23.7.03

Autoconhecimento


O desaparecimento do Dino começou ser notado apenas depois da sua terceira semana. Todos o seus amigos sabiam que ultimamente ele era dado a esses sumiços misteriosos, mas ele nunca tinha ficado tanto tempo sem dar notícias. Ele sempre fora o "louco da turma", então suas atitudes estranhas eram esperadas por todos. Essa foi a razão pela qual ninguém se preocupou tanto com sua ausência.

Depois que Dino começou a fazer análise - para "se conhecer melhor", dizia - seu comportamento excêntrico foi mudando gradativamente. Para melhor, todos achavam. Se antes eles era o doidão imprevisível, que preocupava a todos, agora eles estava mais sereno. Suas loucuras, teoricamente, não eram mais aquelas que poderiam feri-lo, como em outros tempos. Sua busca pelo autoconhecimento fez com que ele abandonasse seus hábitos destrutivos, tornando-o mais contemplativo, recolhido. Os céticos da turma apostavam que isso era uma fase, quem em breve ele voltaria a fazer as mesmas merdas que sempre fez. Mas, para surpresa e alívio de todos, Dino mantinha-se direito por um tempo maior do que todos julgavam. Ele trocou seus atos tresloucados por viagens que sempre fazia sozinho, justificando que precisava meditar. "Meu terapeuta recomendou", era a desculpa. Essa era a explicação para seus sumiços repentinos, que se tornaram uma constante. Nunca ia para lugares agitados ou para cidades cartões postais. Preferia os lugarejos remotos, se possível que não tivessem nem uma mísera pousada. Pegou gosto por acampamentos, onde era mais difícil de encontrar pessoas que atrapalhassem seu retiro.

Todos seus amigos o achavam realmente mais centrado, pacífico. Isso era bom para ele, claro. Mas para dois ou três de seus amigos mais íntimos, ainda havia "aquele" brilho nos olhos do Dino, um brilho que apesar de esmaecido, indicava que nem tudo estava bem, que o velho Dino insano ainda estava lá, apenas descansava, entediado, devido a falta de ação imposta pelo seu novo comportamento.

E foram esses amigos íntimos que acharam muito estranho tão longo sumiço. Suas viagens não duravam nunca mais de uma semana, e na volta ele adorava encontrar toda a turma para mostrar seus avanços em sua trilha de autoconhecimento. Nem no curto período em que pensou em seguir sua carreira por formação, a medicina, ele desapareceu por tanto tempo. Na segunda semana sem aparecer, Sandro, seu amigo mais íntimo, começou a procurá-lo, ainda sem alarde. Ligou para seus familiares, para seus outros amigos e ninguém sabia o destino do Dino. E foi então que, na terceira semana desaparecido, Sandro resolveu ir até à casa do amigo.

A campainha insistentemente tocada não surtiu efeito. Não sabendo bem a razão, Sandro sentiu que algo não estava certo, que de alguma forma, Dino tinha aprontado uma das suas. Sandro encostou o ouvido na porta e não ouviu nada, a principio. Manteve-se na posição mais alguns segundos e distinguiu, quase imperceptível, um ruído conhecido, mas que ele não conseguia identificar. Fechou o outro ouvido e prestou atenção por mais uns momentos. Para seu horror, depois de apenas um segundo ele reconheceu o barulho por trás da porta trancada e não teve dúvidas: arrombou-a com um chute.

As moscas que infestavam o apartamento zumbiam incessantemente, a origem do ruído. Andando até o quarto do Dino, Sandro sentiu o cheiro insuportável de carne em decomposição. Encontrou o corpo do amigo estirado na cama, parcialmente esquartejado, sem as duas pernas e sem um braço. A cena chocante foi demais para Sandro, que já nauseado pelo forte odor de morte, correu ao banheiro e vomitou.
Tentando se recompor, Sandro lavou o rosto, bebeu um pouco de água e juntando o que lhe restava de coragem, voltou ao quarto. Com as ideias mais claras e ligeiramente mais calmo, Sandro pode notar o que havia de estranho na já surpreendente cena. Apesar de estar retalhado, o corpo de Dino não tinha machas de sangue: os cortes em seu corpo estavam enfaixados, o que levava a crer que o objetivo de quem quer que tenha retalhado seu amigo não era matá-lo com isso. Ele estava vestido e não havia sinal de luta ou dos seus membros decepados. Se aproximando da cama, Sandro pode ver que Dino tinha uma caneta nas mãos e que um bloco repousava no chão, ao lado da cama. Perto do bloco, tigelas com restos de algum tipo de sopa rala e mal cheirosa que as moscas tentavam acabar. Sandro pegou o bloco e reconheceu a letra do amigo, apesar da escrita tênue e imprecisa.

