28.6.03

Sobre o fogo extinto


Eu queria ter um amor calmo, sem as exigências emocionais que as paixões tórridas trazem, sem os "direitos & deveres" dos relacionamentos passionais, sem o desespero que a ausência causa. Mas me foi impossível. Agora estou morto. Irremediavelmente.

Você se foi. E nosso amor flamejante se extinguiu, para você. O amor é máquina que precisa de combustível para sua fornalha, ou ele se apaga. Em algum momento, você acordou e não viu mais as achas de lenha que alimentavam nossa paixão. Assim que você partiu, me deixou aqui, mero amontoado de cinzas.

Agora eu vivo procurando pelos sinais imperceptíveis da nossa antiga fagulha, catando suas gimbas de cigarro em cinzeiros esquecidos, fazendo de tudo por uma só gota de saliva que tenha saído dos seus lábios. Mas não resta nada. Nem o pó das coisas esturricadas.

Nem o calor das brasas adormecidas.

Agora que o fogo se apagou, não tive nem o privilégio da quietude dos cremados ou a tepidez da paz interior. Apenas troquei a fogueira da paixão pelo inferno da saudade.

26.6.03

O Chute


Eu chutei essa cidade. Chutei-lhe a boca cheia de dentes perfeitos, chutei seus lábios famosos, deformando-os, imperceptivelmente é verdade, mas a deformidade que lhe deixo é perene.

Assim como sua marca, em mim, é eterna. A cidade me socou o estômago com toda sua força e vigor. Meu chute foi meramente uma reação à sua violência explícita, sua voracidade implacável. O vomito provocado por tão forte golpe deixou exposto o que havia de pior em mim; o que teve de revelador teve de purificante.

Parto agora da cidade e saio agredindo-a. Não há ressentimentos, contudo. Aprendemos sempre, seja da forma mais sutil ou da mais contundente. O chute que desferi em sua face foi por gratidão.

24.6.03

O dia seguinte


Acordei e o dia
Já era dia
Como todos os dias
Acordei e a vida
Já estava vivida
À revelia
Acordei e só havia
Uma medida
Sorri pro dia
E cortei meus pulsos com doce
ironia

23.6.03

O Egoísta


Nicanor era o sujeito mais egoísta da turma. O caso dele nem era de sempre pensar primeiro nele. Ele só pensava nele. As outras pessoas não tinham a menor importância. Eram meros coadjuvantes, em um mundo em que a única coisa que tinha relevância era o seu próprio umbigo.

– Nicanor, Nicanor...Deixa de ser assim! Quase ninguém mais liga pra você, vai acabar ficando sem amigos – disse certo dia Deodato, um dos poucos que ainda gostavam dele.
– Deodato, amigo meu é dinheiro no bolso! Tô nem aí. Não dependo deles pra nada.
– Nicanor...Todo mundo precisa de amizades. Nenhum homem é uma ilha. Esse seu egoísmo ainda vai te trazer problemas.
– Eu não sou egoísta, Deodato. Eu apenas tenho como prioridade tomar conta dos meus assuntos. E além do mais, por que eu tenho que me preocupar com os outros? Os outros não podem se preocupar com eles mesmos? Eu já tenho muito trabalho cuidando de mim.
– Pô...aí você ainda tá parecendo preguiçoso, além de egoísta.
– Deodato, não encha meu saco!
– Tá bom, tá bom, sem estresse. Mas você não conhece aquela lenda oriental sobre o céu e o inferno? Segundo essa lenda, o céu e o inferno são lugares idênticos. As almas ficam todas em uma cela gigantesca, completamente gradeada. A única coisa que serve de alimento para essas almas é uma montanha de arroz que fica na frente da grande cela. Todo esse arroz fica fora do alcance das almas, mas o criador deu a todas elas palitos, desses de comida japonesa, com os quais eles conseguiam alcançar a comida. E é aí que vem a diferença entre o paraíso e a expiação eternos. No inferno, cada alma tenta pegar os grãos de arroz e colocá-los na própria boca. Mas como os palitos são muito longos, eles não conseguem chegar perto o bastante para comê-los. Essas almas viverão o resto da eternidade com fome. No céu, ao contrário, cada alma que pega seu grão de arroz dá sua porção de comida à alma do seu lado, e assim todos comem e vivem felizes.
– Que merda de história! O que significa e em que se aplica à nossa conversa?
– Não seja burro, Nicanor! Ajudar os outros é vital para uma vida melhor, para quem é ajudado e para quem ajuda. Sozinho, você é fraco. Num time, você é forte.
– Pra começar, meu time sou eu e ponto. Além do mais, detesto arroz puro e preferiria ficar com fome pelo resto da eternidade a me ater a essa dieta ridícula. E outra coisa: se o céu é essa mixórdia de ficar preso passando comida pra boca dos outros pra todo o sempre, dispenso solenemente. Que paraíso mais sem graça!
– Porra, Nicanor, você não entende nada mesmo...

