30.1.07

Irmãos



A casa vivia em total silêncio. Era assim desde que Miguel trouxe Humberto, seu irmão, do hospital. Beto como Miguel chamava seu irmão mais novo havia tentado o suicídio. Mesmo não tendo conseguido seu intento funesto, Beto conseguiu matar algo na sua relação com o irmão.

- O que se diz a um suicida? pensou Miguel, ao encontrá-lo no leito.

Era a imagem do fracasso, seu irmão Beto. O fracasso na vida, ainda tão jovem, sempre lhe fora claro. Não sabia como ajudar o irmão, que também não parecia muito interessado em ajuda. Todo esse abatimento, imagem que Beto há tempos carregava, agora era tanto que parecia criar uma aura em torno do seu corpo. Miguel chegou a titubear, com medo de alguma influência maléfica ao tocar no irmão. Depois de apagar tal sandice da mente, abraçou o caçula e o conduziu até o carro.

- Não precisa me apoiar, posso andar normalmente. Meu ferimento é nos pulsos e não nas pernas - Beto falou com um rancor dirigido não se sabe para quem ou que. Miguel ficou quieto. Respeitou a dor do irmão e também a sua. Ao entrarem no carro, Miguel apenas balbuciou: Estou feliz que você ainda esteja aqui. Beto respondeu virando o rosto para janela.

Os dias seguintes foram parecidos. Beto pouco falava, Miguel era compreensivo. Ajudava o irmão mais novo em tudo o que podia. Fazia-lhe uma companhia silenciosa, como o próprio Beto parecia querer. Não tinham mesmo muito o que falar. Beto, por falta de assunto. Miguel, por medo de falar algo que magoasse seu irmão.

Esse medo tornou Miguel quase tão mudo quanto Beto. "O que se diz a um suicida?", ele sempre pensava. Media as palavras em sua mente e, maioria das vezes, as achava impróprias. Não queria falar do receio de deixar seu irmão sozinho, nem da raiva que ficou por não ter recebido um pedido de ajuda, nem da preocupação pela parca melhoria de humor do Beto. Achava que todos esses assuntos poderiam melindrá-lo, deixá-lo desconfortável, ou pior, poderiam fazê-lo lembrar-se da tentativa de suicídio.

O que Miguel não levou em consideração, já que só pensava nas suscetibilidades de Beto, era o quanto do desespero do irmão menor poderia impregnar-lhe a alma. A visão continuada do sofrimento do Beto, seu espírito alquebrado duplamente - pela vida que ele não queria e pela morte que não conseguiu obter - e o ambiente de funeral sem defunto que se transformou sua casa acabaram por transformar a angústia de Beto em um mal transmissível, que como uma peste, apoderou-se de Miguel.

Agora, nem a preocupação com o irmão suicida passava pela cabeça de Miguel. Estava entregue, prostrado, sem ação. Era um sentimento de derrota, diante da incapacidade de Beto ficar melhor, da sua própria incapacidade de ajudá-lo e da incapacidade dessa vida ser minimamente justa com quem merece.

O silêncio na casa, com dois habitantes que não falavam, era total. Os dois irmãos, com suas funções vitais em perfeita ordem, não eram mais vivos que dois autômatos criados por algum desatinado cientista. Não saiam dos seus quartos e não sentiam mais falta um do outro. Se a tentativa de se matar de Beto não tinha dado cabo à sua vida, dera à fraternidade entre os dois irmãos.

E não foi movido por qualquer espécie de carinho ou saudade que Beto saiu do seu quarto, no meio da madrugada, para falar com Miguel. Beto apenas precisava de analgésicos para suas constantes dores de cabeça, que muitas vezes, não o deixavam dormir. Essa era uma dessas noites em que seu cérebro parecia a ponto de explodir dentro do seu crânio. Beto estava sem comprimidos e foi pedir um ou dois ao irmão. Foi quando descobriu da pior maneira que Miguel não poderia ajudá-lo nisso: encontrou Miguel estirado no chão do seu quarto, esparramado ao lado de um frasco de aspirinas vazio.

Era a primeira vez em muitos meses em que se poderia ver Beto tomando uma atitude. Enquanto levava o irmão para o hospital voando pela estrada, chorava e pedia aos céus que não lhe tirassem a única pessoa que importava em todo o mundo. Deu entrada no hospital, cuidou de toda a burocracia, brigou com enfermeiras e médicos por um atendimento melhor para seu irmão, gritou por notícias. A morte, na segunda vez que passou pelos irmãos, dessa vez trouxe de volta a vida à irmandade entre ambos.

