22.12.03

Conto de Natal



- Já tá na época, né?
- Já, já...Pode pegar o bicho.

Era tempo de pegar o velho Papai Noel inflável e colocar na frente da loja. Pelo estado do grande boneco, não se poderia chamá-lo de decoração de Natal: ele estava imundo. Não era uma coisa que gostassem de fazer. Pegar o inflável no porão, passar uma água nele - com uma mangueira, sem muito esmero - enchê-lo na boca - a bomba estava quebrada desde o final do ano de 92 - e pendurá-lo na frente da velha loja.

Era mais porque a cidade ficava toda emperiquitada. O tal do "espírito natalino" não impregnava os dois como acontecia com todos. Não queriam parecer insensíveis perante sua pouca clientela. Mas o aquele Papai Noel desproporcional à fachada da sua loja era tão pouco sincero quanto os "boas festas!" que desejavam aos seus clientes.

Eram sócios no armarinho. Eram sócios desde nascença, para deixar a situação mais clara. Eram gêmeos. Passavam dos sessenta e só tinham um ao outro. E o seu "comércio", como gostavam de falar. Nunca tiveram muitos amigos, por falta de vontade e de oportunidade. Nem entre si tinham esse afeto todo. Eram irmãos, estavam atados por laços mais fortes que uma mera amizade. Chamavam-se Amâncio e Emanuel.

Nesse ano, era a vez do Emanuel pegar e "limpar" o inflável. Caberia a Amâncio pendurá-lo junto ao letreiro da loja. O enchimento ficava por conta de ambos, decidindo quando ele estava meio cheio quem tivera o trabalho da limpeza. Fazia 20 anos que era assim, cada um tinha a sua parte e nenhum pedia ajuda ao outro. Evitavam brigas desse jeito.

Emanuel encontrou o Papai Noel dobrado, amarrado com uma corda de sisal, acumulando poeira no fundo do estoque. Pegou-o de onde estava, entre resmungos. Cortou a corda com o canivete que sempre trazia no bolso e estendeu o inflável no chão, no fundo da loja. Estava imundo. Parece que no ano anterior, a poluição fizera mais estragos ao boneco. A tradição mandava que Emanuel pegasse a mangueira, borrifasse alguns jatos d?água para tirar o excesso de pó e pronto. Mas esse ano, não se sabe porque, Emanuel achou melhor jogar um sabão e passar ao menos uma vassoura no Papai Noel. Fez isso, apesar de ter mais trabalho do que gostaria.

Amâncio foi ao procurar o irmão. Não entendia o porque da demora do Emanuel, seu vizinho - e concorrente - Petruquio já estava pendurando as guirlandas na frente do seu armarinho. Amâncio encontrou Emanuel soprando o inflável. Os braços e a barba do Bom Velhinho já estavam inflados, como que ganhando vida. Amâncio reparou na dificuldade que o irmão tinha para recuperar o fôlego, a cada bufada.

- Por que a demora, Emanuel? Aquele Petruquio já está com a frente da birosca dele toda enfeitada.
- Resolvi limpar melhor o bicho esse ano. Eles estava muito sujo. Passei sabão e vassoura nele.
- Sério? - respondeu surpreso Amâncio - Cuidando bem do bicho? Posso saber por que?
- Ah...- disse Emanuel, pensando na resposta - Ele estava sujo demais. E eu sou higiênico. Se eu vou ter que meter a boca nele, melhor que ele esteja limpo.
- Nós vamos botar a boca nele, não?
- Isso.

Amâncio ficou vendo o irmão encher o boneco, a muito custo. Quando Emanuel deu mais uma tossida após outra curta soprada, resolveu ajudar.

- Me dá esse boneco aqui, Emanuel. Deixa que eu sopro pra você.
- Ainda não cheguei na metade.
- Eu sei. Mas eu vou te ajudar.
- Me ajudar? - disse um surpreso Emanuel - Posso saber por que?
- Bom...- pensou Amâncio para responder - se continuar nesse ritmo, eu só coloco esse bicho lá na frente no ano que vem.
- Você que sabe.
- Isso.

Amâncio começou a encher o Papai Noel muito mais rápido. Tinha mais fôlego que o irmão. "Se esse idiota não fumasse, teria mais saúde", sempre falava sobre Emanuel. Acabou de encher e ia levando o inflável para frente do armarinho. Era um boneco grande, e sempre dava trabalho para tirá-lo dos fundos.

- Deixa eu te ajudar - falou Emanuel, vendo a dificuldade das pernas do boneco para passar pela porta.
- Tá bom. Empurra aí que vai.

A escada já tinha sido colocada junto à entrada da porta. Os dois irmãos, sem falarem sobre o assunto, levaram o Papai Noel até a marquise da loja, onde seria amarrado. Amâncio passava os fios pelo corpo do boneco sob o olhar atento do Emanuel. Cada agachada que o primeiro dava para fazer os nós em volta do boneco eram acompanhados por gemidos de dor.

- O que você tem, Amâncio?
- Minhas costas...Elas doem quando me abaixo.
- Se você fosse menos preguiçoso e fizesse pelo menos uma caminhada diária, não teria essas dores de velho.
- Emanuel, nós somos velhos.
- Eu sei.

Emanuel se abaixou e começou a dar os laços na outra perna do Papai Noel. Amâncio ficou olhando para ele, atônito.

- O que você está fazendo?
- O que parece que eu estou fazendo? Estou te ajudando, oras.
- Por que?
- Porque...Se você demorar mais um pouco com isso, o Petruquio vai decorar a rua toda antes de você acabar.

Emanuel terminou a amarração do Papai Noel e ambos desceram a escada, um ajudando o outro. Estacaram diante da loja e olharam para o boneco, em silêncio.

- Ficou bonito.
- Pois é. Mais bonito que nos outros anos.
- Está mais limpo, também.
- Isso.

Milhares de frases poderiam ser ditas por ambos, mas eles preferiram ficar calados, olhando a loja, sua loja, há anos o único elo de ligação entre duas pessoas que dividiram até o útero materno. Depois de mais alguns minutos olhando o grande inflável, se olharam notaram que não precisavam falar nada. Tudo já havia sido dito.

Olharam para loja do Petruquio, deram uma risada e entraram no armarinho, abraçados.

19.12.03

A música da cidade



Por entre as esquinas da grande cidade, por entre os vãos dos seus prédios e os penhascos de arranha-céus, sua música silenciosa ecoa. As buzinas do seu caótico trânsito, o pregão dos seus ambulantes, as sirenes, alarmes e britadeiras não fazem parte da sua melodia. Seu som é mais sutil.

Ela vem no vento que rasga suas veias-avenidas. Ela está no rosto das pessoas, cansadas da máquina de triturar humanidades. Nos vértices dos prédios, nas sarjetas imundas, nos letreiros das casas noturnas. Ela está no murmúrio imperceptível por baixo da balbúrdia das feiras, na discreta ressonância das portas das lojas sendo abertas no Centro. Ela está onde não se nota, cifrada onde não se espera.

Eu sento na calçada e vejo os carros passarem. Eu ando em coletivos, eu caminho em alamedas, toco suas máquinas registradoras, faço parte do seu recheio de coletividades. Eu forço meus ouvidos para escutá-la, entre incêndios e brigas, entre lagos e botequins. Sou franco com a cidade e como resposta tenho sua indiferença.

E não ouço sua música.

16.12.03

A carne da palavra



A carne da palavra viceja, forte, no terreno da angústia. É quando ela adquire seu melhor aspecto, quando seu preparo traz melhor sabor e suculência. Seu gosto, nessas condições, é acre-doce e permanece por mais tempo em nossas línguas.

Solos tristes alimentam a carne da palavra. São a seara perfeita para suas várias formas florescerem. Suas fibras se tonificam na confusão e na desordem. Esses são seus melhores adubos, seus melhores nutrientes, componentes vitais para a seiva da palavra.

Não esperem que na felicidade e no bem estar a carne da palavra se desenvolva a contento; diante de tais distrações, onde a suas postas ficam acondicionadas, sem respirar, dentro de bolsas de conforto, elas apodrecem. Não que não possam ser usadas em tal situação: a carne da palavra apenas fica mais rija, sem textura, sem sabor.

A carne da palavra se alimenta da fome do homem.

15.12.03

O aríete



Era mais um daqueles processos em que uma pessoa vai morrendo, lentamente, dentro da gente. Nem era coisa pra se deixar de gostar dela. Definitivamente não era o caso. Eu ainda gosto dela e muito. Mas que decepção.

Fazer o que? As vezes agimos de forma estranha. Ela saiu da minha vida pela porta da frente, com a sutileza de uma invasão policial. Só me faltava conhecer quem tinha dado o chute na maçaneta. Não buscaria reparação, nem satisfações de quem nada me devia. Eu só estava curioso.

No fim das contas, ele foi só um pé em uma porta, que por sinal, tinha uma fechadura muito da vagabunda. Não fosse ele, outro viria e arrebentaria com tudo. Como veio outro e arrebentou outra porta, dessa vez a deles dois. A porta deles era mais frágil do que tinha sido nossa.

Passou. Troca-se a porta ou decide-se morar ao relento. Não há mais o que arrombar. Mas eu ainda tinha curiosidade. Queria entender o porque. Na pior das hipóteses, seria divertido.

Não foi. Encontrei com ele por acaso. Balcão de bar. Eu com uma cerveja e um conhaque. Ele, com uma garrafa de água. Me pediu o isqueiro. Tossiu na primeira tragada e jogou o cigarro fora. Comentou comigo que estava tentando parar com os vícios, assim mesmo, no plural. Fazia bem. Ele parecia estar às portas de um enfarto.

Ele queria papo. Logo comigo, que detesto estranhos muito amigáveis. Contou um pouco da sua vida. Não precisaria nem começar para ver que seu melhor momento tinha sido há muito tempo. O que me deixou intrigado era que sua história não me era estranha. Perguntei seu nome. Era ele. O aríete.

Tive vontade de rir, mas só no começo. Ele era engraçado, mas não de uma maneira lisonjeira. Não se demorou muito ali. Pendurou sua água com o dono do boteco e saiu.

Até mais - foi o que disse.

Fiquei eu lá, meu cigarro, meu Domec e minha cerveja no fim. E meus pensamentos, claro. Era incrível ela ter visto algo em alguém como ele. Não era sua aparência (ele poderia estar em melhor estado à época) nem o que ele me contou (sabe-se lá se eram verdadeiras suas histórias). Eu só não conseguia entender como pode ter acontecido com ele, tão diferente de mim. Pior: tão diferente dela. Se o que eu sentia era pena, ainda não sei. Podia ser pena pelo que poderíamos ter sido, pena dela por se envolver por tal bufão, pena dele por...vá lá, talvez por despeito. E tirando o que pode ter sido pena, restou também o desapontamento. Com ela, por ter ficado deslumbrada pelo charme decadente dele e comigo por ter perdido a disputa. Com ele não. Ele apenas cumpre o papel que destinou para si de melhor forma que pode.

Paguei minha conta e saí, pensando nesse encontro casual e em tudo que havia acontecido antes. Não estava triste, nem alegre. Agora, o que se podia fazer? As pessoas agem de forma estranha.

9.12.03

Sangue e amor



Não considerava o amor que tinha um sentimento. Era mais que isso, era físico, sentia seu amor no próprio sangue, fluindo por todo seu corpo e inundando seu coração. Nem gostava muito dessa imagem: ele era meio dramático, mas não kitsch. Não era um coração "romântico" e sim o coração músculo. A cada batida do órgão, ele sentia que não só ele vivia, mas também seu próprio amor.

Só que - assim é a vida - o amor não depende apenas de uma pessoa. E parece que o alvo do amor dele não estava muito satisfeito com aquele vai-e-vem por veias e artérias. Deixou-o.

O que seria dele? Ficaria anêmico? Leucemia? Nada disso. A dor da desilusão é afiada. Ele preferiu deixar seu amor - que já não tinha serventia - fluir. Morreu venal-arterialmente.

26.11.03

Esquinas




Perdida entre os abismos das esquinas, cai assim, a menina. Ela queda e sua queda não é física. Não há mais o que esperar, logo para ela que tanto esperou.

O corte das ruas e prédios e asfalto e carros ela segue adiante. Cada aceno, cada dedo, cada beijo mandado é uma navalha. Não, ela não tem opção. Quisera tivesse.

A nudez mais vestida e as roupas quase não-vestes é o que tem que usar. Expor a mercadoria e atrair possíveis compradores. As ruas, à noite, são quase um açougue.

Beija homens e mulheres. Beija o pai, o filho, a esposa. Beija o patrão, o empregado, o rico, o pobre. Beija o asfalto, as vezes. Esse é o beijo menos áspero.

Ela procura não pensar na injustiça do mundo, onde poderia estar se tivesse outra vida. De que adianta? Ela só se preocupa em oferecer o melhor simulacro de sentimento possível. Ela odeia cada um dos seus clientes, com todas as suas forças; ela ama todos os seus clientes, como se eles fossem os únicos homens da Terra.

Ela é apenas uma criança.

