividiram até o útero materno. Depois de mais alguns minutos olhando o grande inflável, se olharam notaram que não precisavam falar nada. Tudo já havia sido dito.

Olharam para loja do Petruquio, deram uma risada e entraram no armarinho, abraçados.

19.12.03

A música da cidade



Por entre as esquinas da grande cidade, por entre os vãos dos seus prédios e os penhascos de arranha-céus, sua música silenciosa ecoa. As buzinas do seu caótico trânsito, o pregão dos seus ambulantes, as sirenes, alarmes e britadeiras não fazem parte da sua melodia. Seu som é mais sutil.

Ela vem no vento que rasga suas veias-avenidas. Ela está no rosto das pessoas, cansadas da máquina de triturar humanidades. Nos vértices dos prédios, nas sarjetas imundas, nos letreiros das casas noturnas. Ela está no murmúrio imperceptível por baixo da balbúrdia das feiras, na discreta ressonância das portas das lojas sendo abertas no Centro. Ela está onde não se nota, cifrada onde não se espera.

Eu sento na calçada e vejo os carros passarem. Eu ando em coletivos, eu caminho em alamedas, toco suas máquinas registradoras, faço parte do seu recheio de coletividades. Eu forço meus ouvidos para escutá-la, entre incêndios e brigas, entre lagos e botequins. Sou franco com a cidade e como resposta tenho sua indiferença.

E não ouço sua música.

16.12.03

A carne da palavra



A carne da palavra viceja, forte, no terreno da angústia. É quando ela adquire seu melhor aspecto, quando seu preparo traz melhor sabor e suculência. Seu gosto, nessas condições, é acre-doce e permanece por mais tempo em nossas línguas.

Solos tristes alimentam a carne da palavra. São a seara perfeita para suas várias formas florescerem. Suas fibras se tonificam na confusão e na desordem. Esses são seus melhores adubos, seus melhores nutrientes, componentes vitais para a seiva da palavra.

Não esperem que na felicidade e no bem estar a carne da palavra se desenvolva a contento; diante de tais distrações, onde a suas postas ficam acondicionadas, sem respirar, dentro de bolsas de conforto, elas apodrecem. Não que não possam ser usadas em tal situação: a carne da palavra apenas fica mais rija, sem textura, sem sabor.

A carne da palavra se alimenta da fome do homem.

15.12.03

O aríete



Era mais um daqueles processos em que uma pessoa vai morrendo, lentamente, dentro da gente. Nem era coisa pra se deixar de gostar dela. Definitivamente não era o caso. Eu ainda gosto dela e muito. Mas que decepção.

Fazer o que? As vezes agimos de forma estranha. Ela saiu da minha vida pela porta da frente, com a sutileza de uma invasão policial. Só me faltava conhecer quem tinha dado o chute na maçaneta. Não buscaria reparação, nem satisfações de quem nada me devia. Eu só estava curioso.

No fim das contas, ele foi só um pé em uma porta, que por sinal, tinha uma fechadura muito da vagabunda. Não fosse ele, outro viria e arrebentaria com tudo. Como veio outro e arrebentou outra porta, dessa vez a deles dois. A porta deles era mais frágil do que tinha sido nossa.

Passou. Troca-se a porta ou decide-se morar ao relento. Não há mais o que arrombar. Mas eu ainda tinha curiosidade. Queria entender o porque. Na pior das hipóteses, seria divertido.

Não foi. Encontrei com ele por acaso. Balcão de bar. Eu com uma cerveja e um conhaque. Ele, com uma garrafa de água. Me pediu o isqueiro. Tossiu na primeira tragada e jogou o cigarro fora. Comentou comigo que estava tentando parar com os vícios, assim mesmo, no plural. Fazia bem. Ele parecia estar às portas de um enfarto.

Ele queria papo. Logo comigo, que detesto estranhos muito amigáveis. Contou um pouco da sua vida. Não precisaria nem começar para ver que seu melhor momento tinha sido há muito tempo. O que me deixou intrigado era que sua história não me era estranha. Perguntei seu nome. Era ele. O aríete.

Tive vontade de rir, mas só no começo. Ele era engraçado, mas não de uma maneira lisonjeira. Não se demorou muito ali. Pendurou sua água com o dono do boteco e saiu.

Até mais - foi o que disse.

Fiquei eu lá, meu cigarro, meu Domec e minha cerveja no fim. E meus pensamentos, claro. Era incrível ela ter visto algo em alguém como ele. Não era sua aparência (ele poderia estar em melhor estado à época) nem o que ele me contou (sabe-se lá se eram verdadeiras suas histórias). Eu só não conseguia entender como pode ter acontecido com ele, tão diferente de mim. Pior: tão diferente dela. Se o que eu sentia era pena, ainda não sei. Podia ser pena pelo que poderíamos ter sido, pena dela por se envolver por tal bufão, pena dele por...vá lá, talvez por despeito. E tirando o que pode ter sido pena, restou também o desapontamento. Com ela, por ter ficado deslumbrada pelo charme decadente dele e comigo por ter perdido a disputa. Com ele não. Ele apenas cumpre o papel que destinou para si de melhor forma que pode.