Pois foi passando o tempo, Nicanor ficando cada vez mais isolado e o que é pior, mais feliz. Realmente não sentia falta de companhia. Ele se bastava. E com isso ele foi vendo seu já restrito círculo de amizades definhar até não sobrar mais ninguém. Nem mesmo o Deodato. Seu isolamento, com o passar dos anos, foi mudando seu comportamento, naturalmente. Como não havia pessoa que pudesse avisá-lo da sua alteração, a mudança era imperceptível para ele. Tinha adquirido ojeriza ao desprendimento humano. Qualquer demonstração da fraternidade entre as pessoas o encolerizava. Para ele, toda forma de boa ação tinha por traz alguma má intenção camuflada. Ele tinha se tornado um sociopata em potencial. E para ele, tudo estava normal, se achava até mais lúcido do que nunca. Ele nunca iria imaginar que espécie de problemas essa atitude lhe causaria.

Caminhava Nicanor pela praia num dia chuvoso. Andava rápido, para evitar os pedintes, aos quais tinha particular aversão. Apesar de bonitas, o calçamento em pedras portuguesas das praias cariocas não são muito práticas, e úmidas, se tornam escorregadias. Ao avistar um grupo potencial de crianças que iriam lhe abordar pedindo esmolas, abaixou a cabeça e acelerou o passo. Foi seu erro. As pedras limosas o fizeram escorregar, deixando-o no chão. O que mais irritou Nicanor não foi a queda em si, nem o momento constrangedor por que passara – ele não dava a mínima para opinião alheia – mas sim a pronta ajuda que um rapaz que fazia seu cooper lhe ofereceu. Ao ver Nicanor no chão, a primeira ação do rapaz foi segurar-lhe o braço, ajudando-o a levantar-se. Isso enfureceu sobremaneira Nicanor, que com um safanão se livrou da mão amiga.

– Me largue, moleque! Não preciso da sua ajuda!
– Calma, senhor...Eu só queria ajudá-lo...
– Eu não pedi sua ajuda...

Ao falar isso, Nicanor deu um safanão no rapaz, afastando-o. O garoto caiu, incrédulo, no meio da pequena aglomeração que já se formava. Essa atitude do Nicanor enfureceu os curiosos, que não entenderam sua reação desbaratada.

– Ei!!! O menino só queria ajudar o senhor! Não precisava fazer isso com ele!!! – reclamou uma senhora que acompanhava a cena.
– A senhora fique quieta, ninguém pediu sua opinião!
– O senhor devia ter mais educação! Desrespeitar assim uma senhora pode ser prejudicial ao senhor.

Quem havia dito isso era um homem forte, com quase dois metros de altura. Nicanor já estava completamente descontrolado e, como também era um sujeito com uma boa constituição atlética, não se amedrontou. Deu uma resposta atravessada ao homem forte, que de pronto partiu para um tipo de agressão menos verbal. Os curiosos se afastaram diante das cenas de pancadaria, mas, para surpresa de todos, Nicanor começava a levar a melhor na briga, causando graves lesões ao seu oponente.

Vendo seu defensor apanhando, a senhora que foi ofendida por Nicanor resolveu ajudar, acertando lhe uma bela guardachuvada na cabeça. Nicanor, colérico, acertou um murro no rosto da senhora, que caiu desmaiada no chão. Esse foi o sinal para que os outros curiosos também tomassem partido na confusão, e logicamente não do lado do contumaz egoísta. O rapaz que o ajudou a levantar lhe deu uma rasteira por trás, levando-o ao chão. Caindo de cabeça, Nicanor sentiu que tinha um talho na fronte, que pro seu azar, vertia sangue em abundância. Ele ainda tentou resistir, mas ao vê-lo no chão, o grupo de pessoas o atacou sem piedade, e em pouco tempo ele estava inconsciente, devido à violência dos golpes que sofrera.

