29.1.07

Marisa se foi



- Dessa vez é sério.

Eu não acreditei, mais uma vez. Fiz pouco, calcei meu tênis e saí. A turma estava toda lá, já preocupada com meu atraso.

- Nada demais. Mais um ataque da Marisa, daqueles de vou embora. Estou acostumado.

Não me preocupei mais com o incidente. O jogo estava animado, a cerveja gelada, não havia ninguém reclamando da fumaça ou do som alto. Tudo estava normal, como eu sempre esperava às quartas. Até o ataque pré-saída da Marisa era esperado, uma rotina a qual não me irritava mais e muito menos inquietava. Estava tudo como sempre. Exceto por uma coisa.

- A Marisa não ligou - falei para mim mesmo.

Mas como ninguém na mesa era surdo, todos deram seus palpites. "Foi dormir", "Tá na casa da mãe", "Ficou puta demais pra ligar" e outras elucubrações inúteis. Exercícios de adivinhação que não me ajudariam em nada. A discussão antes do jogo era normal. O "vou embora" era normal. A vinda pro jogo, mesmo depois da briga era normal. Marisa não ligar não era normal. E eu não gostava de nada que estivesse fora da normalidade.A ligação da Marisa, invariavelmente revoltada, era o sinal de que eu poderia ficar mais quarenta minutos, uma hora, com a turma. Se já era onze da noite e Marisa ainda não tinha ligado, algo estranho havia acontecido. Peguei o celular e liguei pra casa. Ninguém atendeu.

- Tá vendo? Casa da mãe!
- Nada. Tá puta demais pra atender a chamada
- Duvido! Tomou um calmante e capotou no sono. Ou tirou o som do telefone pra não a acordarem.

A opinião da turma não só não tinha valor como serviu pra me preocupar mais. Casa da mãe? Mas então isso não seria cumprir a promessa de ir embora? E não atender a chamada? Se ela estivesse tão revoltada, a possibilidade dela cometer uma loucura era enorme. E uma das loucuras possíveis era ela derrubar um frasco inteiro de calmantes.

- Galera, fui. Não dá mais pra ficar.

Sob os protestos da turma ("Pau mandado!" , "Antes das 11:30?!?!", "Vai acabar com a partida, viado!!!") fui embora. Tentava ligar e Marisa não atendia. Eu não demoraria mais que vinte minutos para chegar em casa, mas o tempo parecia estar voando. E Marisa não atendia. O que poderia ter acontecido?

Cheguei em casa, tudo escuro e silencioso. Procuro o interruptor, acendo a luz e, depois da vista se acostumar com a claridade, vejo a sala. Nada diferente. Tirando o fato de que Marisa não estava vendo TV com a cara emburrada padrão de quarta-feira. Estava tudo muito estranho. E eu não gosto de nada estranho.

- Marisa! - gritei, sem resultado.

Inspecionei a casa. Instintivamente fui antes aos lugares onde achava que Marisa não poderia cometer uma loucura. Então procurei primeiro na cozinha. Por mais que Marisa estivesse furiosa, ela não cometeria uma loucura na cozinha. Não na cozinha que ela tinha tanto orgulho de ser "mais limpa que a da fanática-obsessiva da sua mãe". Marisa não estava lá.

E também não estava no banheiro, nem na área de serviço, nem na varanda, nem no escritório e nem no quarto. E no quarto, além de não estar a Marisa, não estavam também suas roupas. Mas havia um bilhete em cima da cama. A primeira linha dizia "Eu avisei que dessa vez era sério".

No bilhete, Marisa falava e como falava o de sempre: acusações de desprezo pelos seus desejos, descaso com seu esforço como dona de casa, falta de atenção conjugal, etc, etc, etc. "As reclamações estão normais, pelo menos" pensei. Dizia que ia pra casa da mãe, que não ligasse e que ela faria o mesmo.

A ficha caiu alguns minutos depois. Marisa, a minha Marisa tinha ido embora. Lembrei de tudo o que passamos juntos, dos momentos felizes e dos nem tantos. De como ela tinha sido minha companheira por tantos anos. Não conseguia acreditar que tinha perdido a Marisa por causa de um jogo bobo, de uma tradição infantil que mantinha desde os tempos do secundário. Antes mesmo de conhecer Marisa, as quartas já eram sagradas. Teria sido ela intransigente, em não entender que esse tipo de atividade coletiva é uma necessidade masculina ou teria sido eu o cabeçudo por não largar a mão de ser criança e ver que um homem, casado, tem suas responsabilidade e que jogar cartas com seus amigos de infância não é uma delas?

Depois de pensar muito, olhei a hora. 11:35 da noite. Marisa saiu sozinha, sem carro, pra casa da mãe. Estava tarde, mas não ainda não era tarde demais. Corri pro carro, dei a partida e só no meio do caminho resolvi ligar. Demorou a atender. Foram os três toques mais demorados da história da telefonia celular. No quarto, finalmente pude falar:

- Juvenal? O jogo tá acabando ou ainda tem uma vaguinha aí pra mim?

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