Paguei minha conta e saí, pensando nesse encontro casual e em tudo que havia acontecido antes. Não estava triste, nem alegre. Agora, o que se podia fazer? As pessoas agem de forma estranha.

9.12.03

Sangue e amor



Não considerava o amor que tinha um sentimento. Era mais que isso, era físico, sentia seu amor no próprio sangue, fluindo por todo seu corpo e inundando seu coração. Nem gostava muito dessa imagem: ele era meio dramático, mas não kitsch. Não era um coração "romântico" e sim o coração músculo. A cada batida do órgão, ele sentia que não só ele vivia, mas também seu próprio amor.

Só que - assim é a vida - o amor não depende apenas de uma pessoa. E parece que o alvo do amor dele não estava muito satisfeito com aquele vai-e-vem por veias e artérias. Deixou-o.

O que seria dele? Ficaria anêmico? Leucemia? Nada disso. A dor da desilusão é afiada. Ele preferiu deixar seu amor - que já não tinha serventia - fluir. Morreu venal-arterialmente.

26.11.03

Esquinas




Perdida entre os abismos das esquinas, cai assim, a menina. Ela queda e sua queda não é física. Não há mais o que esperar, logo para ela que tanto esperou.

O corte das ruas e prédios e asfalto e carros ela segue adiante. Cada aceno, cada dedo, cada beijo mandado é uma navalha. Não, ela não tem opção. Quisera tivesse.

A nudez mais vestida e as roupas quase não-vestes é o que tem que usar. Expor a mercadoria e atrair possíveis compradores. As ruas, à noite, são quase um açougue.

Beija homens e mulheres. Beija o pai, o filho, a esposa. Beija o patrão, o empregado, o rico, o pobre. Beija o asfalto, as vezes. Esse é o beijo menos áspero.

Ela procura não pensar na injustiça do mundo, onde poderia estar se tivesse outra vida. De que adianta? Ela só se preocupa em oferecer o melhor simulacro de sentimento possível. Ela odeia cada um dos seus clientes, com todas as suas forças; ela ama todos os seus clientes, como se eles fossem os únicos homens da Terra.

Ela é apenas uma criança.

20.11.03

Rock'n'Roll


Não tenho dormido muito por causa do trabalho estúpido que faço, trabalho estúpido esse que só consegui por ter estudado estupidamente por 5 (seriam 6?) anos numa faculdade cheia de gente tão estúpida quanto eu. Talvez não tão estúpidos: eu sabia o que era ruim e não quis mudar. Segui a trilha da estupidez por escolha própria.

O pior estúpido é aquele que vê e mesmo assim não quer ver.

Horas diante de um monitor, fone de ouvido gritando um rock antigo e a insatisfação gritando mais alto nos meus ouvidos que as guitarras. Relatórios, memorandos e o saco cheio. O velho discurso de sempre. Os velhos dias de sempre. Minha vida fede a bolor.

Um dia eu chuto tudo isso. "Kick out the Jams!!!"

Ha! Eis me aqui saído da minha jaula acolchoada, da minha auto-câmara de gás. Sem walkman, sem pilhas. O sol mata. Até que ela aparece. Ela é o próprio sol.

Óculos escuros e a pele alva. Ela não sua. Ela nunca suaria. Camiseta e jeans surrado. Ouve algo no seu walkman - ela tem pilhas - que a faz balançar a cabeça. Vejo seus lábios cantando a música, sem som. Lábios mudos que rasgaram meu dia ao meio. Se ela quisesse, rasgariam a mim mesmo ao meio.

Ando ao seu lado, ela me ignora. Não sou nada. Ela ouve seu som como eu ouviria, no talo. Consigo escutar a música: "Gigantic/Gigantic/A big big love!". Eu estou apaixonado.

Eu toco seu ombro e ela se vira. Sem falar nada, a pego pela nuca e a beijo, sob os olhares dos curiosos. É um beijo intenso e longo. Ela retribui o beijo. Ela também está apaixonada...

Tá bom. Nem em sonho. Ela continua andando e eu, nada, continuo seguindo. Ela acende um cigarro, para num ponto de ônibus. Eu paro. O simples ato de guardar um maço de Marlboro Lights - ela deve estar tentando parar com o vício, pra fumar filtro branco - é maravilhoso. Eu vou...eu TENHO que falar com ela.

Ela olha o fluxo do trânsito. Dá uma tragada forte no cigarro, ainda dançando com a cabeça. Joga o cigarro pela metade no chão e pisa, girando seu pé em cima da brasa. Eu nunca amei tanto uma mulher como a amo. Ela faz o sinal, o ônibus para e ela joga o resto de fumaça que ainda tinha nos pulmões subindo no coletivo. Ela teve que virar a cabeça para que a nuvem de nicotina e alcatrão não entrasse no ônibus. Essa imagem dela, um pé no degrau, outro na rua, mãos no corrimão, cabeça voltada para trás, foi a coisa mais bonita que eu já vi em toda minha vida.

Ela se foi. Eu não fiz nada.

Volto estupidamente para o trabalho, pros memorandos, pros relatórios, pro meu rock & roll alto dentro dos tímpanos, me sentindo mais estúpido que nunca.