A ironia da coisa é que, apesar de ser um ato de vandalismo e brutalidade, Nicanor acabou morrendo por linchamento, a forma menos egoísta de ferir uma pessoa.

16.6.03

Açúcar queimado


Estava prestes a entrar naquela fase da saudade onde até os defeitos da pessoa distante fazem falta. Outro dia desses se pegou com o gosto da calda do pudim de leite que ela fazia. E olha que ela invariavelmente errava e o sabor de açúcar um pouco queimado sempre predominava.

Foi ela quem quis terminar, ele não iria correr mais atrás e estava tudo encerrado, ponto. Mas ali, ouvindo o cd do Sinatra que compraram juntos, era difícil não lembrar dela e de suas manias. Como querer dançar sempre que ele colocava o “ol' blue eyes” no cd player. E o jeito engraçado como ela conduzia a dança, porque ele sempre foi uma nulidade como pé-de-valsa.

A saudade é uma merda!”, pensou nessa hora.

Ele nem sabia o que era pior: se era a saudade em si ou o fato de um cara racional como ele sentir falta de coisas que o incomodavam de forma absoluta. Seu ciúme exagerado, que passava em muito o limite em que ele ficaria lisonjeado ou a irritação provocado pela seu perfeccionismo patológico. Tiveram brigas homéricas por conta disso. E agora ele, um sujeito calmo, totalmente avesso às brigas e discussões inúteis, começava a sentir falta até dos arranca-rabos que tinha com ela.

Viu que sua situação estava ficando insustentável quando mesmo as lembranças das diferenças de gênio entre os dois não eram o bastante para fazer ver que a separação era o melhor para ambos. Próximo do fim, eles já nem conversavam, viviam se falando aos berros. Seguirem caminhos diferentes era o mais correto, todos seriam mais felizes e ainda poderiam manter o pouco de respeito que um nutria pelo outro. Ele não era um desses caras guiados pela paixão. Não que fosse orgulhoso. Só achava que se anular como pessoa por causa de um relacionamento não era uma opção viável. Não acreditava que se podia renunciar a tudo pelo amor. Esse tipo de coisa só acontece em músicas bregas e filmes melados.

Então por que diabos ele não parava de pensar nela? Por que cogitava – loucura! – ligar para ela?

Largou o Sinatra no meio de “Nevertheless” e foi até a cozinha comer algo, mais para espairecer que pela fome. Abriu a geladeira e viu lá, ainda intacto, o pudim de leite feito pela sua mãe, que por pena do filhinho voltou a cozinhar para ele. Ele resplandecia, tinha a textura e as cores exatas, como numa foto de mostruário. Tirou uma fatia e comeu um pedaço. Abandonou o pudim na primeira colherada. Estava perfeito. Perfeito demais.

13.6.03

Inseparáveis

Depois de que podia se lembrar, Esaú sempre detestou seu irmão, Jacó. Queria, se possível, ficar longe um bom tempo. Infelizmente para ambos – para ambos mesmo porque Esaú fazia da vida de Jacó um inferno – era impossível a separação definitiva: eles eram gêmeos siameses.

Lógico que a razão estava com Esaú. Pelo menos ele pensava assim. Se achava desfavorecido em relação ao irmão. Era até engraçado pensar que seus pais, Esdras e Josefina, tivessem um preferido entre eles. Mesmo que isso fosse possível, como dar algo a um sem que outro soubesse e pedisse o mesmo? Para o azar de Jacó, Esaú nunca primou pelo bom senso.

Jacó imaginava que tudo havia começado quando eles foram manchete no jornal da pequena cidade em que nasceram. Na foto, recém-nascidos ainda, Jacó saíra em destaque, pois estava acordado. Esaú estava dormindo e parcialmente coberto. Sempre perguntavam quem era o que estava acordado, diziam que parecia ser o mais esperto. A matéria, emoldurada e em lugar de destaque na parede da sala, era odienta para Esaú. Se ele tivesse a chance, já teria estilhaçado o quadro há muito tempo.