20.11.03

Rock'n'Roll


Não tenho dormido muito por causa do trabalho estúpido que faço, trabalho estúpido esse que só consegui por ter estudado estupidamente por 5 (seriam 6?) anos numa faculdade cheia de gente tão estúpida quanto eu. Talvez não tão estúpidos: eu sabia o que era ruim e não quis mudar. Segui a trilha da estupidez por escolha própria.

O pior estúpido é aquele que vê e mesmo assim não quer ver.

Horas diante de um monitor, fone de ouvido gritando um rock antigo e a insatisfação gritando mais alto nos meus ouvidos que as guitarras. Relatórios, memorandos e o saco cheio. O velho discurso de sempre. Os velhos dias de sempre. Minha vida fede a bolor.

Um dia eu chuto tudo isso. "Kick out the Jams!!!"

Ha! Eis me aqui saído da minha jaula acolchoada, da minha auto-câmara de gás. Sem walkman, sem pilhas. O sol mata. Até que ela aparece. Ela é o próprio sol.

Óculos escuros e a pele alva. Ela não sua. Ela nunca suaria. Camiseta e jeans surrado. Ouve algo no seu walkman - ela tem pilhas - que a faz balançar a cabeça. Vejo seus lábios cantando a música, sem som. Lábios mudos que rasgaram meu dia ao meio. Se ela quisesse, rasgariam a mim mesmo ao meio.

Ando ao seu lado, ela me ignora. Não sou nada. Ela ouve seu som como eu ouviria, no talo. Consigo escutar a música: "Gigantic/Gigantic/A big big love!". Eu estou apaixonado.

Eu toco seu ombro e ela se vira. Sem falar nada, a pego pela nuca e a beijo, sob os olhares dos curiosos. É um beijo intenso e longo. Ela retribui o beijo. Ela também está apaixonada...

Tá bom. Nem em sonho. Ela continua andando e eu, nada, continuo seguindo. Ela acende um cigarro, para num ponto de ônibus. Eu paro. O simples ato de guardar um maço de Marlboro Lights - ela deve estar tentando parar com o vício, pra fumar filtro branco - é maravilhoso. Eu vou...eu TENHO que falar com ela.

Ela olha o fluxo do trânsito. Dá uma tragada forte no cigarro, ainda dançando com a cabeça. Joga o cigarro pela metade no chão e pisa, girando seu pé em cima da brasa. Eu nunca amei tanto uma mulher como a amo. Ela faz o sinal, o ônibus para e ela joga o resto de fumaça que ainda tinha nos pulmões subindo no coletivo. Ela teve que virar a cabeça para que a nuvem de nicotina e alcatrão não entrasse no ônibus. Essa imagem dela, um pé no degrau, outro na rua, mãos no corrimão, cabeça voltada para trás, foi a coisa mais bonita que eu já vi em toda minha vida.

Ela se foi. Eu não fiz nada.

Volto estupidamente para o trabalho, pros memorandos, pros relatórios, pro meu rock & roll alto dentro dos tímpanos, me sentindo mais estúpido que nunca.

18.11.03

Folk song



Sigo pelas ruas em passo lento. Vejo tudo e todos me vêm, mas não entendem. Caminho com vagar, como o andamento de uma música do Dylan. Revisito minha estrada sem medo.

Passam as pessoas. Não temos nada em comum. E quem tem algo em comum com o outro? Os outros, são os outros. Pego meu maço de cigarros amassado no bolso, acendo um dos últimos e solto a baforada. A fumaça tem mais em comum comigo que essas pessoas.

Esse tempo está prestes a mudar. A saudade de casa vai passar, em alguma rua dessas. Em alguma rua dessas as feridas fecharão. Como deve ser, como sempre deve ser.

E se me perguntarem - sobre a vida que criei para mim mesmo - "foi bom pra você", vou responder com um beijo, um acorde da canção que vive na minha mente e seguirei com meus passos.

17.11.03

Tem vaga



Tem vaga para vivo, mas acabou. Tem vaga para pensante, mas acabou. Tem vaga para pessoas que fazem coisas relevantes. Mas essa acabou faz tempo! Quando você pensa que vai ter vaga para uma coisa que nem seja tão legal assim, como pra suicida em potencial depois de décadas de uma vida medíocre, você se ferra: até para isso, tem vaga, mas acabou.

As vagas para idiotas que não se importam com nada também tinham, mas acabaram. Para idiotas que se importariam com tudo, se entendessem tudo, também. Esqueça as de revoltado impotente. Essas são das primeiras a acabar. Tem vaga para falso niilista. Mas acabou.

Então só te sobra aquele lugar apertado no fundo do ônibus. Lá tem vaga. Você passa pelo coletivo lotado, trombando em outras pessoas que, como você, não acharam vaga para nada. Misteriosamente, ninguém ocupou aquela vaga. Você se senta. Arranjou uma vaga. A vaga de inútil que faz concessões para tudo. Não é das melhores, mas é uma vaga. Essa tem. E não acabou.

A viagem nem começa e aparece uma grávida ao seu lado, cheia de sacolas. Você tem que ceder seu lugar para ela. Ela se senta e tira uma sacola de dentro da camisa. A barriga era falsa e ela ri. Todos riem. Você não faz nada.

Boas notícias



Chegou dizendo que trazia boas notícias. Nada. Não existem boas notícias. Tudo continua igual nesse mundo.

-Você é muito deprimido- ela falou, sorridente.

Não sei se ela realmente achou graça nesse meu jeito triste ou se riu apenas pra me alegrar. Não adiantaria, era bom ela saber. Certas pessoas nascem assim, sem razões para sorrir.

-Isso é cena, eu sei. Vem cá.

Transamos e foi bom, claro. Até me senti feliz por alguns momentos. Certas pessoas nascem assim, fazem qualquer um sorrir, até os mais tristes.

Ela foi embora logo depois. Tinha que trabalhar. No fim das contas, ela nem me falou qual era a boa notícia. Não precisava. Ela era a melhor notícia que poderia haver. Sorri ao pensar nisso.

Certas pessoas nascem assim.

10.11.03

Exílio



As vezes vem no vento
Que refresca como o de lá
Outras, uma música
Vinda de um rádio qualquer
Difundido cartão postal
Que independe de venda
Recebo seu toque assim
Sem procurar
Como se eu, filho não pródigo
Merecesse tal regalia
Exílio é dor aguda
É agulha que penetra a pele
Sem clemência
Toda vez que minha terra me beija

28.10.03

Um, dois, três e...



- Não faz isso, rapaz!!!
- Por que não?
- Preciso mesmo falar? Olha a altura da queda!!!
- Quando pensamos em nos matar, quanto mais alto estamos, melhor o resultado, não acha?
- E quem disse que ele quer se matar?
- Agora eu que te pergunto: precisa mesmo falar? O que diabos ele estaria fazendo de pé no parapeito de uma janela no vigésimo andar de um prédio? Observação de pássaros?
- Ele NÃO quer se matar. Ele só está confuso.
- Hmmm...Ele me parece bem decidido, para ter chegado até aqui.
- Mas não está. Volta já pra dentro, rapaz! Olha que você cai daí!
- Ele não vai cair. Ele vai pular.
- Não vai, não.
- Vai.
- Não vai.
- Tá bom, tá bom...essa discussão não leva a nada. Porque não perguntamos pra ele?
- Ah, não, nada disso. Ele não está no seu estado normal.
- Ah, é? E agora você julga "estados"?
- Alguém que está de pé em um parapeito no vigésimo andar de um prédio te parece estar no seu estado normal?
- Não, parece estar afim de se matar. E é justamente isso que ele vai fazer.
- Não vai.
- Vai.
- Olha... Pensa bem. Ele vai se esborrachar lá embaixo, vai fazer a maior sujeira...
- E daí? Ele não vai precisar limpar nada...
- Muito engraçado...Pensa na dor. Deve ser horrível se esfacelar todo...
- Nada, só vai durar um segundo. Isso se ele não sofrer um ataque cardíaco antes. Acontece muito.
- Então!!! Ataques cardíacos doem pra burro!
- Pode ser, mas vai ser rapidinho também...depois do "plaft" no chão, ele nunca mais vai sentir dor...
- DÁ PROS DOIS CALAREM A BOCA??!?!?!
- Ahn? Quem falou isso?
- Ih...olha o suicida dando ataque!!!
- Porra!!! Me deixem em paz, merda!
- Nossa...que moça nervosa!!!!
- Hahahaha...vai ver é por isso que a bichona quer se matar.
- É por isso, mocinha? Se for, então pula!!!
- É isso mesmo!!! Pu-la, pu-la, pu-la!
- Vou pular mesmo!!! E a culpa é de vocês!!!
- Era o que faltava! A mocinha agora coloca a culpa dos problemas dele em cima de gente!
- Onde já se viu!!! Assuma seus defeitos, amigo...
- Eu estou assumindo! E a culpa é de vocês mesmo! Não posso mais viver com vocês dois falando na minha cabeça o tempo todo! Para mim, não bastava ter esquizofrenia; eu tinha que ter o azar de pegar duas vozes chatas para falar na minha mente!
- Mas você é uma besta mesmo, não? E isso é motivo pra se matar?
- É! Carinha mais fraco! Deixa de ser covarde!
- É isso mesmo....vou deixar de ser covarde...um, dois, três e....
- Caralho! A bichona pulou mesmo!!!
- Pois é, que retarda...

PLAFT

Perfeição



Era uma festa no teatro. O elenco comemorava junto com a equipe técnica o sucesso da estreia e as críticas excelentes que saíram no dia seguinte. Cumpriram o ritual de esperar sair o jornal e comprá-lo ainda fresquinho, lá pelas 4 da manhã. Beberam, obviamente, durante toda a espera. Os elogios dos críticos só confirmaram o que os vários minutos de aplausos de pé os fez pensar: o êxito da montagem foi total.

Mas, algo inusitado acontecia. No meio dos festejos e da gritaria causados pelo álcool e pelo retumbante sucesso da peça, uma pessoa estava quieta, taciturna, desde a leitura das críticas. E justamente aquela que deveria estar mais exultante. Saulo Rebeskini, autor e diretor da peça, parecia muito aborrecido.

Só notaram sua atitude na hora do brinde com toda a equipe, quando terminaram de ler o último caderno cultural. Saulo não estava entre eles. Depois de um breve corre-corre, encontram-no afundado em uma poltrona, as mãos no queixo e uma cara decepcionada.

- Ei, Saulo!!! O que você tá fazendo aí, rapaz? Vem brindar com a gente! - chamou Raul, o assistente de direção.
- Não estou no clima... - respondeu.
- Que cara é Saulo? Parece que tá num enterro!!! - perguntou Franklin, o protagonista da peça, visivelmente bêbado.
- É como se fosse... - disse Saulo, sem o menor jeito de quem queria conversa.

Vendo a cena inesperada de ter que consolar o responsável pela bem sucedida peça, o restante dos presentes rodeou a poltrona onde sentava Saulo.

- O que você tem?!?! A peça foi muito bem! Todos os jornais elogiaram! Deram nota máxima para direção e pro seu texto! - disse alguém do grupo
- Eu sei...e esse é o problema!

Raul sentou num dos braços da poltrona e segurou Saulo pelos ombros.

- Então qual é o problema, Saulo? Você queria que a peça fracassasse?
- Acho que..sim. Não queria que minha primeira encenação fosse um sucesso.

Todos se olharam, boquiabertos. Ninguém sabia o que dizer. Depois das palavras do Saulo, copos foram deixados nas mesas, garrafas foram abandonadas e as risadas foram substituídas por expressões interrogativas. O silêncio foi quebrado pelo próprio intérprete da cena, que notou que sua reação foi completamente inesperada.

- E o que vou fazer agora? Eu não tenho mais como escrever ou dirigir nada! Se eu fosse mal em alguma coisa, texto ou direção, tudo bem...Mas ir bem nos dois? Estou num beco sem saída!
- O que você está falando, homem!!! Agora todas as portas estarão abertas pra você! - falou o trôpego Franklin.
- Aí é que está! Eu se eu não corresponder? Não quero ser decadente logo no meu segundo trabalho! E como eu vou conseguir superar essa estreia!
- Você vai conseguir, Saulo! Que paranoia é essa, justo nessa hora? Você é o cara mais talentoso...
- ...que você conhece. Sei, sei, já ouvi essa história e concordo com ela. Tenho a noção exata do meu talento. Essa peça é excelente porque ela foi o meu sonho realizado. Ela saiu justamente como eu imaginava que sairia. Ela já estava montada na minha cabeça, e foi assim encenada. Eu sei que ela vai ser o ponto máximo da minha carreira. Só que o início de carreira não pode ser seu ponto máximo ao mesmo tempo.
- Mas..- hesitou Raul antes de continuar - quem disse que você não vai conseguir fazer nada melhor? De onde você tirou essa ideia?
- Eu sei, Raul. Eu sei que nunca vou superar esse começo.
- Ah... Nesse jornal disseram que você poderia ter feito uma peça maior...isso é um defeito! - falou Regina, uma coadjuvante não muito brilhante.
- Queriam uma peça maior para que ela desse maior prazer pra plateia, Regina. É isso que está escrito na matéria. Isso não é bem um defeito.
- Isso tudo é viadagem de autor angustiado! Bebe logo um uísque e para de babaquice, Raul! - gritou Giovanni, o produtor do espetáculo.
- Não é viadagem, Giovanni. Eu não estou feliz com o começo da minha derrocada. Apenas isso.
- Tó...pega esse copo e bebe, porra! - Giovanni entregou para Saulo um copo cheio de bebida.