Quando teve alta no dia seguinte, Miguel viu Beto entrar no quarto, aos prantos. Foram ao encontro um do outro e se abraçaram, como não faziam há muito. Diferentemente de Miguel, Beto sabia exatamente o que dizer naquele momento. Mas eles não disseram sequer uma palavra.

29.1.07

Marisa se foi



- Dessa vez é sério.

Eu não acreditei, mais uma vez. Fiz pouco, calcei meu tênis e saí. A turma estava toda lá, já preocupada com meu atraso.

- Nada demais. Mais um ataque da Marisa, daqueles de vou embora. Estou acostumado.

Não me preocupei mais com o incidente. O jogo estava animado, a cerveja gelada, não havia ninguém reclamando da fumaça ou do som alto. Tudo estava normal, como eu sempre esperava às quartas. Até o ataque pré-saída da Marisa era esperado, uma rotina a qual não me irritava mais e muito menos inquietava. Estava tudo como sempre. Exceto por uma coisa.

- A Marisa não ligou - falei para mim mesmo.

Mas como ninguém na mesa era surdo, todos deram seus palpites. "Foi dormir", "Tá na casa da mãe", "Ficou puta demais pra ligar" e outras elucubrações inúteis. Exercícios de adivinhação que não me ajudariam em nada. A discussão antes do jogo era normal. O "vou embora" era normal. A vinda pro jogo, mesmo depois da briga era normal. Marisa não ligar não era normal. E eu não gostava de nada que estivesse fora da normalidade.A ligação da Marisa, invariavelmente revoltada, era o sinal de que eu poderia ficar mais quarenta minutos, uma hora, com a turma. Se já era onze da noite e Marisa ainda não tinha ligado, algo estranho havia acontecido. Peguei o celular e liguei pra casa. Ninguém atendeu.

- Tá vendo? Casa da mãe!
- Nada. Tá puta demais pra atender a chamada
- Duvido! Tomou um calmante e capotou no sono. Ou tirou o som do telefone pra não a acordarem.

A opinião da turma não só não tinha valor como serviu pra me preocupar mais. Casa da mãe? Mas então isso não seria cumprir a promessa de ir embora? E não atender a chamada? Se ela estivesse tão revoltada, a possibilidade dela cometer uma loucura era enorme. E uma das loucuras possíveis era ela derrubar um frasco inteiro de calmantes.

- Galera, fui. Não dá mais pra ficar.

Sob os protestos da turma ("Pau mandado!" , "Antes das 11:30?!?!", "Vai acabar com a partida, viado!!!") fui embora. Tentava ligar e Marisa não atendia. Eu não demoraria mais que vinte minutos para chegar em casa, mas o tempo parecia estar voando. E Marisa não atendia. O que poderia ter acontecido?

Cheguei em casa, tudo escuro e silencioso. Procuro o interruptor, acendo a luz e, depois da vista se acostumar com a claridade, vejo a sala. Nada diferente. Tirando o fato de que Marisa não estava vendo TV com a cara emburrada padrão de quarta-feira. Estava tudo muito estranho. E eu não gosto de nada estranho.

- Marisa! - gritei, sem resultado.

Inspecionei a casa. Instintivamente fui antes aos lugares onde achava que Marisa não poderia cometer uma loucura. Então procurei primeiro na cozinha. Por mais que Marisa estivesse furiosa, ela não cometeria uma loucura na cozinha. Não na cozinha que ela tinha tanto orgulho de ser "mais limpa que a da fanática-obsessiva da sua mãe". Marisa não estava lá.

E também não estava no banheiro, nem na área de serviço, nem na varanda, nem no escritório e nem no quarto. E no quarto, além de não estar a Marisa, não estavam também suas roupas. Mas havia um bilhete em cima da cama. A primeira linha dizia "Eu avisei que dessa vez era sério".

No bilhete, Marisa falava e como falava o de sempre: acusações de desprezo pelos seus desejos, descaso com seu esforço como dona de casa, falta de atenção conjugal, etc, etc, etc. "As reclamações estão normais, pelo menos" pensei. Dizia que ia pra casa da mãe, que não ligasse e que ela faria o mesmo.