Esaú fazia de tudo para apoquentar Jacó. Dormia depois dele, para esbofetear-lhe a cara, destratava as visitas que o elogiavam, começou a beber e fumar escondido só porque fazia mal ao irmão. Jacó não contava nada aos seus pais, apesar do tormento que sua vida se tornou. Na verdade, tinha medo do Esaú. Achava-o louco, temia o que ele podia fazer com ambos.

E parece que, algum tempo depois, Esaú realmente enlouqueceu. Os tormentos que aplicava a Jacó estavam recrudescendo, se tornando mais cruéis. Para afligir o irmão, Esaú não estava mais se preocupando mais nem com sua própria integridade física e moral. Tomava drogas que deixavam os dois alucinados, rasgava a parte das roupas que cabiam a Jacó, deixando as suas intactas. E Jacó persistia em seu silêncio. Era tão absurdo o estado em que andavam que seus pais começaram a pensar que os dois estavam enlouquecendo. Nunca imaginariam que Jacó não pudesse fazer parte das insanidades que faziam. Sempre acharam Jacó ajuizado. Era impossível que ele se permitisse a tamanho descalabro sem sua conivência.

Um dia, Esdras e Josefina esperaram Esaú dormir e foram conversar com Jacó. Queriam saber o que estava acontecendo, se eles podiam ajudar de alguma forma, mesmo que fosse buscando um auxílio externo. Entendiam que a vida deles não era normal, que com na sua condição aberrante, eles eram mais sujeitos a sofrer danos psicológicos. Compreendiam o provável desespero que um rapaz da idade dele devia estar passando por não ter uma vida normal. E se ele, Jacó, que era o arrimo moral dos amalgamados irmãos estava tendo problemas, isso era muito preocupante. Seus pais perguntaram se eles podiam fazer algo para acabar com a aflição dos dois. Jacó permaneceu em silêncio durante alguns momentos e depois perguntou fez apenas uma pergunta.

– Existe a possibilidade de uma intervenção cirúrgica?
– Não, filho...Infelizmente não. Vocês dividem órgãos vitais.
– Entendo.

Depois disso, Jacó virou o rosto e dormiu, a cabeça no ombro que dividia com seu irmão.

Nos dias seguintes, Esaú continuou com sua série de martírios ao irmão. Mas ele notou uma diferença no comportamento de Jacó. Agora ele nem reclamava. Estava alheio a tudo, não se importava com nada que Esaú fizesse. Inclusive não disse palavra quando viu que o irmão estava pegando a seringa, se preparando para mais uma dose de heroína, seu mais novo vício. Esaú achou estranho. As recentes doses da droga os deixavam letárgicos, coisa que Jacó detestava. O mais incrível foi que ele até ajudou a amarrar a borracha que vedaria a corrente sanguínea de ambos. Esaú pensou que finalmente havia conseguido deixar Jacó viciado em algo, havia conspurcado seu virtuoso irmão, de forma indelével.

A onda dessa dose consentida foi a melhor que Esaú já teve. Ironicamente, nunca se sentiu tão próximo do irmão, os dois mergulhados num mar de torpor calmo, repleto de sonhos de liberdade para ambos. A sensação de que estava se separando do irmão–fardo era tão intensa que poderia se dizer que era real, física. Até a dor que de repente começou a fazer parte desse ritual lisérgico de libertação era bem vinda. Se fosse para ser uma pessoa só, valia o esforço.


Josefina acordou no dia seguinte e foi olhar os filhos. Deparou-se com uma cena dantesca. Seus dois filhos, dois como nunca foram antes, mergulhados numa poça de sangue, meio divididos, meio unidos. Um machado, fincado na altura da barriga de ambos, os havia quase separado por inteiro.