Saulo pegou o copo contrariado e o virou em uma talagada, sob o olhar de todos a sua volta.

- E agora Saulo? - perguntou Giovanni - Tá vendo as coisas mais claramente agora?
- Tô. E agora mesmo que eu vi que estou encurralado na minha carreira de dramaturgo.
- Ai, caralho! Desisto! Raul, dá um jeito nesse cara que ele é amigo seu...- disse Giovanni se retirando.
- Vocês não entendem! O fracasso é experiência vital para qualquer um. Eu tinha planejado toda minha carreira e seria no seu início que eu iria falhar. Eu contava com o aprendizado que só um projeto mal sucedido pode oferecer.
- Você está exagerando Saulo. Deixa de drama, homem de Deus!
- Não estou exagerando, Raul. É assim que é...

A confraternização estava arruinada. Não havia mais clima para nada, muito menos para comemorar. O primeiro a ir foi Giovanni, que acabou levou consigo vários dos integrantes da equipe. Em pouco tempo só restava Saulo e Raul nos bastidores do teatro.

- Vamos embora, Saulo. Todo mundo já foi, você conseguiu acabar com a festa.
- Você também não entende, não é Raul?
- O que há para entender, Saulo? Você está triste porque sua peça não foi um fracasso. Como alguém em sã consciência pode entender isso?

Raul olha para Saulo e nota que ele está completamente alheio à sua presença. Quando ele começa a falar, não é com Raul.

- Fiz o melhor que pude. Calculei tudo, reescrevi passagens inteiras do texto. Eu mesmo supervisionei a criação dos cenários, da iluminação, das roupas. Ensaiei com os atores exaustivamente, tirando o máximo até dos mais fracos. Depois de tudo pronto, revi cada parte da peça, a procura de defeitos e os que havia, eu os acertei. Era para tudo, tudo, tudo sair perfeito.
- Mas saiu, Saulo!!!
- E esse é o problema. Não era possível que saísse. Não nessa peça. Alguém tinha que encontrar algum defeito nela. Eu pensei até em sabotá-la em alguns momentos, mas não fiz. Eu queria que saísse tudo perfeito, tudo, mesmo sabendo que isso era improvável. Mas aconteceu...
- Tá, Saulo. As críticas saíram, seu trabalho foi exaltado e você - sabe-se lá porque diabos - não ficou muito satisfeito. Queria falhar, mas acontece que não falhou em nada. Foi perfeito. E agora? Vai fazer o que? O que você quer?

Saulo não responde. Pensativo por alguns minutos, responde em seguida:

- Eu não sei...Não sei o que eu quero ou o que eu vou fazer daqui pra frente.

Raul levou Saulo para casa depois da conversa que tiveram. Saulo estava meio alto e quando chegou em casa foi direto para cama. Precisava por as ideias em ordem. Nem ele mesmo sabia ao certo o porque de tamanha frustração com o sucesso. Queria ter falhado em algo, isso ele já tinha assimilado. Mas sua obsessão pelas críticas negativas que não vieram ainda não era totalmente entendida.

No dia seguinte, a primeira coisa que Raul fez foi ir até a casa do Saulo. Estava preocupado com o amigo. Uma pessoa que ficasse tão infeliz com a boa sorte de um projeto pessoal seria capaz de qualquer coisa. Tocou o interfone no prédio do Saulo, que demorou pouco para atender. "Deve ter acordado cedo", imaginou Raul. Subiu com o elevador e encontrou a porta de Saulo aberta, a sua espera. De dentro do apartamento, o som de Bach saía num volume desproporcional para a hora do dia.

- Agora você também ficou surdo? - entrou falando Raul, momentos antes de se emudecer por completo. A casa do Saulo estava numa completa balbúrdia. Dezenas de livros estavam espalhadas pelo chão, abertos. Discos, revistas, reproduções de obras de arte, tudo numa anarquia completa. Saulo estava sentado no meio dessa loucura toda, com a barba por fazer e com a mesma roupa da noite anterior.

- Raul, eu descobri.
- O que é isso, Saulo??? Que bagunça é essa?!?!
- Eu não dormi muito hoje, Raul. Tive uma visão, um insight, não sei como explicar...mas eu descobri a razão da minha insatisfação.
- "Insight"? Saulo, você ainda está bêbado?
- Não, não...Estou sóbrio, como nunca estive antes.
- O que diabos aconteceu, Saulo?
- Ontem à noite, depois que você me trouxe para casa, eu fui direto para cama. Mas não dormi muito. Acordei com alguém me chamando, aqui dentro de casa.
- Como assim, "alguém me chamando"? Alguém estava aqui?
- Não. Quer dizer, sim. Bom, pra falar a verdade, não sei explicar direito.

Raul tentou evitar a cara de estranhamento que tinha acabado de fazer, mas foi impossível. Ele não precisou fazer a pergunta que Saulo respondeu em seguida.

- Não, Raul, eu não estou louco. Levantei e encontrei um sujeito sentado diante da minha cama. Levei um baita susto. Perguntei quem ele era e como tinha entrado na minha casa. Ele disse que não veio fazer nada de mal para mim, que não era um ladrão. Só queria conversar um pouco comigo.
- Ahn? Saulo, que história é essa? Como o cara entrou? Quem era esse sujeito?
- Não me interrompa, Raul. Era um cara de meia idade, grisalho, sem traços característicos. Era tão comum que posso dizer que era impossível de ser descrito. Aparentava tanta calma que nem pensei em fazer nada. Assim que ele falou que não ia fazer nada de mal, me tranquilizei na hora. Não me pergunte porque.
- Claro que não vou perguntar! Ao que parece, você ficou completamente louco!
- Espera Raul! Ele começou a falar. Disse que sabia pelo que eu estava passando e veio me ajudar. Queria conversar comigo sobre o conceito de perfeição.
- O que? Saulo, essa é história mais louca que eu já ouvi.
- Pra mim também é, amigo. Mas me deixe continuar. Ele começou dizendo que muita gente já passou pela aflição que eu passei. Que a sensação de "dever cumprido", de não ter mais o que fazer depois de realizar algo incapaz de ser superado por si mesmo, era comum em artistas e que os verdadeiros artistas sempre sabem a hora de parar. Quando não há mais nada de relevante a ser criado, esses artistas de verdade penduram as chuteiras. E que o meu problema é que eu havia pulado todas as etapas de um progresso artístico e realizei minha obra-prima prematuramente.
- Bom...isso foi mais ou menos a razão do seu chororô ontem.
- Eu sei. Entendi de primeira que esse era um dos motivos pelos quais deveria me preocupar no futuro. Como poderia superar esse meu primeiro trabalho? Essa era uma questão. Mas eu ainda não sabia porque isso me incomodava tanto. Eu poderia...sei lá, abandonar o teatro.
- Não seja ridículo, Saulo!
- Calma, Raul. Depois da conversa com o estranho, eu descobri o que me incomodava: minha peça, apesar de todas as análises dizerem o contrário, não é perfeita.
- Claro que é, Saulo! Ninguém pôde encontrar um senão nela! Ninguém conseguiu encontrar um defeito sequer em todo espetáculo!
- E é esse justamente o seu único defeito! Ela não tem defeitos!

Novamente Raul não conseguiu evitar a expressão de preocupação com o amigo.

- Sei que parece contraditório, Raul, mas o estranho me explicou tudo. Ele me falou que "A" perfeição é uma meta que apenas serve como objetivo. Alcançar a perfeição é um ideal, um sonho. NADA pode ser perfeito. Ele me deu vários exemplos e eu procurei outros aqui em casa, por isso todos esses livros e discos espalhados. A perfeição não existe. Os defeitos fazem parte de qualquer processo criativo e ele me mostrou as falhas das maiores obras de arte dos maiores nomes da cultura de todos os tempos. Dante, Shakespeare, Rafael, Michelangelo, Da Vinci, Bach, Picasso, Cervantes. Mesmo em seus principais trabalhos, podemos encontrar algo falho neles. Mesmo que imperceptível, eles existem. Não haver falhas no meu trabalho, é uma falha.
- Saulo...Você definitivamente está bêbado.
- Não estou Raul! - falou agarrando o amigo pelos braços - Os defeitos fazem parte da vida, assim como da arte. Eu falhei justamente por não ter falhado. A perfeição não existe e mesmo que existisse, não seria perfeita. Entendeu?
- Não. E me admira muito um sujeito culto como você cair numa esparrela de um desconhecido que invadiu sua casa no meio da madrugada para falar esse tipo de besteira. E quem era o sujeito afinal?
- Ele não me disse seu nome. Mas depois do último exemplo que ele me deu de "obra-prima com defeitos", tenho uma desconfiança de que eu saiba quem é o sujeito. Sabe quando falamos do que nós mesmos fizemos e não conseguimos evitar aquela pontinha de orgulho?
- Ah, é? E qual foi o exemplo?
- Ele começou falando que minha busca pela "peça perfeita" era justificada. Já realizá-la era impossível e eu ter notado isso, a despeito do que todos disseram, foi o que me salvou da soberba, do orgulho. Foi aí que ele me disse que buscar a perfeição é uma obrigação do artista, mas quando ele pensa que a alcançou, prova que é um insano; é cometer uma afronta ao maior criador de todos, já que até sua obra máxima é a maior criação já feita e ainda assim é falha.
- De quem ele estava falando, afinal?
- Dele mesmo. E a obra máxima que ele falou era a própria vida.
- A própria vida? E isso quer dizer que...
- Deus, Raul, Deus...Foi o risinho dele de falsa modéstia depois de falar da criação da vida que o entregou. Ele, DEUS, em pessoa - se é que eu posso falar assim sem ser herege - me visitou.
- Você chama DEUS de orgulhoso, fala que ele veio até aqui só pra apaziguar suas neuroses de artista atormentado e está se preocupando com heresias? Você não é herege, Saulo, você é louco!
- Raul...não sei se foi Ele que esteve aqui, pode ter sido uma alucinação. Mas, não vejo problemas dele vir aqui...Ele não é onipresente? E se Deus não pode ter orgulho da sua criação, quem mais pode ter?
- Saulo, vai tomar um banho...você deve estar cansado. Isso só pode ser um esgotamento nervoso.
- Até vou tomar um banho, mas eu nunca estive tão bem em toda minha vida.
- Tá bom, tá bom. Não vou discutir isso com você. Se você está feliz, é isso que importa. Só me faz um favor: não comenta isso com ninguém, certo? Não quero ver você internado num sanatório.
- Combinado.

Enquanto Saulo tomava seu banho, Raul foi arrumando a bagunça feita pelo amigo. Estava realmente preocupado com ele. De todas as loucuras, até habituais, do seu amigo, essa havia batido todos os recordes. Estaria Saulo ficando maluco?

Mesmo que fosse isso, a vida de ambos seguiu sem que ocorresse problemas ou novas visitas divinas. Saulo continuou sua carreira, com muito sucesso, mas sem repetir as críticas impecáveis da sua primeira peça. Os analistas do seu trabalho sempre encontravam algum defeito nos seus espetáculos posteriores, seja uma hesitação no texto ou uma certa frouxidão na direção. Apesar disso, todos eram muito elogiados, às vezes até mais que seu primeiro êxito. Saulo nunca esteve tão feliz.

16.10.03

Feliz Aniversário, Doris



Seu nome era Doris Deyse. Era loira, olhos azuis e mãe de família. Era seu auto-retrato. Gostava de se descrever assim. Seu maior orgulho era poder responder em todos os questionários das revistas sobre comportamento que era "do lar".

- E das melhores! - sempre dizia.

Dizia que não trabalhava porque não queria. Ficou noiva do primeiro namorado aos 17, quando tinha acabado de se formar normalista. Não chegou a dar aula para as crianças (que ela adorava!), casou com 18 e foi realizar seu sonho de dona de casa. O marido saía para o trabalho, terno e pasta na mão e ela ficava em casa, sem trabalhar: arrumar os quartos, varrer a casa, fazer o almoço, ver algum programa de auditório vespertino - eu me divirto muito com a TV! - e uma cochilada à tarde.

Era feliz. Os filhos vieram pouco tempo depois. Um menino e uma menina, um atrás do outro.

- Agora tudo está perfeito! Um menino mais velho, para proteger a irmã caçula! - falava orgulhosa.

A rotina a deixava feliz. Acordar cedo, aprontava o café da manhã para família, arrumava a casa, via Tv e dormia. Estava realizada e se achava a melhor mulher do mundo. Cumpria suas obrigações, fazia valer o salário que o marido trazia para casa e criava bem os filhos.