A ficha caiu alguns minutos depois. Marisa, a minha Marisa tinha ido embora. Lembrei de tudo o que passamos juntos, dos momentos felizes e dos nem tantos. De como ela tinha sido minha companheira por tantos anos. Não conseguia acreditar que tinha perdido a Marisa por causa de um jogo bobo, de uma tradição infantil que mantinha desde os tempos do secundário. Antes mesmo de conhecer Marisa, as quartas já eram sagradas. Teria sido ela intransigente, em não entender que esse tipo de atividade coletiva é uma necessidade masculina ou teria sido eu o cabeçudo por não largar a mão de ser criança e ver que um homem, casado, tem suas responsabilidade e que jogar cartas com seus amigos de infância não é uma delas?

Depois de pensar muito, olhei a hora. 11:35 da noite. Marisa saiu sozinha, sem carro, pra casa da mãe. Estava tarde, mas não ainda não era tarde demais. Corri pro carro, dei a partida e só no meio do caminho resolvi ligar. Demorou a atender. Foram os três toques mais demorados da história da telefonia celular. No quarto, finalmente pude falar:

- Juvenal? O jogo tá acabando ou ainda tem uma vaguinha aí pra mim?

12.1.07

Paraíso



O sujeito morre e vai direto para o famoso juízo final. Está em uma sala que, poderia se dizer, fazia parte do Fórum Celestial. Um anjo o recepciona e lhe dá dicas.