12.6.03

Istas


– Bom dia.
– Por que?
– Ahn?
– É...por que “bom dia?
– Como assim, “por que bom dia?
– Qual é o seu problema? Foi uma pergunta simples. Me dê uma razão pra esse ser um bom dia.
– Bom...O dia está bonito....
– Fraca essa. Além de beleza ser um conceito subjetivo, a “beleza” do dia não altera em nada a situação do mundo. É por essas e outras que eu nunca digo “bom dia”.
– Ah, já sei. Você é existencialista.
– Não. Sou realista.
– Sei não... Tá mais com cara de fatalista.
– E não é a melhor forma de ver a vida?
– Não. Eu prefiro ser otimista....
– Nos dias de hoje, ser um otimista é o mesmo que ser um entreguista. Não converso com ninguém que não seja no mínimo um reformista.
– Concordo que a situação mundial não é das melhores. Mas não adianta ter uma atitude derrotista.
– Derrotista não! Acredito numa melhora, mas é preciso fazer algo. Lógico que para isso é necessário que surja alguém que faça uma boa análise da nossa realidade...
– E quem seria esse analista?
– Não sou futurista! Como vou saber quem vai ser esse cara?
– Acho que as coisas estão melhorando, sinceramente. Confio no governo petista.
– Mesmo? Pensei que, com esse papo de otimismo, você fosse mais um neo-liberal.
– Nada...sou é socialista.
– Pois não parece...Hoje estou com tendências anarquistas, pra te ser sincero. Já fui comunista leninista–trotkista, mas agora são outros tempos.
– Com certeza...e o comunismo mudou muito, não? Desde o regime do Stalin não dá pra confiar nos vermelhinhos...Ele era um fascista.
– Isso é. Pode se ser comunista, socialista ou mesmo anarquista....mas sempre mantendo o ideal democrata.
– Democrata?
– É.
– Ah...pode ser...Mas acho esse conceito muito grego demais. É tão clacissista!

7.6.03

Visita noturna


Eiras despertou no meio da noite percebendo a inevitabilidade da sua morte e, pior, como era supérflua a sua vida. E como não tinha nem teria nada de muito mais interessante para fazer com ela, pensou, com seus botões ainda meio sonados, que a morte até que lhe cairia bem.

Momentos depois tocaram a campainha. Achou estranho, pensou que ainda estava sonhando ou algo do gênero. Não tinha amigos que chegassem à sua casa uma hora dessas. Aliás, nem tinha amigos que chegassem a lugar algum a qualquer hora. Não os tinha de todo, e mesmo que os tivesse, quem quer que batesse em sua porta às 3 da manhã seria sumariamente cortado do seu círculo de relações.

Abriu a porta e viu um sujeito pálido que lhe era totalmente estranho, impecavelmente vestido com um terno preto de fino corte. Tinha uma expressão mista de profundo tédio e cansaço. Foi logo estendendo a mão, se apresentando.

– Olá. Você é o Eiras, não? Você me chamou, eu apareci – contrastando com a jovialidade das palavras ditas, foi o cumprimento menos entusiasmado que já tinha recebido. Mas isso não era o mais estranho. O que o intrigava era que nunca tinha visto um entregador de pizza tão bem vestido. Isso sem levar em consideração também o fato dele não estar trazendo a pizza que ele não havia pedido.

– Como assim, “eu chamei”? O porteiro deixou você subir? Como você sabe meu nome? Você sabe que horas são, meu chapa?

– São três horas, sete minutos e 45 segundos, levando-se em consideração o fuso horário da região, não precisei falar com o porteiro e você me chamou ainda há pouco, quando acordou – respondeu, ignorando o tom irritado do Eiras, o misterioso personagem – Eu sou a Morte.

Foi o bastante para a pouca paciência do Eiras. Bateu a porta na cara do desconhecido louco e voltou para continuar seu sono. Chegando ao quarto, para seu assombro, o maluco estava sentado em sua cama.

– Mas como...?!?!?!
– Não gosto de fazer esses truques. Acho de um exibicionismo estéril, incongruente com a formalidade do meu trabalho. Mas você não me deu opção. E você não foi muito gentil. Fui educado, atendi o seu chamado numa hora indigna dessas e você me bate com a porta na cara.
– Como você entrou aqui?!?!?!
– Isso é fácil, mas não vem ao caso. Você me chamou, estou aqui. Vim te buscar.
– Buscar?!?!? Quem diabos é você, afinal?
– Sorte sua eu não ser o diabo. Quando um dos emissários dele se dispõe a buscar alguém sem intermediários, pode ter certeza que a situação dela não é das melhores. Digamos que ele passará por uns tempos infernais – ao falar isso, deu uma risada – Desculpe a piada nesse momento impróprio. Eiras, eu sou a Morte, já disse.