Não gostava muito de pensar. Não, não era uma alienada (Esse governo...Sei não, viu? - fazia essa análise mandato após mandato). Só não pensava muito na sua vida. Para ela, isso só servia para criar problemas e desestruturar seu lar perfeito.

Como toda mulher, tinha "aqueles dias". Nessa época, ficava mais quieta, às vezes dormia mais a tarde. Se dava esse luxo. A vontade de bater nos filhos - que estavam na idade em que começavam a criar problemas - ela controlava. "Surras não levam a nada! Temos que ser compreensivos!" - era seu lema. Ela ficava mais irritada "nesses dias", mas nem os anos sem uma das suas paixões, o cinema (ADORO fitas românticas!), por falta de tempo do marido para levá-la a incomodavam.

- Ele trabalha muito, coitado! Sempre faz serão até de madrugada duas vezes por semana! Tenho que dar minha cota de sacrifício. Afinal de contas, eu não faço nada e ele sustenta a casa! - refletia.

Um dia em que estava mais nervosa, não sabia porque, bebeu um pouco do uísque do marido. Relaxou, apesar do gosto amargo. "Prefiro laranjada! É mais docinho!". Gostou tanto da sensação, que isso se tornou um hábito. Não só "naqueles dias", mas toda vez que se sentia cansada ou incomodada por algo que não sabia explicar. Ficava feliz quando bebia. As vezes, alegre, até colocava suas roupas antigas, de quando era normalista. Elas quase não cabiam mais - "Ser do lar engorda!" falava, divertida. Além do mais, fazia tempo já que não era uma adolescente. Era uma senhora já.

Mantinha-se feliz, depois de todos os anos, todas as arrumações de casa, todos os problemas cada vez maiores dos filhos e dos serões mais longos e repetidos do marido. Tinha sua garrafa à tarde - começou a comprar uma só para ela, economizando nas compras de mês - e isso bastava. Não ligava para os namorados esquisitos da filha e nem para o fato do filho mais velho, que devia proteger a caçula, estar sempre aéreo e com uns amigos estranhos, que fediam a uma fumaça com cheiro estranho. Do marido, não podia reclamar. Ele era o arrimo da família. E a explicação dele para aquelas manchas vermelhas na camisa foram muito plausíveis.

No dia em que completaria 45 anos, não mudou sua rotina. Esperava algum gesto do marido, mas ele havia ido dormir tarde e acordou atrasado para o trabalho. Já não esperava o beijo de bom dia dele, hábito abolido já há anos. Ele engoliu o café e saiu, sem se despedir ou felicitá-la. Foi acordar a filha, para o desejum. Ela não estava no seu quarto e sua cama, ainda estava arrumada. Ficou preocupada. Foi até o quarto do filho, perguntar se ele sabia da irmã menor. O quarto tinha o mesmo que os amigos do filho tinham. Ele estava estirado na cama e não acordou nem com os chamados, nem com as sacudidelas. Resolveu deixá-lo dormir mais um pouco. Saiu com cuidado, para não pisar nas seringas jogadas no chão. Ele podia querer usá-las depois e se ela quebrasse alguma delas, ela ia ouvir muito, e com razão.

Voltou ao quarto da filha, ainda sem parabéns pelo dia. Foi até ao banheiro da filha, tinha que lavá-lo. Encontrou na pia um papel dobrado e o examinou. Era algum tipo de exame. Sem se preocupar com o que era, viu um positivo no final. Não sabia que a filha tinha ido ao médico.

- Preciso conversar mais com minha filhota! Não sei quase nada dessa menina! - pensou.

Decidiu acordar o filho. Ele deve saber de algo sobre esse exame. O cheiro no quarto dele era horrível, mas não era mais o mesmo. O filho, por algum motivo, tinha vomitado.

- Deus!!! Esse garoto anda bebendo! Vou ter que conversar com ele também.

Deixou o quarto e saiu para pegar o material de limpeza. Deixaria o filho curando a ressaca mais um tempo, sem acordá-lo. Não estava muito contente. A filha sumida e talvez doente, o filho de ressaca e o marido sem cumprimentá-la no dia do seu aniversário. Isso não era bom. A rotina que ela tanto gostava estava muito alterada nesse dia.

Limpou o quarto do filho e vendo que ele estava pálido e tremia, puxou suas cobertas, para que ele melhorasse do frio. "Só esse menino pra sentir frio com um verão desses!" - pensou, rindo. Passou a mão em sua testa suada e fria e saiu do quarto.

Na sala, viu que todo o serviço estava atrasado. Assim, o jantar ia acabar atrasando, ainda mais hoje em que faria uma surpresa para família e prepararia um bolo, em sua homenagem. Queria cometer essa extravagância. Mas antes, para se animar um pouco, foi até sua garrafa.

- Uma dosezinha seria ótimo agora.

Estava no meio do copo quando o telefone tocou. Atendeu e uma voz feminina, desconhecida - não era sua mãe ou alguma amiga dos seus filhos - começou a falar uma história absurda sobre o marido dela a abandonar, que ele preferia uma mulher de verdade e não uma velha gorda como ela. Que hoje o marido dela não voltaria pra casa e talvez nunca mais voltasse. Onde já se viu? Depois de mais algumas ofensas, Doris se cansou e resolveu desligar.

- Olha, minha filha...Você discou errado. Deve ter sido engano - e bateu o telefone.

Voltou para sua garrafa e encheu seu copo. Pensou em como o mundo estava mudado. Uma pessoa passando um trote desse, logo pela manhã. O estranho foi a garota acertar o nome dela. Doris não é um nome tão comum assim.

- Muita coincidência!

Levou a garrafa para cozinha, para fazer o almoço bebendo mais um pouco. Era seu aniversário, ela merecia, depois de um dia tão diferente. Terminou de fazer tudo junto com a garrafa. Estava feliz de novo. Estava meio alta, "de pilequinho", como gostava de falar. Foi dormir um pouco. Passando em frente do quarto do filho, e ouviu ele ainda passando mal, tossindo. Deixou para cuidar dele depois que essa tontura passasse. Afinal de contas, era o aniversário dela. Ela merecia um descanso.
Dormiu demais. Já eram sete da noite quando acordou. Desceu correndo as escadas, para arrumar a sala de jantar. O marido, se não fosse fazer serão, chegaria em meia hora. E ele detestava não encontrar a mesa posta.

Na pressa, esqueceu de ver o filho. Lembrou dele no meio da arrumação da mesa. A cozinha estava exatamente como ela havia deixado, de onde ela deduziu que o filho não descera para almoçar. Sua filha também não tinha dado sinal de vida. Assim que acabasse com a mesa, iria acordar o filho e ligar para as amigas da menina.

Doris ainda estava meio tonta. Tinha exagerado na bebida. Colocou o bolo na mesa e sentou-se diante dele para descansar mais um pouco. Acabou cochilando. Acordou no escuro, duas horas depois, ainda sem sinal dos filhos ou do marido. Resolveu decorar o bolo antes de tomar qualquer providência.

- É meu aniversário, caramba! Eu mereço um bolo bonito!

Eram quase dez da noite quando terminou de escrever "Feliz Aniversário, Mãe!" no bolo, com o glacê que ela mesma fez. "Receita da mamãe!". Era estranho ninguém aparecer, mas resolveu esperar. Devia ser alguma surpresa da família. Ela sentou novamente à mesa e esperou.

1.10.03

Chaves



Saí de casa e esqueci minha cópia das chaves. Foi de propósito. Não pretendo voltar, nunca mais. Deixo tudo lá, móveis, roupas e intenções não realizadas. É tempo de fazer algo.

Corro o mundo à procura de outras chaves, que abram outras portas. Não tenho mais âncoras: deixei de ser o filho antes de ser pai e agora espero por outros filhos. O mundo é minha porta e ela ainda está trancada. Por enquanto.

E por enquanto vou vagar por aí, até arranjar uma chave mestra. Ou um pé de cabra. Até que o mundo esteja escancarado para mim, até que eu possa ir e vir para onde eu bem entender, até quando eu puder escolher fincar minhas raízes no ar ou simplesmente desaparecer, lentamente.

Esse é o momento das raízes. Esse é o momento de novos começos. Esse é o momento de, apesar de tudo, agarrar a esperança com as mãos até quebrar-lhe os pulsos.

Esse é o momento.

29.9.03

À Mesa


Ela acreditava que o comportamento de um homem à mesa indicava como era o seu comportamento na cama. Prestava atenção neles quando ia a restaurantes, tendo até saído com alguns que julgava interessantes pelo modo como comiam. Era simples assim: se gostava de como o sujeito se portava à mesa, ela pedia ao garçom que entregasse um bilhete a ele. Foi assim, com esse inusitado processo de escolha e pelo prosaico método do "torpedo", que começaram alguns dos seus romances.

Ela preferia os que comiam com vagar aos que comiam vorazmente. Não que as vezes não saísse com os que devoravam suas refeições. Apenas achava que da comida, assim como de uma mulher, deve-se sentir o paladar. Os vorazes eram, muitas das vezes, afoitos demais. Podiam até ser bons amantes, mas era muito raro. Os que aproveitavam o gosto dos pratos sentiam e também davam mais prazer, invariavelmente.

Até que num domingo à noite, em um dos seus restaurantes preferidos, viu o homem perfeito. Ela estava numa mesa com quatro amigos e quando reparou nele entrou em transe. Suas companhias não existiam mais. O homem - que parecia ser o ideal depois de tanta procura - também estava acompanhado. Mas isso não a impediria de fala com ele.

Ele comia de forma delicada, devagar. Segurava os talheres de forma polida e os manuseava como quem tinha feito por anos algum curso de etiqueta. Mastigava por um tempo enorme, parecendo querer fazer com que a garfada se desintegrasse por completo na sua boca, sem sobrar nada para digestão. Limpava-se do molho nos cantos da boca com o pudor das virgens oitocentistas, segurando o guardanapo com a ponta dos dedos.

Mas não era só isso que a atraia irresistivelmente. Por trás de toda a sutileza, o homem tinha uma virilidade disfarçada, só percebida por uma expert como ela. Era preciso conhecer os detalhes, saber enxergar sua voracidade latente em pequenos gestos: a forma como olhava para seu Steak no prato, a forma firme como cortava a carne, as mastigadas lentas, mas firmes, como se aquele fosse o último pedaço de bife que ele fosse engolir pelo resto da vida.

Era a combinação perfeita. Ela teria esse homem, não importava o que tivesse que fazer.

Não ia utilizar a maneira usual de contato. Um bilhete escrito em um guardanapo não estava à altura daquele homem. Esperou pacientemente, ignorando seus amigos, toda sua atenção concentrada no seu objetivo. Foi recompensada com a ida dele ao banheiro. Levantou-se e foi atrás dele.

Ficou esperando à porta. Ao vê-lo, foi para cima, com fome. Não deu muitas explicações, passou o telefone e falou que precisava desesperadamente se encontrar com ele. O susto que ele levou foi justificado. Mesmo sendo bem apessoado, não estava acostumado a cantadas tão agressivas, ainda mais de uma mulher tão bonita. Ela não perguntou pela moça que o acompanhava, e pelo visto, ela não dava a mínima para isso. Fosse sua irmã ou sua esposa, ela ainda assim iria querer encontrá-lo. Isso despertou o apetite dele. E o beijo que ela deu em seu rosto como despedida, marcando-o com o batom carmim era apenas um aperitivo.

Ele voltou ao banheiro e lavou o rosto. Recompôs-se do susto e foi à sua mesa. A procurou pelo salão e não a viu. Sentou-se, e sem que sua acompanhante visse, olhou para bilhete deixado por ela, escrito com o mesmo batom que havia acabado de limpar da face. Iria ligar assim que chegasse em casa.

Marcaram um almoço para o dia seguinte. Ela escolheu o restaurante, refinado e caro, na Zona Sul. Ambos chegaram pontualmente e foram direto para mesa. Durante a refeição, ela pouco falou. Ele comandava a conversa não por ter muito assunto com uma mulher que praticamente não conhecia. Ele reparou que ela se contentava em reparar em como ele comia. Isso o deixou um pouco nervoso, não entendia o porque daquela atitude. Percebeu que durante o almoço ela ia ficando mais excitada. No meio do almoço, ela começou a brincar com a perna dele, passando seu pé nela. Isso, claro, o atiçou também, a ponto dele desistir de falar e decidir ficar apenas encarando-a, sem desviar o olhar. Num dado momento ela resolveu falar. Contou, finalmente, a razão dela procurá-lo daquela forma na noite anterior.

Ela percebeu que ele, apesar de achar insólita, gostou da teoria. Nunca havia pensado nisso, ele disse. Ela deu exemplos, se esmerando nos detalhes, que o fizeram perder completamente o apetite pelo almoço. Ele propôs que saíssem dali imediatamente, sem sobremesa. Foi o que fizeram.