Anjo - ...E fique de pé diante do Senhor!
Carlos - Claro, claro, vou ficar. Eu não imaginava que o céu fosse assim, tão informal. Parece mesmo um tribunal isso aqui.
Anjo - Mas aqui É um tribunal. Você será julgado por seus pecados agora.
Carlos - Ah, claro. É que eu estou tão tranquilo da minha ida pro Paraíso que nem lembrei disso.
Anjo - Vamos ver se será tão fácil assim.
Carlos - Que isso? Você não é uma espécie de anjo? É normal um cara da sua posição vir com esse papo pra me assustar?
Anjo - Não estou assustando. Apenas digo que as coisas nunca são tão simples como as almas recentes acham que serão.
Carlos - Você está me assustando sim! Deus não é infinito em sua misericórdia? Por que eu, que tive uns pecadilhos bobos aqui e acolá vou ter um julgamento "não tão simples"?
Anjo - Cale-se. Chegou o Senhor.
Carlos - Você é muito autoritário, sabia?
Deus - Silêncio!
Anjo e Carlos - Sim Senhor!
Deus - Vamos logo que eu tenho muito o que julgar hoje. Você faz ideia de quantos pecadores eu tenho que julgar por dia?
C - Mas o Senhor não é onipresente? Não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo?
A - Ihhhh...uma insolência dessas e o sujeito ainda quer um julgamento simples e piedoso
D - Você quieto também, anjo.
A - Desculpe Senhor
D - E você, está rindo de uma ordem do teu Deus?
C - Rsrsrsrs...não Senhor..Imagina!
A - Tá ferrado.
C - Quem disse?
D - Calem-se ambos!
A e C - Desculpe, Senhor.
D - Então, Carlos Alberto Antunes da Costa. Subiu aos céus na idade de 45 anos e...
C - Muito cedo na minha opinião, se me permite comentar, Senhor.
D - Quem sabe se é cedo ou não sou eu.
C - Tem razão. Desculpe.
D - Sem mais interrupções. Vi que você espera um julgamento rápido e um acesso direto ao reino dos Céus. É isso?
C - O Senhor ouviu minha conversa com o alado aqui? Ah...pra isso o Senhor é onipresente, né?
A - Levo o insolente direto pras profundas, Senhor?
C - Não se meta!
D - Os dois, calados. E espero que agora me obedeçam. Só falem se assim forem solicitados.
A e C - Sim, senhor.
D - Mas então, Carlos. Você espera ir pro céu com essa sua ficha?
C - Claro! Sempre fui religioso, sempre ajudei os pobres - quando pude - e o Senhor sabe que eu sempre acreditei em Vossa Senhoria acima de qualquer coisa.
D - Ah...É mesmo? Colocaria sua alma imortal como garantia disso?
C - Bom....eu acreditava muito na Seleção de 82 também. Mas o Sr. sabe no que deu, né?
A - Claro que ele sabe, incrédulo! Quem você acha que fez o Cerezo entregar aquela bola?
C - FOI O SENHOR?
D - A soberba de toda uma nação, ainda mais sendo um povo tão religioso, precisava ser coibida, meu filho. E anjo: delação é um pecado muito grave, sabia?
A - Desculpe, Senhor.
D - E o seu apetite, Carlos?
C - Que tem ele, Senhor?
D - Não acha que ele era um tanto quanto exacerbado?
A - Nota-se pela pança...
C - Anjos não têm sexo. Preferia que esse não tivesse língua!
D - O que eu já falei para vocês dois?
A e C - Desculpe, Senhor.
D - A questão, Carlos, é que sua fome há muito tempo deixou de ser apetite para ser gula.
C - Queisso, Sr.! Eu comia tão pouco!
D - Sei. Por isso aquelas feijoadas duplas toda sexta-feira, não?
C - Mas Senhor! A feijoada de sexta é sagrada!
D - Não blasfeme!
C - Desculpe, Senhor.
D - Eu até deixaria isso passar se fosse apenas a feijoada. E a sirizada? E os galetos? E os rodízios de massa? E os churrascos?
C - Saco vazio não para em pé, senhor!
A - De vazio esse saco não tem nada!
D - Anjo....
A - Desculpe, Senhor.
D - Você era uma draga de comida, Carlos.
C - Tá bom, Senhor, admito que várias vezes pequei pelo excesso nesse caso.
D - Pecar é o termo mais apropriado. Mas a gula não é o único dos seus pecados graves.
C - Não, Senhor? E tem mais?
D - Tem, claro que tem. De preguiça à luxúria, você fez de tudo um pouco.
C - Assim o Senhor me ofende!
D - Carlos: o nome disso é juízo final porque você está sendo julgado por tudo o que fez na vida. Acha mesmo que ofendo você? Sei de todas que você aprontou. Querendo esconder algo quem ofende aqui é você a mim.
C - Tá, Senhor...reconheço que tive meus pecadilhos.
D - Nem tão "ilhos", Carlos. Teve aquela vez que você roubou dinheiro da sua avó doente.
C - Aquilo não foi um roubo, Senhor! Eu estava fazendo uma antecipação compulsória de herança. E além do mais, a velhota não podia nem mais andar naquela época! Pra que ia precisar de grana?
A - Tsk, tsk, tsk...querendo justificar um pecado com esse linguajar politicamente correto? Roubo é roubo!
C - E o que você entende desse linguajar? Vai me dizer que o "politicamente correto" também é obra divina?
D - Não, Carlos. Isso veio lá das profundas.
C - Não me surpreende.
D - E sua preguiça? Essa talvez seja uma característica sua mais marcante que a gula.
C - Mas aí o Senhor há de concordar que é normal uma certa letargia depois de comer muito...
D - Isso não o exime do pecado. E eu nem quero falar da luxúria.
C - Luxúria?!?!
D - É. Você quando não pensava em comida, tinha sexo na cabeça o tempo todo.
C - E pensar é pecado?
D - Não se lembra do ato de contrição na missa? "Confesso a Deus Todo-Poderoso e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes..."
A - ...por pensamentos e palavras, atos e omissões".
C - Não se mete, Anjo
D - Agora ele acertou, Carlos. Não se lembra disso?
C - Lembro, Senhor.
D - Mas não foi apenas em pensamento que você pecou contra a carne, Carlos. Na sua obsessão sexual, você desejou várias vezes a mulher do próximo. E não apenas desejou, não é mesmo?
C - Ah...o Senhor está falando da Dina? A mulher do Ananias? Foi apenas uma vez. E ela dava mole pra todo mundo, né?
D - E isso justifica sua falha de caráter.
C - Não. Mas mais injustificado foi o meu mau gosto. Ela era feinha.
D - Pois então? Como uma pessoa com sua história pode pleitear uma lugar no paraíso?
C - Mas Senhor...claro que tive meus deslizes. Sou humano, passível de falhas, como qualquer outro. O Senhor sabe que, apesar de tudo isso, sou uma boa pessoa. Pelo menos, em essência.
D - Sei, claro que sei. Mas seus pecados devem ser expiados de alguma forma. Por isso, te condeno a vagar com essa sua lista de pecados, com letras garrafais, por onde quer que você vá. E aviso logo: muitas pessoas da sua família e amigos estão por aqui. Inclusive o Ananias. E a Dina.
C - Senhor! Mas isso é muito constrangimento pruma alma só! Será um inferno!
D - Não queira sequer imaginar o inferno, meu filho. Isso é apenas o seu purgatório. Anjo, leve essa alma para que pague por seus pecados.
A - Sim, Senhor.