– A Morte?!?!?!
– Isso. Por que? Não acredita? Esperava um monte de ossos cobertos com uma túnica ridícula e uma foice? Eiras, Eiras, Eiras...essa visão de mim é muito antiquada. Foi criada pra assustar os servos na idade média. Estamos no século XXI...

Eiras estava aturdido. Não sabia se ainda estava sonhando ou se tinha enlouquecido de vez. Sentou a lado do sujeito de preto e resolveu ver até onde iria esse jogo estranho.

– Tá bom. Digamos que você seja realmente “A” Morte. Por que eu? Quando foi que eu te chamei, afinal?
– Você acabou de me invocar – é um termo meio rebuscado, mas é o correto – quando acordou percebendo a inevitabilidade da sua morte e como era supérflua a sua vida.
– Porra!!! E você aparece assim, só porque eu pensei essa merda? Você leva tudo sempre tão ao pé da letra?!?!
– Depende...De qualquer forma
– E se você tivesse que aparecer toda vez que alguém falar “se inveja matasse, eu cairia durinho agora!”, por exemplo? Ou quando um cara fala teve vontade de morrer quando viu seu time perder o campeonato? Você não ia parar em casa nunca! Aliás, você tem uma casa?
– Tenho, mas você está saindo do foco da nossa conversa. A questão é a vontade da pessoa. Eu apareço quando há convicção no seu desejo de morrer. Você estava convicto quando pensou em passar dessa pra melhor.
– Hmmm....e é uma melhor mesmo?
– Pode ser que sim, pode ser que não. Mas você está pulando as etapas do processo. Quando você acordou no meio da madrugada, achando sua vida uma porcaria, você teve o que chamamos de ....
– Quem “chamamos”???
– Você está novamente fugindo do assunto, Eiras. Você teve o que chamamos de clarificação da condição de vida (CCV). Costumamos levar em consideração todo pedido – invocação – decorrente de um CCV.
– Mas foi sem querer!!! Eu não quero morrer, catzo!!!
– Tem certeza? Um CCV não falha...
– Eu estava dormindo! Eu não estava pensando direito!!! Eu, eu....
– Olha, Eiras. Eu gostei de você. Vou te dar uma chance pra pensar melhor. Não devia, mas vou te dar essa chance. Vai mesmo renunciar ao seu CCV? Eles são raríssimos. E só pessoas muito lúcidas conseguem tê-los...

A conversa surreal com a figura mitológica sentada ao seu lado ainda não parecia totalmente real para Eiras. Na manhã seguinte ninguém acreditaria, quando ele contasse a história para....

Para quem?

Eiras era um solitário. Trabalhava em casa – um emprego desestimulante e mal remunerado –, mal saía para comprar seus víveres. Não tinha ninguém. Deu uma olhada no seu exíguo apartamento (sua “piquenete”, segundo o próprio, pois era menor que um quitinete), nos seus míseros pertences, na sua falta de perspectivas. Aquela que morre por último, a tal de esperança, para ele era uma natimorta. E o pior é que ele nunca sentiu falta dela.

Sua vida, no fim das contas, não era nada. Viver ou morrer realmente não faria a menor diferença. Eiras sempre imaginou o momento em que morreria. Seria como aquelas mortes de cinema, quando o futuro defunto se lembra de todos os momentos da sua vida em uma fração de segundos. E agora, ali com a Morte em pessoa do seu lado, ele não conseguia lembrar de nada que importasse. Se ele tivesse que usar a tal “fração de segundos” pra ver novamente o que tinha vivido, ele não precisaria da metade desse tempo. Sua vida foi muito breve, não pelos anos vividos, mas pelo que ele deixou de viver.

– E então Eiras?
– Vamos....– anuiu Eiras, menos triste do que ele imaginava que deveria ficar.
– É a decisão certa.
– É...Eu sei. Ahn, só uma coisa. Como vai ser?
– Basta me acompanhar. Vai ser rápido.
– Isso. Seja breve. Estou acostumado com isso....