Partiram para casa dela, que ficava perto e tiveram uma tarde intensa. O sexo, como ela esperava, era perfeito. Ela ficou extasiada com a maneira como ele conduziu tudo: não sabia se ele a fodia como um cavalheiro ou a amando como um gigolô. Era exótico, como uma receita oriental, impregnada de temperos raros e especiarias desconhecidas. Ela se viu inebriada, dominada pelo seu toque, seu aroma. Ela finalmente havia encontrado o homem perfeito.

No fim da tarde, ele disse que tinha que ir. Ela, inesperadamente até para si mesma, pediu que ficasse, que precisava dele. Confessou que ele era tudo o que ela esperava. Ele disse que não podia ficar. Mas poderia fazer um arranjo com ela: toda segunda feira, eles teriam um almoço e a tarde juntos. Era o que poderia oferecer agora. E ela aceitou.

No começo, o mistério de apenas tê-lo em um dia da semana a deixava excitada. Como uma receita secreta, ele não se mostrava no todo, apenas se revelando ao ser degustado. As dúvidas que tal comportamento despertavam não a incomodavam a ponto dela pensar em questionar o arranjo feito. Com ele, tinha cama, comida e sexo às segundas. E tudo ia bem.

Mas ela ignorou o perigo de unir dois pecados capitais. A luxúria e a gula, agindo juntas, a viciaram. Precisava dele mais que uma vez por semana. E as dúvidas, que antes eram um tempero no seu relacionamento, agora azedavam a receita que parecia tão perfeita. Se perguntava porque só podia encontrá-lo na segunda. Seria casado? Era o mais provável, apesar de não achar que isso fosse motivo para vê-la apenas uma vez na semana. Se fosse isso, até achava aceitável. Não perdoaria é que ele estivesse vendo outras mulheres, que não saberiam dar o valor que ele merece, não saberiam explicar a razão do seu poder.

Resolveu que descobriria tudo sobre seu homem perfeito. No outra segunda, vasculhando sua carteira, descobriu onde ele trabalhava. Decidiu que o seguiria no dia seguinte.

Acordou cedo, pegou o carro e cruzou a cidade, até o trabalho dele. Para sua surpresa, ele trabalhava no subúrbio, em um lugar que ela nunca imaginaria encontrar alguém com a sua classe. Tinha essa visão preconceituosa, tão natural nas pessoas bem nascidas. E bem ao estilo desse tipo de pessoa, a ocupação humilde do seu homem perfeito a deixou mais apaixonada ainda por ele. Estacionou seu carro, ficando em um lugar escondido. Não ficou surpreendida com o local onde ele trabalhava: era um restaurante. Mas não um dos que ela freqüentaria, nem que fosse com ele. Era desses lugares meio sujos, com um buffet por quilo. "Nossa! Que pobreza!", pensou.

Ele chegou alguns minutos depois, numa roupa que ela nunca esperaria vê-lo vestindo. Era uma camisa social surrada, uma calça de tergal preta e um par de tênis encardidos. O fato dele conseguir transparecer alguma elegância na frente dela era surpreendente. Sabia que ele tinha algo de bronco por baixo das impecáveis maneiras. Sabia disso pela forma como comia e como a fodia. Mas ele nunca poderia imaginar que aquela triste realidade fosse seu dia a dia. Não teve coragem de entrar no estabelecimento. Entrou no carro e foi para casa.

Chegou em casa e tomou um banho. Inconscientemente, procurava se limpar dele, como se isso fosse adiantar. Sentia uma camada de gordura na sua pele, como se sempre tivesse estado com ele na cozinha daquele lugar imundo, enquanto um cozinheiro sebento fazia uma dobradinha ou algo do gênero. Ela estava muito excitada.

Já era meio dia quando saiu do banho. Arrumou-se e resolveu sair para almoçar. No restaurante, pediu um dos pratos refinados com os quais estava acostumada. No meio da refeição, sentiu a falta do seu homem perfeito como nunca havia sentido antes. A repulsa que sentiu dele se transformou numa paixão arrebatadora. Largou o prato no meio e voltou para o restaurante no subúrbio.

Chegando ao local, não teve dúvidas dessa vez. Foi logo entrando no humilde restaurante sem dar atenção aos garçons que ofereciam a ela um lugar. Tinha que encontrar com ele imediatamente e se certificar que ele, apesar de pobre, tinha aquela classe inata que alguns pouco desafortunados têm. Ela estava tensa e sentia que se ele pedisse, se entregaria a ele na mesma hora, dentro da dispensa do restaurante.

Ela o encontrou almoçando no fundo do salão e foi esse seu azar. Ele estava com a camisa aberta, mostrando o dorso encharcado de suor. Estava sentado de pernas abertas e metade do seu corpo estava praticamente se jogando dentro do prato fundo. Segurava o talher de lado, como se tivesse aprendido a usá-lo há pouquíssimo tempo. No prato, alguma mistura indefinida contendo arroz, feijão, farofa e algum tipo de carne impossível de ser reconhecida. Ele não tinha nem uma faca e foi justamente quando ele dava uma mordida no pedaço de carne preso pelo garfo. Seus olhares se cruzaram e a boca dele, besuntada de gordura e com restos de farofa em volta dos lábios não ajudaram nada na situação.

"O que você está fazendo aqui?" disse ele, surpreso. Ela não conseguiu responder verbalmente, mas seus olhos diziam tudo. Ele se levantou, e - piorando sua situação - limpou a boca dos restos de comida na toalha de mesa. "Você não deveria estar aqui!" , disse, suplicante. Ele ia tocá-la e ela fez um gesto para que não se aproximasse. Ele entendeu tudo naquele momento. "Segunda feira é a minha folga. Você não deveria me ver hoje", ele disse, olhando para o chão, com toda vergonha do mundo. Os garçons em volta da cena não entendiam o que se passava, quando ela se virou, sem proferir uma palavra sequer, saindo do restaurante. "Você não podia me ver assim" ele ainda disse, para si mesmo.

Ela entrou no carro e se foi, sem saber no que pensar. No caminho para casa, parou em um drive thru do Bob?s e pediu um Big Bob. Mordeu o sanduíche ainda dirigindo, e sentiu o molho escorrendo pela sua boca abaixo. Olhou para baixo e viu que sua camisa estava respingada. Ela voltou sua atenção para o trânsito. E não usou guardanapo.

16.9.03

Montanha Russa


E daí que essa vida tem altos e baixos? Assim que é, para todos. Inevitavelmente, todos temos momentos bons e ruins e a única coisa que nos resta é aproveitá-los da melhor maneira possível Há de se agarrar os tempos felizes como se fossem os últimos - até porque podem realmente ser - e aprender com os dias de tristeza.

O que não adianta é urrarmos de medo ou fugirmos do passeio: temos que ir, mesmo que seja com os olhos fechados em alguns momentos, enjoados na maioria do percurso ou se prendendo desesperadamente ao assento, temendo a queda se supomos iminente. Devemos ir, sempre, pois essa é nossa única prerrogativa.

Nessa montanha russa chamada existência, não há devolução de ingressos.

9.9.03

Aniversário


Augusto acordou com sete anos completos. Olhou-se do alto do seu pouco mais de metro e meio e pensou "agora sim!", antevendo seu dia. Era taurino e, para azar dos seus pais, "hiperativo": esse novo sinônimo para encapetado. Saiu da cama pulando e gritou com todo ar que seus pequenos pulmões comportavam:

- Feliz aniversário pra mim!!!!

Se eram quinze para seis da manhã de uma quarta, pouco importava. Ele não trabalhava e problema de quem rezava por mais uns minutinhos de sono. Correu pela casa de cuecas e se jogou em cima dos pais, que não foram pegos de surpresa, já que estavam acordados.

- Bom dia, meu filho! Feliz aniversário pra você...

Sua mãe o amava mais que tudo, como toda mãe do mundo. Deu um abraço demora na cria, até que a própria achou que a mãe estava exagerando. Se jogou em cima do pai, que ainda se recusava a levantar. O pai deu um beijo na testa do filho e pediu delicadamente para que ele fosse brincar lá fora, só uns 20 minutinhos. Nem precisava. Depois do beijo paterno, Guto já corria para fora do quarto.

Era seu aniversário. Não escovou os dentes como a mãe mandava sempre, não iria para escola como o pai obrigava. Hoje seria dia de ir pro quintal e se jogar, brincar com as folhas, se atracar com o cachorro, ficar no portão para sacanear os amiguinhos à caminho da aula e depois ficar chateado porque seus amiguinhos não iam poder brincar com ele. Ver TV e jogar vídeo game até a hora do almoço, que seria hambúrguer, arroz, feijão e batatas fritas sorriso. Como sobremesa, um sorvetão de morango, cheio de calda quente.

A tarde ia brincar com os amiguinho que já teriam voltado da escola. Jogaria bola, pique-tá e carniça. Brigaria com todos e riria com todos. Voltaria para casa para o lanche e comeria misto quente com Coca ou iogurte. Levaria alguns amiguinhos, que deixariam sua mãe louca e feliz, com aquele tipo de sentimento contraditório que toda mãe do mundo tem:

- Guto, desce já dessa cadeira, menino! Eu vou te matar!

Veria sua cria crescendo e teria vontade de chorar ao vê-lo, já praticamente um homem. E a ida dele para brincar depois do lanche seria uma antecipação do dia em que ela o entregaria para o mundo.

E depois de um dia de correrias, artes e degustação de insetos, Guto retornaria para casa, sujo, cansado e feliz. Não teria feito nada muito diferente do que sempre fazia, mas era seu aniversário, seu dia, e ele era um rei - pensaria isso como se toda criança não se achasse o centro do mundo todos os dias do ano. Dormiria sem pensar no amanhã, sem imaginar como esse dia, repleto de alegria e sem preocupações, iria se tornar raro num futuro não muito distante. Quando se é uma criança, não se é "pequeno", temos sempre o tamanho certo para dominar o planeta sem sair do nosso jardim. Quando crescemos, podemos nos considerar afortunados se conseguimos dominar nossas parcas vidas, mesmo se nunca mais pudermos falar um outro "agora sim!" com propriedade, como senhor das nossas vontades, de novo.

28.8.03

Saída de emergência



Saiu de casa tão atrasado que nem se preocupou em tomar o café. Mal abriu a porta de casa e desatou uma carreira pela rua, querendo chegar o mais rápido possível à estação do metrô. "Outro atraso no escritório e estou ferrado!" , era só o que conseguia pensar.

As calçadas cheias foram seu primeiro obstáculo. Praticava um inusitado balé urbano ao se desviar das pessoas, que pareciam não entender sua pressa. Passava raspando por uma senhora ali, quase trombava em um estudante aqui, sem se preocupar com roupas ou feições. Seu único objetivo era chegar à estação e quem estivesse na sua frente era apenas um empecilho.

Até que ele, não tendo agilidade para se desviar de duas pessoas ao mesmo tempo, esbarrou com força num sujeitinho franzino que vestia um terno surrado. A violência do encontrão levou os dois ao chão, com maior prejuízo para o rapaz fraco.

- Ei! Ficou louco?!?!
- Desculpe! É que eu estou com...

Não pode terminar a frase. Mais estranho que o terno velho do rapaz era a forma como ele se barbeou: apenas metade do rosto estava lisa, perfeitamente escanhoada; a outra metade ostentava um bela barba. A surpresa que a imagem lhe causou o deixou sem fala por uns momentos.

- O que foi?!?! O que está encarando?
- Nada, nada...desculpe...tenho que ir. Estou atrasado...

Ia demorar muito para ele explicar a situação. Seu atraso não permitia que ele ficasse tecendo teorias sobre todo sujeito com comportamento exótico que trombasse pela rua. Continuou sua carreira rumo ao metrô, ignorando o resto dos transeuntes.

Chegou à estação com o ticket já na mão, pronto para voar pela roleta. Não poderia perder sequer um trem. Olhando o relógio viu que tinha que percorrer em 5 minutos um percurso que demoraria, se desse sorte, 25.
Chegando a plataforma, viu que um trem estava prestes a sair, faltava apenas uma senhora entrar no vagão mais perto de onde ele estava. Correu e entrou no trem, com as portas praticamente se fechando. Sentou arfando, de olhos fechados para se recuperar do esforço.

"Estranho ter lugar no metrô essa hora", pensou, antes de abrir os olhos. Quando deu sua primeira olhada no vagão, viu uma cena que nunca esperaria: ele estava praticamente vazio, havendo apenas a senhora que entrou e ele. Esse fato era uma impossibilidade total às nove da manhã. "Que dia mais maluco!", foi o que pensou.

Vasculhou os bolsos para ver se não tinha perdido nada na corrida. Enquanto verificava suas coisas, reparou que a senhora que o acompanhava na viagem estava olhando fixamente para ele.

- O senhor está bem? Parece que lhe falta ar.

Ele se virou para velha mulher e pela segunda vez no dia ficou sem palavras. O que o deixou chocado foi a maquiagem que ela usava. Não era daquelas maquiagens pesadas, até normais para senhoras daquela idade. Ela estava pintada, literalmente, de palhaça. Tinha, por baixo de uma espessa camada de tinta branca que lhe cobria todo o rosto, duas bolas vermelhas nas bochechas, havia coberto uma área muito maior que os lábios com batom e duas cruzes pintadas sobre os olhos completavam a figura.