Sandro guardou o bloco no bolso e resolveu de uma vez por todas chamar a polícia. Não sabia mais o que fazer diante do corpo do amigo. Esperou os policiais chegarem, respondeu todas as perguntas feitas por eles e foi para casa, sem mencionar o bloco que havia guardado. Sabia que naquelas anotações poderiam estar pistas sobre quem fez aquilo ao Dino. Sabia também que ele poderia se meter em problemas ao ocultar tão importante objeto, mas tinha que ler o que ele escreveu antes de qualquer pessoa.

Tomou um banho gelado assim que chegou em casa. Tentou, inutilmente, tirar das narinas o nauseabundo odor que o impregnava. Não teve o resultado esperado, mesmo depois da longa ducha. Foi para cama e tirou o bloco de dentro da calça. Pela debilidade da letra do Dino, sabia que ele estava muito mal quando resolveu escrever aquelas anotações. Não era um relato muito grande, um pouco mais de uma página, como ele mesmo já imaginara. Dino devia estar às portas da morte quando pegou da caneta. Começou a ler as últimas palavras do amigo.

"Eu sabia que devia levar até as últimas consequências minha busca pelo autoconhecimento. Fui a muitos lugares, usei muitas substâncias, naturais ou não, e embora isso tenha me ajudado, não me trazia as respostas que eu procurava. Falei com padres, pais-de-santo, gurus e isso ainda não me havia sido suficiente. Busquei da ciência ao misticismo e nada. Aprendi várias verdades, sobre o mundo e sobre os homens, mas elas não eram a minha verdade.

Tive um vislumbre do que poderia ser a resposta para o que eu procurava quando encontrei um documento escrito de uma tribo latina muito antiga. O documento trazia uma receita para uma poção que, diziam os relatos, tinha poderes mágicos. Quando consegui traduzir todos os ingredientes dessa beberagem, resolvi fazer o que seria minha última viagem. Consegui cada erva, cada extrato vegetal, cada elemento da receita no meio da floresta equatorial, entre o Peru e a Bolívia. A promessa para quem bebesse da poção era a de que a verdade sobra a sua natureza passaria a estar em cada fibra do seu corpo, tornando a pessoa finalmente plena.

Fiz a poção e ela teve um efeito alucinógeno sobre mim. O importante foi que finalmente eu descobri, no meio da minha viagem interior, o que fazer. Eu já sabia como absorver toda a "verdade sobre a minha natureza". Sabia exatamente como aproveitar esse conhecimento, que realmente inundava, fisicamente, todo meu corpo. E é fisicamente que devo saborear essa verdade.

Sabendo o que devia fazer, comecei a me preparar. Para evitar a dor que o processo causaria, bastou apenas preparar uma boa quantidade da poção. Além de alucinógena, a infusão era um excelente analgésico. Os procedimentos para estancar uma hemorragia eu já conhecia desde a faculdade. Aliás, os anos na escola de medicina também me foram úteis para obter as ferramentas necessárias para o que eu pretendia. Para evitar que sujasse completamente minha casa, faria a operação na banheira. Esse lugar seria ideal também por ter facilmente, água corrente...
"

Sandro não queria acreditar no que estava lendo. Seria loucura demais, até mesmo para um Dino sob efeito de drogas. Ele, que achava que nada poderia ser pior que a câmara mortuária onde encontrou o amigo, via, horrorizado, que aquilo era apenas o fim de um ritual macabro. A visão do Sandro começou a turvar, conforme ia avançando sua leitura. Ele não conseguia mais ler coerentemente, e ia pulando algumas partes, contra sua vontade.

"...depois de cortar minha perna na altura do joelho e de fazer a completa assepsia do corte, separei minuciosamente toda a carne dos ossos. Essa seria a melhor forma para..."

Sandro não queria mais ler o relato, mas não conseguia parar. O horror que se apossou dele era mais fraco que a mórbida curiosidade. Quase no fim da última página, quase não se conseguia mais entender a letra do Dino, tão fraco era seu traço. Ao chegar no fim do escrito, que não terminava com um ponto final, mas sim com a palavra "fraco" sem a última sílaba, Sandro jogou longe o bloco e deitou sua cabeça no travesseiro, não acreditando no que acabara de ler. Dormiu, mais pelo choque que pelo cansaço.

Ficara desacordado quase um dia inteiro. Acordou com batidas na sua porta. Era Nicola, um amigo comum dele e do Dino. Ele entrou esbaforido pela sala, visivelmente tenso.

- Sandro...Você já soube? O Dino...
- Sei...Eu encontrei o corpo - respondeu Sandro, apático.
- Foi você? A polícia não informou isso pra gente. Isso tudo é horrível! Fizeram a autópsia no Dino. Você não vai acreditar o que encontraram no seu estômago...
- Eu sei o que foi, Nicola...Eu sei....