Deus e toda a sala evaporam no ar. Sobram, em um espaço vazio, branco e indefinido, Carlos e o Anjo, que mal consegue conter os risos.

A - Deu sorte, rapaz. Essa pena, apesar de engraçada, é leve.
C - Você fala isso porque não conhece meu pai. Se ele estiver por aqui, vou ouvir até o final dos tempos.
A - Não se pode dizer que você não mereceu isso.
C - Ah, não posso?
A - Não. Não se esqueça que Ele ouve tudo - diz, sussurrando
C - Tem razão. Eu mereci isso.
A - Pois é.
C - Mas me fala um negócio, em particular...lá na Alemanha. O meião do Roberto Carlos também foi obra dEle?

6.1.07

Ferro de passar



Era uma dessas coisas que só passam pela cabeça dos solteirões de certa idade. Cismou de achar que a sua empregada era boa de cama. Não que fosse do tipo solitário - tinha suas "amigas íntimas" aqui e acolá - mas encasquetou com a ideia de transar com a Marilda.

Marilda nem tinha o tipo físico que mais interessava ao Sérgio. Era baixinha, um pouco acima do peso e, se não era feia, o máximo que poderiam lhe atribuir era uma beleza exótica. Mas cadê que isso era empecilho para o Sérgio?

- Ah...uma mulher que passa a roupa do jeito que ela passa tem mãos de fada! - comentava com os amigos.

Todos achavam graça de mais essa mania do Sérgio. Mas, dessa vez, mesmo que sem ter uma lógica irrefutável e aparente, o argumento dele tinha algo de plausível. Ele nunca tinha visto uma mulher passar tão bem uma camisa. Depois de passar pelas mãos da Marilda, suas camisas sociais, que sempre tinham sido um tormento para suas diaristas anteriores, pareciam que nunca tinha sido dobradas. Era como se o pano tivesse sido medido, cortado, costurado na hora e sem um amassozinho sequer. Era uma coisa de louco.

- Basta eu ver meu armário cheio de cabides que eu fico louco de vontade! - dizia o Sérgio, entre um chope e outro.

Seus amigos riam. Mas Sérgio já havia decidido seduzir Marilda, custasse o que custasse. Ela vinha três vezes na semana. E nos dias seguintes à decisão do apaixonado, ele já agia diferente.

- Deixa que eu te ajudo, Marilda.
- Vou comprar cigarro. Quer algo da rua, Marilda? Um bombom?
- Quer que eu vá montando a tábua de passar?

Apesar dos seus 30 e muitos, Marilda era inocente. Achou engraçado o novo tratamento, mas não desconfiou de nada. Notava que o "seu" Sérgio agora estava sempre por perto, que não saia mais quando ela começava a esfregar o chão e que as vezes ele a olhava de um jeito engraçado. Doidice de patrão, ela estava acostumada.

Até que um dia Sérgio, algumas semanas depois, vendo que ela não seria seduzida por mimos e atenções sutis, partiu para um ataque mais direto: agarrou a Marilda por trás, enquanto ela passava a camisa social que ele mais gostava.

- Que isso, seu Sérgio!?!?!? Me solta!
- Ah, Marilda! Eu não aguento! Você passando minhas camisas fica demais!
- "Seu" Sérgio, me solta! A camisa vai queimar aqui!
- Deixa queimar! Eu já estou aqui pegando fogo!

Os detalhes das cenas seguintes são irrelevantes para a história. O que vale mesmo é saber que Sérgio chegou na mesa do bar, sentou entre os amigos de sempre e pediu um chope. Muito cabisbaixo.

- Mas o que foi, rapaz? Que cara é essa? - perguntou um.
- Ainda não conseguiu levar sua empregada pra cama? - perguntou outro.
- Pelo contrário - respondeu Sérgio - consegui sim.
- E por que a cara de velório, então?
- Tive que demitir a moça.
- Por que?!?! - perguntaram os dois, em uníssono.
- Sabem as mãos de fada que a moça tinha com as minhas camisas?
- Sabemos - disse o primeiro amigo, já ansioso pelo relato - e daí?
- Pois é. Era só com as camisas mesmo. No meu pau ela pegava como quem pega num ferro de passar...

Depois da gargalhada dos dois amigos, um deles pergunta.

- Mas isso é motivo para demitir a coitada?
- Não. Nem foi por isso, não.
- O que foi então?
- Ela queimou minha camisa preferida também.