- E então? O senhor está melhor? - insistiu a senhora
- Eu...eu estou bem. Ahn...a senhora...
- Sim?
- Desculpe perguntar. Mas por que a senhora está assim?
- "Assim", como?
- Com essa pintura no rosto...Desculpe, não quero parecer indiscreto ou muito curioso.
- Que pintura?
"Nossa! A véia caducou!", imaginou. Vendo que para ela estar com aquela pintura no rosto era normal, ele não quis mais tocar no assunto. Claro que não conseguiu desviar os olhos da senhora, o que passou a incomodá-la.

- Por que o senhor está me olhando desse jeito? E de que pintura está falando?

Ele não queria ser grosseiro com a senhora e, mesmo que fosse, tinha sérias dúvidas se ela ia compreender o que ia falar. Aproveitou que o trem parou na estação seguinte e desceu, apressado. "Chega de metrô! Vou pegar um táxi!" Era a solução para chegar menos atrasado e evitar o contato com mais gente esquisita.

Saiu da estação na mesma corrida que havia entrado. Saiu esbarrando nas pessoas, mas nem pensou em parar para desculpas. Praticamente se jogou na frente de um táxi que passava pela rua. Sem olhar para trás, abriu a porta traseira do carro e antes do falar bom dia foi logo avisando ao motorista:

- Toca pra Rio Branco, voando. Estou muito atrasado!
- O senhor manda, chefia. - respondeu o taxista.

Não se interessou em olhar para o motorista. Pegou a carteira e conferiu se tinha como pagar a corrida, e por sorte, tinha. O táxi seguiu pelo Aterro do Flamengo numa rapidez absurda, do jeito que ele pediu. A velocidade não permitia que ele visse as pessoas nas calçadas. Elas não passavam de borrões dispersos, o que era bom, pensou. Se pudesse não ver mais ninguém nesse dia turbulento, agradeceria a Deus.

- Muito atrasado, chefia? Posso ir mais rápido se o senhor quiser - falou o motorista repentinamente.
- Não, não...está bom - respondeu olhando a paisagem.
- O senhor não é muito de falar, né? Sabe...Todo mundo diz que taxista fala muito. E é verdade! As pessoas podiam ser mais compreensivas...A conversa é nossa única distração.
- Pois é - respondeu à reclamação do taxista com aquele tom de "a-conversa-acaba-aqui".
- Ah...O senhor não quer mesmo conversar, né?

Quando ele tirou os olhos da janela e foi responder ao taxista, não acreditou no que viu: o motorista estava dirigindo com os pés, mesmo não sendo deficiente. Ele guiava com destreza naquela posição esdrúxula, apertando com os dedos dos pés uns botões no volante, que deveriam ter a função dos pedais e do câmbio. Os braços estavam por cima do banco, sãos e fortes, como se ele estivesse dirigindo daquela forma para relaxar.

- Por que diabos você está dirigindo assim?!?! Ficou louco?!?! - berrou, já longe do seu estado normal.
- Mas....Foi o senhor que disse pra eu ir voando! - respondeu ofendido o taxista.
- Não é disso que eu estou falando, seu maluco!!! Pegue no volante com as mãos!
- Ué?!? Por que?!?!
- Como, "por que"?!?! Por que você está dirigindo com os pés???
- Qual o problema? - a confusão do motorista parecia sincera - Como o senhor dirige??? Tira os pés para guiar?

Ao falar isso, o motorista deu uma gargalhada altíssima, como se tivesse ouvido a piada mais engraçada do mundo. Ele já estava pronto para agredir o taxista quando ele repara que já está no fim do Aterro. Antes que fizesse uma loucura, pediu para o carro parar.

- Ora! Eu levo o senhor até a Rio Branco...
- Não precisa...É logo ali na esquina. - Olhou o taxímetro e pegou uma quantia aproximada na carteira. Jogou por sobre o banco do táxi e saiu, sem se despedir ou esperar o troco.

Desceu e voltou a sua já rotineira corrida. Se perguntou se todas as esquisitices que haviam acontecido com ele até aquela hora - e ainda não eram dez da manhã - não seriam uma praga do chefe dele, por seus constantes atrasos. Naquela parte do Centro, as ruas estavam vazias, até que ele alcançou a praça Mahatma Gahndi e a cruzou em direção à Cinelândia, repleta de gente. Chegou lá correndo, mas dessa vez, prestou uma certa atenção nas dezenas de pessoas que andavam. Viu um senhor de idade, calvo e com cara de político conservador, impecavelmente vestido, porém descalço e com os pés imundos. Depois passou voando por uma senhora, que devia ter uns bons setenta anos, vestida como uma normalista, com sainha, meia ¾ e lancheira, inclusive. Perto dela, um policial, paramentado com todos os equipamentos que um policial carrega, estava vestido de Pato Donald, e como o personagem, também não usava nada da cintura para baixo. O que mais o assustava era a tranqüilidade das pessoas diante de tão absurdos comportamentos. O mundo inteiro parecia haver enlouquecido e ele, diferente do resto das pessoas à sua volta, não tinha a menor idéia de como agir.

Entrou no prédio onde trabalhava e encontrou Agenor, o ascensorista, vestido de Super Homem. Nem comentou nada.

- Olá...O andar de sempre, senhor? - perguntou com um sorriso no rosto
- Claro, Agenor.
- Certo! Para o alto e avante!

Entrou no seu escritório e encontrou seu chefe sentado à sua mesa. Tinha uma cara inexpressiva e para deixá-lo mais apreensivo, não aparentava ter nenhum comportamento estranho. O mesmo terno sóbrio, o mesmo penteado antiquado e a mesma pasta 007, essa ao lado da mesa, no chão.

- Olá...Atrasado de novo, não? - Disse o chefe, mais jovialmente do que jamais vira
- Chefe...Se eu contar o que passei hoje, o senhor não vai acreditar...
- Sei disso, sei disso. É por isso que agora tenho outras formas de impor a disciplina aqui na firma. Você será o exemplo, por estar sempre atrasado.

Assim que terminou de falar, o chefe levanta da cadeira empunhando um machado, que estava escondido por baixo da sua mesa. Ele não estava crendo no que via, mas diante das circunstâncias, achou melhor correr. O chefe deferiu um golpe e errou por muito pouco. Tinha dado muito azar: porque logo o chefe dele havia virado um louco perigoso?

Correu até o corredor do prédio e apertou o botão do elevador. Não pode esperar por muito tempo. O chefe logo havia surgido na porta, com a mesma cara inofensiva e com o mesmo machado ameaçador. Ele desistiu da espera e voou em direção à saída de emergência. A porta, para sua sorte estava aberta. Ele entrou e rapidamente a trancou por dentro.

Mas a sorte dele durou muito pouco. Ao fechar a porta, ele tentou dar uns passos pelo escuro e notou, da pior maneira, que não havia onde pisar. A saída de emergência levava a um precipício.

26.8.03

O Banho


A água quente do chuveiro ajudou Elaine a relaxar. Imediatamente ela lembrou do que o seu cabeleireiro falou sobre a temperatura da água com a qual ela costumava lavar os cabelos. Ele sempre reclamava que no inverno, banho escaldante é um terror para o couro cabeludo, escamava a pele toda e pronto, eis a caspa. Elaine lembrou que tinha que colocar na lista de compras o shampoo de lavagem profunda. E logo depois se recriminou desses pensamentos. Pensar em vaidade numa hora dessas era horrível.

Não se apressou no banho. Sabia que todos a esperavam na sala, mas esse era seu primeiro momento consigo mesma desde...quando mesmo? Nem ela se lembrava. Desde que o estado do Rogério se agravou, todos sempre estavam à sua volta, se não para confortá-la, para estar próximo ao marido doente. Ela sabe que alguns eram sinceros no apoio que ofereciam, eram realmente seus amigos. Outros, infelizmente a maioria, eram aqueles que estavam por perto para, de alguma forma, se aproveitarem do espetáculo que se tornou a doença do esposo. Era inevitável. Ser casada com um homem famoso tinha suas desvantagens.

Desde o dia em que descobriu que sua morte era questão de tempo, Rogério havia se decidido a não ser um moribundo de hospital, não queria ser uma dessas figuras esquálidas, andando de bata, expondo de forma mórbida sua morte lenta. Ficaria em casa. Tinha dinheiro para transformar seu lar em uma UTI, se assim desejasse. E em casa, conseguiria também manter a imprensa afastada por mais tempo. Os repórteres até que demoraram a descobrir o que havia com Rogério. Isso talvez tenha prolongado um pouco sua saúde.

Elaine se ensaboava com cuidado, aplicando delicadamente o sabonete líquido na esponja, sem pressa. Queria se limpar dos flashes dos paparazis que a perseguiram nos últimos meses toda vez que ia ao supermercado, se livrar do cheiro dos falsos apertos de mão e dos abraços dos amigos de ocasião que lhe impregnava a pele. Ela sabia exatamente quem eram os - muitos - urubus de defunto e quem eram os - raros - amigos que estavam do outro lado da porta do banheiro. Nesse momento, ela não queria ver nenhum deles. Nem os que vieram para aparecer nos jornais com seus Ray Bans pretos nem os que vieram confortá-la.

Saiu do chuveiro e se secou com o mesmo cuidado com que tomou banho. Lembrou-se de como Rogério, ainda são e forte, a secava, também lentamente, mas com força, quase arranhando sua pele. E gostava de ver a pele dela vermelha, dizia. Muitas vezes, terminavam fodendo ali mesmo, no banheiro, o que os obrigava a tomar outro banho.

Eu era feliz. - Pensou Elaine.

Colocou o roupão dado de presente pelo marido em um tempo em que ambos eram felizes. Se olhou no espelho defronte a pia e viu o quanto os últimos acontecimentos haviam acabado com ela. Estava sem cor, com olheiras. Amarrou os cabelos num coque, do jeito que Rogério adorava, deixando a mostra seu longo pescoço. Pegou o perfume que ela adorava colocar porque ele adorava sentir seu cheiro nela. Desistiu. Pegou a loção pós-barba dele, que estava pela metade e agora dificilmente passaria dessa marca. Queria estar com o cheiro dele no corpo. Passou pelo corpo a loção e vestiu o vestido preto que ela nunca esperou usar. Se olhou no espelho, se viu pela primeira vez como viúva e chorou.

Elaine secou as lágrimas, abriu a porta e saiu, pronta para sua nova realidade.

19.8.03

Exemplo


Faça o que eu digo, não faça o que faço. Digo isso com propriedade. Sou dessas pessoas que recheiam o inferno, cheio de boas intenções. Mas não me peça para realizá-las. Siga meus conselhos, é o meu conselho, mas não me tome nunca como exemplo. Sou fraco, completamente viciado em vícios.
Aliás, não gostaria de servir de exemplo nunca. Nem que eu fosse um poço de virtudes. Vejo os exemplos de pessoas exemplares. A expressão servir de exemplo muito raramente é benéfica para quem foi o alvo dela. Geralmente, os exemplos são realmente alvos: de tiros, vinganças, punições. Não. Eu não quero ser exemplo. Não quero a responsabilidade de guiar ninguém, nem pela trilha da vitória nem pelos becos da derrota. Sigo assim, mestre dos meus defeitos, mas apenas meu mestre.

Não procuro seguidores.

18.8.03

Desistência


Não desisti, estou apenas ocupada
Não desisti, estou preso no engarrafamento
Não desisti, estou estudando pras provas
Não desisti, isso é mostrar o meu valor
Não desisti, quero que sintam minha falta
Não desisti, estou sem inspiração
Não desisti, o governo é que me atrapalha
Não desisti, apenas não compactuo com isso
Não desisti, tenho a vida toda pela frente ainda

Desistir não é coisa de macho
Desistir é pros covardes
Desistir é mostrar fraqueza
Desistir é trair meus ideais
Desistir é ir contra minha natureza
Desistir é uma merda
Desistir não está nos meus planos
Desistir nunca; render-se jamais!
Desistir é morrer

Quanto a mim
Desisto quando assim me aprouver
Não sou afeito a pontas de facas
Os socos que eu dou eu escolho onde

Eu não desisto, é o que dizem
Quero ver o culhão pra aguentar
Quero ver a coragem em suas caras
Quero ver não encherem o saco
Quero ver sua teimosia
Quero ver a falta de tino

Agora, vai.

14.8.03

Duas histórias telefônicas



- Hmmm...Não adianta ligar pra mim que eu não estou em casa.
- Nem em sonho eu ligaria para você.
- Que isso! Não seja tão radical, amor. Já que começamos num papo telefônico, que tal me dar o seu número?
- Começamos o que? Eu nem te conheço, amigo!
- Hmmm... Amigo. Como pode não conhecer um amigo? Não é bem o que eu queria, mas já é um começo...
- Sai fora, cara...
- Me dá seu número que eu saio.
- Eu não tenho telefone.
- Serve o número do celular que você está usando agora.
- Meu fone tá cortado.
- Eu pago a sua conta...
- Você não desiste?
- Nunca.
- Bom...Jura que você sai fora se eu te der meu número?
- Se você prometer me atender, eu juro.
- Tá bom. Tá aqui.
- Hmmm...Bárbara. Nunca vi um nome tão condizente com seu dono.
- Olha. Você prometeu ir embora. Estou esperando um cara.
- Tá bom, tá bom, eu vou. Você vai me atende, né?
- Vou, agora sai fora. Antes de ir, uma coisa. Melhore seu repertório de cantadas. Ele é horrível.
- Você me ensina umas novas quando eu te ligar.
- Tá bom.

(Dia seguinte)

- Alô?
- Alô? Bárbara?
- Ahn...Não. Aqui é a Judith.
- Judith? Não é a Bárbara?
- Não tem nenhuma Bárbara nesse telefone.
- Jura? Não é você Bárbara??? Você prometeu falar comigo.
- Não...Aqui é a Judith, já disse. Que número você ligou?
- 9999-8877
- É esse mesmo. Mas eu não conheço nenhuma Bárbara...
- Você deve ter me dado o nome errado e não se lembra...eu sou aquele cara...
- Não. Eu nunca faria isso. Aliás, prum cara chato como você, eu daria um fora logo.
- Que isso, Judith!!! Eu fiz algo pra te deixar tão chateada assim?
- Não, mas você está me incomodando. Até mais...
- Não desliga, Ju...Vamos conversar...Esquece essa tal de Bárbara e vamos falar de nós. Você mora onde, Ju?
- Não me chame de Ju! Não te dei essas intimidades! Eu nem te conheço, amigo...
- Hmmmm...Amigo? Como pode não conhecer um amigo? Não é bem o que eu queria, mas já é um começo..

(***)

- Como assim, "terminar"??? Nós começamos a namorar essa semana!
- Não interessa. Você não se preocupa o bastante comigo.
- E em uma semana você descobriu isso? Olha, nem estou discordando...Mas queria saber que diabos eu fiz pra você pensar isso de mim.
- Porra. A gente se conhece há um mês e você repetiu cinco vezes uma coisa detestável.
- CINCO VEZES?!?! O que foi, afinal de contas?!?!?
- É a quinta vez que você perde meu telefone...
- Ahn?
- É isso o que você ouviu. Você perdeu meu número 5 vezes em um mês...
- E não sei o que é mais ridículo. Você contar esse tipo de coisa ou achar isso relevante o bastante para terminar um namoro.
- O fato em si não é relevante. Mas isso me dá uma mostra do que você é. Se você em um mês não conseguiu decorar o número da sua namorada....
- Ah, deixa de ser boba! Se você me conhecesse melhor, saberia que eu tenho uma memória péssima pra números.
- Sei, sei...garanto que você sabe de cor quanto foi o último Fla x Flu...
- 5 x 2, num esculacho do mengão...Gols de...
- Tá vendo, tá vendo!!!
- Merda! Futebol não vale! Se você me conhecesse melhor, ia saber que a única coisa que eu sempre decoro são as estatísticas do meu time.
- E daí a gente percebe quais são suas prioridades...
- Que bobeira isso tudo! Quer dizer que, se ao invés de te pedir o número eu ligasse pro 102, nós não estaríamos tendo essa conversa?
- Provavelmente não...
- Tem certeza que quer terminar um namoro porque eu não peguei a lista telefônica?
- Tenho...
- Se é nesses termos, beleza. Vou embora...
- Pode ir, pode ir...E nem adianta me ligar depois!
- Ah, pode deixar...Eu não sei seu número mesmo....

12.8.03

Herói


O sujeito na frente do herói, sujo, gordo e mal vestido, quem diria, era seu carcereiro. Apesar da revolta, nosso herói não se abateu. Sabia que no momento propício, fugiria da cadeia e esse seria o primeiro a morrer.

- Tira a roupa. Inteira. Até as meias e a cueca.

Nosso herói tirou e teve que se sujeitar a um revista pra lá de minuciosa. O herói queria esmurrar o carcereiro ali mesmo, naquele momento. Não seria uma atitude muito inteligente, havendo um guarda armado ali. E se tinha um defeito que nosso herói não tinha, era estupidez.

- Você vai ser o primeiro a morrer - disse o herói
- Vamos ver - respondeu o carcereiro, rindo e batendo na protuberante pança.

O carcereiro conduziu o herói pelos corredores fétidos da cadeia, segurando-o pelo pescoço, um guarda escoltando ambos. Enquanto o rotundo agente penitenciário abria a cela, nosso herói observou o infecto cubículo: 3 x 3, escuro e repleto da escória da sociedade. Umas 20 pessoas se amontoavam num lugar que seria pequeno para 5. O herói foi jogado dentro da cela, com um safanão.

- Se acomoda aí, meliante. Vai pensando em como acabar comigo - o carcereiro riu novamente, mostrando os dentes falhos e amarelos.

Nosso herói dirigiu-lhe o olhar mais malévolo que podia. Depois olhou do alto para seus "companheiros" de cela, demonstrando claramente que não pertencia ao grupo formado. Ele logo sairia dali. E não iria se misturar com tal gente. Encontrou uma brecha no mundo de gente que estava dentro da cela e sentou-se no chão, sem abrir a boca.

Pegou um cigarro pôs na boca. Não tinha isqueiro, mas não pediu fogo a ninguém. Um cara baixinho e desnutrido, visivelmente nordestino, ofereceu fogo ao nosso herói. Sem falar nada, o herói pega o cigarro acesso do magrelo e acendeu o seu, encostando a brasa no seu cigarro apagado.

- E aí, cara? Tá na jaula por que?

Nosso herói olhou com asco para o preso. Se dignou a responder pelo favor feito por ele.

- Por uma traição...que será vingada em breve, assim que eu sair daqui.
- E você acha que vai sair daqui em breve?
- Eu não acho. Eu vou.
- Você é muito marrento, sabia, mermão?

Quem disse isso foi um negro forte, mais de dois metros de altura. Nosso herói olhou para ele como se ele não passasse de um inseto. Acabara de encontrar um substituto pro carcereiro. Esse seria o primeiro a morrer.

- Ah...Sou?
- É sim. É melhor tu abaixar a bola, amigo.
- Eu não sou seu amigo, e muito menos seu irmão. E se eu fosse você, ficava quieto.

Ao ouvir isso, os presos em volta do nosso herói se afastaram dele, como um bando de ratos diante de um gato. O herói sentia o cheiro do medo deles, e sentiu ainda mais nojo daquelas pessoas, que além de criminosas, eram covardes. O negro se aproximou do nosso herói, que se levantou.

Mas, antes de estar de pé, nosso herói levou um murro no meio do rosto, que o jogou direto na parede. Ele ficou atordoado, e não esperava por isso. Antes que conseguisse se aprumar, o negro acertou-lhe um soco no estômago, que o jogou definitivamente no chão. O herói estava tonto, a visão estava turva e a gritaria dos outros presos não o ajudava em nada para recuperar o equilíbrio. A joelhada no rosto, levada em seguida, foi o tiro de misericórdia. Nosso herói, estava ao chão, prestes a desmaiar. A última coisa que nosso herói sentiu foi a aproximação do negro e seu pé, esmagando sua traqueia, como se fosse feita de papelão.

O corpo do nosso herói foi tirado da cela horas depois, quando já estava prestes a feder. O carcereiro, exibindo seus dentes podres, veio rindo. Já sabia qual seria o destino do "corajoso".

- As vezes, confiança demais faz mal - pensou, rindo, o carcereiro - As vezes, o "herói" morre no começo da história...

4.8.03

Beleza



- Eu falei que ela retornaria aos 20 anos.
- E o que ela disse?
- Ora, minha filha....Ela disse amém! Que mais ela poderia falar?

Era triste para um estrela do porte de Diana Serpa ter esse diálogo numa clínica vagabunda, se preparando para uma sessão da mais nova substância rejuvenecedora do mercado. Para ela, que já havia sido a triz televisiva mais famosa do país, aquilo era o fundo do poço: ter que se sujeitar a estampar com seu rosto um outdoor numa rua escondida de Botafogo em troca de um paliativo contra as marcas do tempo. Daí para baixo, Diana não sabia mais o que poderia acontecer. Pelo menos diziam que os efeitos da nova droga eram melhores que os do botox.

Como era de se esperar, Diana tinha aquela vaidade que só quem sofreu anos com o assédio de fãs e jornalistas pode ter. O estrelato tinha sido um fermento para seu ego, que não era dos menores. Sua beleza clássica lhe rendeu fama e dinheiro. Se tinha talento? Bem, talento é uma outra história. Ela sabia que enquanto mantivesse a boa forma ainda estaria em voga. Se dissessem a ela que, apenas 6 anos depois de ser considerada a quarentona mais bonita do Brasil - ela já contava com 43 anos, mas isso era um segredo de estado - teria uma derrocada tão grande, Diana daria uma daquelas gargalhadas de novela na cara da pessoa.

- Ah, os cinquenta....Que merda! - Pensava.

Voltou para casa, o rosto meio dormente pelas agulhadas. Sabia que a pequena recauchutada iria ajudar. Já tinha até um plano. Depois de dois dias, iria visitar Carlão Moreno, velho diretor de TV e um dos manda-chuvas daquela grande emissora. Ele sempre tentou ter um casinho com ela. Infelizmente, para ele, quando ela não precisava de ajuda e quando ele, mesmo que Diana precisasse, não poderia fazer muito. Mas agora, os tempos eram outros. E se ela precisasse fazer uma segunda chamada no "teste do sofá", melhor que fosse com alguém que tivesse algum real interesse nela.

Não quis se olhar no espelho, não naquela hora. Já estava cansada de ver algo desagradável quando via seu próprio reflexo. Agora, em pouco tempo, ela estaria bela de novo. Como diziam - no seu tempo? - em pleno viço.

Acordou no dia seguinte e antes de abrir os olhos já estava se apalpando. Viu que não estava inchada e foi logo colocando uns cremes recomendados pelo esteticista homossexual que a atendeu na clínica. Tomou uma ducha, sem molhar o rosto, ainda empastelado pelos cremes. Saiu do banho feliz. Viu seu rosto no espelho, branco com as pastas, e escovou os dentes. Queria que o creme ficasse o máximo de tempo possível agindo. Colocou um vestido sexy e se achando já preparada, resolveu visitar o Carlão nesse dia mesmo. Ligou para ele, marcando a visita. Ele já estava agindo como uma raposa velha da televisão, deixando Diana esperando uns cinco minutos no telefone e depois perguntando "quem era mesmo?" , como se tivesse se esquecido da mulher que faria de tudo para levar para cama a menos de 2 anos.

Ele tinha uma agenda muito cheia hoje - "sabe como é vida de diretor!" disse ele, arrogante - então ela tinha cerca de uma hora para chegar no seu escritório. Tinha que correr, não queria dar motivo para ver a porta fechada na sua cara por causa de alguns minutos atrasada. Pegou um kleenex e foi tirando a máscara facial no elevador mesmo, e foi correndo para o carro. Foi pelo espelho retrovisor que viu pela primeira vez os efeitos do nova substância . Não estava como esperava, pelo menos no pequeno pedaço de rosto que via toda ver que olhava para o retrovisor. Talvez tivesse sido melhor esperar os dois dias mesmo. Mas agora não tinha mais jeito. Já tinha marcado com o Carlão e não adiaria mais sua volta ao sucesso.

Chegando nos estúdios onde Carlão tinha seu escritório, se viu inteira pela primeira vez: o reflexo no espelho do elevador mostrava que ela estava, se não com a mesma cara, podia estar até um pouco mais cansada, com mais rugas que antes. Se desesperou. Mas não poderia fugir. Havia chegado à sala do Carlão.

A secretária a anunciou e depois disse que esperasse um pouco. Ela sabia que Carlão faria isso, era o comportamento típico de quem tem o poder de ajudar alguém como ela. Ficou lá, pensando se deveria mesmo fazer isso com a cara que estava. Não tinha mais como recuar. Seria uma afronta para o "grande diretor" e essa porta estaria definitivamente fechada se ela fizesse essa desfeita.

- Diana, minha querida! Você está linda!!! Entra, entra! Desculpa te fazer esperar...Vida de diretor, sabe como é!

O chavão proferido como uma forma de autoafirmação irritava profundamente Diana. Carlão estava mudado. Mais calvo, mais gordo e muito mais repugnante do que era. Se soubesse que teria que passar por essa situação, teria tido o casinho com ele naquela época. Pelo menos ele tinha cabelos, anos atrás.

O encontro tinha sido horrível. Carlão parece que não tinha perdido sequer uma fração do interesse em Diana, apesar de ter à sua disposição milhares de garotinha tenras e durinhas dispostas a tudo para ter uma chance na TV. Os dois saíram para almoçar e depois aconteceu o final mais previsível para a trama: foram para um motel. Apesar dela se sentir lisonjeada pela vontade demonstrada por Carlão, bastava ela olhar para o espelho no teto para se ver feia e pior, se sujeitando a outra humilhação, ao transar com um homem que não a interessava em absoluto. Conversaram sobre seu novo futuro televisivo depois da cópula.

- Queria muito, muito mesmo, te ajudar, Di...E até posso. Só não sei se você vai querer essa ajuda.
- Não me chame de Di, que eu detesto - "olha a intimidade desse porco" , pensou - Fala que ajuda é essa, que eu te respondo se aceito ou não.
- O elenco da próxima novela já está fechado, meu bem. Só sobrou um papel, a da vilã...
- Não é muito meu estilo, mas eu topo...
- Calma, Di...Eu não terminei. O papel sobrou porque a Zora Assumpção não aceitou. A personagem deve ter uns 40, 45 anos. E ela tem uma filha adolescente. Não sei se se encaixa com seu perfil...

Ela estava aturdida. Não sabia se ele estava sendo irônico, ou se ele realmente achava que ela não aparentava ser a mãe de uma adolescente. No fundo, ela não queria ser a vilã da história. Não sabia se seus fãs, acostumados com seus papéis de heroína, gostariam de vê-la fazendo maldades na tela. Mas isso era até suportável, e se atuasse bem, poderia ser uma volta por cima triunfal. Com certeza a mudança de perfil faria com que as capas de revistas voltassem a aparecer. Mas o lance da filha adolescente, realmente a preocupava. Não queria, de forma alguma, se associada a imagem de mulher de meia idade.

- Não tem nenhum outro papel, Carlão?
- Não, Di. Não um que se encaixe com você. Se você topar fazer a vilã, está tudo certo. Você começa a ensaiar amanhã mesmo.

Era um dilema. A necessidade de voltar à TV era enorme. Mas se vendo deitada, ao lado de um cara que a enojava, vendo seu corpo lentamente se degradar, suas carnes ficarem flácidas e as rugas que o tempo se encarregou de por em seu rosto a fizeram tomar a decisão. Já que ela sabia que sua decadência era uma realidade, não deixaria que seus fãs percebessem isso.

- Não, obrigado. Você só me ofereceu esse papel por despeito. Está me achando velha.
- O que?!? Claro que não, Di... Você está ótima! Não aparenta a idade que tem. Você está com quanto? 45?
- Só um sujeito ridículo como você faria esse tipo de pergunta para mim. Não preciso da sua esmola nem da sua irônia. Sei que estou velha. Olhe para o teto. Pode tentar me enganar, mas o espelho não mente. Você já conseguiu sua trepadinha com seu antigo fetiche. Não vai conseguir minha gratidão por causa desse papelzinho de merda.
- Que isso, Di...Você está sendo grosseira. E eu realmente acho...
- Não quero saber o que você realmente acha. E, pela última vez, nunca mais me chame de Di.

Diana pegou suas roupas, se vestiu e saiu, ignorando os argumentos do Carlão. Ele jurou que era verdade que estava achando ela remoçada, mas ela não lhe deu ouvidos. Voltaria à clínica e veria o que ia fazer de efetivo para parecer mais nova. Seu rosto, retocado por programas de computador, já estava na outdoor da clínica. Ela queria ter o mesmo rosto nela.

(...)

- Mas você está ótima, Diana.
- Pare, Walter. Eu não sou cega. Quero uma retocada total. A primeira sessão não adiantou nada, estou me achando até mais velha.
- Você está paranoica, honey... Você rejuvenesceu uns 15 anos!
- Mentira! Quero mais uma sessão.
- Mas você não precisa!
- Walter... Eu quero outra... Agora!

Walter já tinha visto outras clientes reagirem assim, mas nunca tão rápido e nunca com tanta veemência. Achava até arriscado ou nova sessão assim, tão em cima da outra. A beleza que Diana havia recuperado poderia se perder, se o efeito do substância ficasse muito artificial, pelo exagero. Mas ela estava irredutível. Faria a aplicação, já que ela fazia tanta questão.

- Diana, eu acho que você está ótima. Mas se você acha que precisa...
- Eu não acho. Eu preciso.
- Tudo bem. Mas se ficar artificial, a culpa não será minha. Você já é uma mulher madura, e mesmo que esconda muito bem a sua idade, as pessoas têm uma noção de quantos anos você tem. Não adianta você ficar com a aparência de uma menina de 20 anos.
- Eu estou com cara de 60, e não de 20. Chega de papo e pegue as agulhas.

Walter fez as aplicações, muito a contragosto. Disse para ela repousar e que dessa vez ela esperasse o efeito antes de tomar alguma atitude impensada. Recomendou que o chamasse para avaliar os efeitos da nova aplicação. Ele iria direto para casa dela, assim que ela ligasse.

No dia seguinte, Diana acordou e seguiu o mesmo ritual dos cremes. Dessa vez, deixou que eles ficassem o tempo que Walter havia recomendado, deixando que eles tivessem o atuação necessária. Ouviu os recados da sua secretária eletrônica e ouviu uma mensagem do Carlão. Queria falar com ela novamente, com calma. Pediu que ela entrasse em contato com ele. Ela voltou para cama, ignorando o recado. Dormir a deixaria mais calma e seria bom para sua pele.

Acordou algumas horas depois e foi direto ao espelho. Tirou o creme do rosto e teve um choque: estava encarquilhada, com os olhos rodeados por pés-de-galinha e com todas as marcas de expressão impressas como navalhadas no rosto. A visão aterradora quase a matou de desgosto. Resolveu que se tinha que matar alguém seria o Walter, que deve Ter feito algo de errado na aplicação. Iria ligar para ele imediatamente, e se ele não conseguisse dar um jeito naquilo, trucidaria "aquela bicha louca" com as próprias mãos.

- Walter!!! Venha imediatamente aqui pra casa. Algo deu errado. Traga as seringas.
- Anh? Diana? O que houve, meu amor? Fala...
- Cala a boca, Walter. Vem pra cá AGORA...

Walter sabia que essa reação seria possível. Imaginou que ela devia estar se achando muito esticada, nova demais para sua idade. Levou as seringas só para deixá-la menos nervosa e também uma revista dos anos 70 com ela na capa. Compararia a foto com o reflexo no espelho e convenceria que era melhor ser uma mulher de meia idade com cara de adolescente que uma garota com cara de velha.

Ao chegar no apartamento da Diana, se espantou com ela. Por baixo da cara enfurecida dela, via que ela estava maravilhosa, tão bonita quanto era há décadas. Sentiu um orgulho imenso daquilo, que decididamente era sua melhor criação. Com aquela exuberância, em breve ela estaria de volta à TV e ele iria ficar rico com ela, seu melhor mostruário.

- Walter!!!! Olha o que você me fez!!! Eu estou horrenda!!!
- Como assim horrenda? Nunca vi você tão bonita como hoje! Eu te transformei numa obra-prima!!!
- Obra-prima?!?!?! Olha essas rugas, seu viado! Trate de dar um jeito nisso ou eu te mato!!! Eu juro!!!!
Walter não entendeu o porque da brincadeira. Ela estava linda como há muito e vinha com esse papo de que estava velha? Não se via sequer uma ruga em todo o seu rosto. Ficou assustado. Diana nunca primou pelo talento, mas aquela representação de ódio estava perfeita. Dava até medo.

- Trouxe as seringas?

Walter queria ver até onde ia o delírio da Diana. Mexeu na maleta e invés das seringas, pegou a revista que tinha guardado para esse momento.

- Olha aqui, Diana. Você está mais bonita que nessa revista. E aqui você não tinha nem 25 anos! Nunca vi um tratamento dar tão certo como o seu.
- Você está cego ou está brincando comigo, sua bicha? - Diana estava completamente possessa, agarrando Walter pelo braço com muita força - Em que me pareço com essa foto? Nem parece que sou eu, ou parece que tirei essa foto há 50 anos!

Walter se desvencilhou do aperto e levou Diana até o espelho que cobria uma das paredes da sua sala. Encostou a revista ao seu rosto e apontou no reflexo.

- Diana, você está com algum problema. Olha a foto! Olha seu reflexo. Na foto você já começa a ver uma ou outra ruguinha aparecendo. Você agora está perfeita!
- Não!!!! Você está cego!!! Você vai me aplicar outra sessão agora...
- Nunca! Você está louca! Tem que procurar um tratamento. Eu me recuso a estragar um rosto tão belo...

Diana não conseguia ver o mesmo que Walter. Dando um empurrão no esteticista, correu até o quarto e voltou com uma arma.

- Walter. Eu não posso ficar com essa cara idosa. Não mesmo. Você vai aplicar outra sessão em mim, nem que eu tenha que te dar um tiro.
- Diana... Você não está bem. Precisa de ajuda, urgente....
- Sei que preciso. E é você quem vai me ajudar. Coloca agora...Prepara as seringas. Já.

Walter não sabia se Diana falava sério ou não, mas não queria pagar pra ver. Se ela não conseguia ver que estava na melhor das formas, azar o dela. Preparou as doses, a instalou numa poltrona confortável e começou as aplicações. Se sentia como um estudante de pintura retocando a Mona Lisa. Era um pecado mexer em algo tão perfeito como o novo rosto da Diana. Sabia que corria o risco de ser morto por aquela maluca, se o resultado final não a agradasse, mas mesmo assim, movido por uma curiosidade implacável, decidiu que ficaria até ver o efeito final daquela dose extra. Para evitar que ela ficasse muito agitada com a expectativa dos resultados, ministrou em Diana um calmante, sem que ela percebesse.

Depois que Diana adormeceu, Walter ficou um tempo olhando para ela, procurando entender o que se passava naquela cabeça. Por que será que ela não conseguia ver sua própria beleza e por que a fixação em dizer que estava velha, quando o oposto era evidente? Diana podia se considerar uma felizarda. Apesar de aparentar agora ter uns 20 anos a menos do deveria, ela não estava nem um pouco ridícula, como aquelas peruas loucas por uma cirurgia plástica que parecem uns Frankesteins, com corpo de 60 e carinha de adolescente.

O esteticista se perguntou se a tal nova substância havia sido suficientemente testada antes de ir a público. Walter nunca soube de um caso de efeito colateral, e certamente o medicamento não teria uma contraindicação como essa, de fundo psicológico. Sim, de fundo psicológico, porque o caso da Diana era de loucura. Walter pensou em pesquisar sobre isso no dia seguinte, antes de cair no sono.

(...)

Walter foi acordado abruptamente com um grito. De um pulo, levantou, temendo pela arma que deveria estar na mão da Diana essa hora. Correu até o quarto da atriz e a viu chorando, diante do espelho. Ela estava, inacreditavelmente, mais bonita que na noite anterior.

- Agora não tem mais jeito, Walter. Você e essa merda que você colocou na minha cara acabaram com a minha beleza - falou Diana, entre um suspiro e outro.

Walter não conseguiu responder. Não por causa da loucura evidente da mulher, mas porque estava extasiado pela sua beleza. Nunca, em toda vida, havia visto uma mulher tão linda. Por um momento, ele se viu apaixonado por Diana, ignorando sua tendência sexual, definida há tanto tempo.

- Diana...Você...- balbuciou
- Eu o que, Walter? Eu estou acabada. Não há mais nada a se fazer....

Antes que Walter pudesse sair do seu transe, Diana apontou a arma que segurava na boca e disparou. Depois do estampido seco, imperou o silêncio no quarto.

(...)

Diana gostaria de ver seu próprio velório. Milhares de fã e alguns poucos amigos apareceram à concorrida cerimônia fúnebre. A imprense marrom, sedenta por escândalos, cobriu o acontecido com alarde. Depois de tanto tempo, Diana Serpa voltava às primeiras páginas. Infelizmente, não da forma que ela desejava.

Um dos jornalistas presentes encontrou Carlão, o diretor de TV, que, de óculos escuros, chorava discretamente em um canto da capela. Vendo que ele era a personalidade mais famosa do recinto, foi entrevistá-lo.

- Então, Sr. Carlão. Quando foi que o sr. viu Diana pela última vez?
- Foi anteontem. Estou chocado. Não consigo acreditar no acontecido.
- E sobre o que tratou o encontro? Um papel para a estrela na próxima novela?
- Isso, isso. Estávamos negociando.
- Uma perda incrível, não?
- Com certeza. Diana tinha um talento incrível. E estava bonita como nunca.
Com certeza, com certeza. Bem...obrigado, Carlão.
Claro, claro...Não foi nada.

Ao fim da entrevista, os dois continuaram conversando.

- Realmente, fazia tempo que a Diana não aparecia, não tinha como sabermos como ela estava em forma.
- É. Mas eu sou um diretor que sempre procura o melhor pra minha programação. Sabia que Diana estava linda. Ia ser a volta por cima dela.
- Muito azar. Mas por que diabos será que ela, quando ia ter seu retorno triunfal, meteu uma bala na cabeça?
- Não faço ideia...
- Bom...Pelo menos o enterro está lotado. Ela teria gostado disso. E, apesar de ter estourado os miolos, manteve o rosto intacto...
- Pois é. Ela está linda. Mais linda do que nunca. Não parece ter mais que 20 anos...