28.10.03

Um, dois, três e...



- Não faz isso, rapaz!!!
- Por que não?
- Preciso mesmo falar? Olha a altura da queda!!!
- Quando pensamos em nos matar, quanto mais alto estamos, melhor o resultado, não acha?
- E quem disse que ele quer se matar?
- Agora eu que te pergunto: precisa mesmo falar? O que diabos ele estaria fazendo de pé no parapeito de uma janela no vigésimo andar de um prédio? Observação de pássaros?
- Ele NÃO quer se matar. Ele só está confuso.
- Hmmm...Ele me parece bem decidido, para ter chegado até aqui.
- Mas não está. Volta já pra dentro, rapaz! Olha que você cai daí!
- Ele não vai cair. Ele vai pular.
- Não vai, não.
- Vai.
- Não vai.
- Tá bom, tá bom...essa discussão não leva a nada. Porque não perguntamos pra ele?
- Ah, não, nada disso. Ele não está no seu estado normal.
- Ah, é? E agora você julga "estados"?
- Alguém que está de pé em um parapeito no vigésimo andar de um prédio te parece estar no seu estado normal?
- Não, parece estar afim de se matar. E é justamente isso que ele vai fazer.
- Não vai.
- Vai.
- Olha... Pensa bem. Ele vai se esborrachar lá embaixo, vai fazer a maior sujeira...
- E daí? Ele não vai precisar limpar nada...
- Muito engraçado...Pensa na dor. Deve ser horrível se esfacelar todo...
- Nada, só vai durar um segundo. Isso se ele não sofrer um ataque cardíaco antes. Acontece muito.
- Então!!! Ataques cardíacos doem pra burro!
- Pode ser, mas vai ser rapidinho também...depois do "plaft" no chão, ele nunca mais vai sentir dor...
- DÁ PROS DOIS CALAREM A BOCA??!?!?!
- Ahn? Quem falou isso?
- Ih...olha o suicida dando ataque!!!
- Porra!!! Me deixem em paz, merda!
- Nossa...que moça nervosa!!!!
- Hahahaha...vai ver é por isso que a bichona quer se matar.
- É por isso, mocinha? Se for, então pula!!!
- É isso mesmo!!! Pu-la, pu-la, pu-la!
- Vou pular mesmo!!! E a culpa é de vocês!!!
- Era o que faltava! A mocinha agora coloca a culpa dos problemas dele em cima de gente!
- Onde já se viu!!! Assuma seus defeitos, amigo...
- Eu estou assumindo! E a culpa é de vocês mesmo! Não posso mais viver com vocês dois falando na minha cabeça o tempo todo! Para mim, não bastava ter esquizofrenia; eu tinha que ter o azar de pegar duas vozes chatas para falar na minha mente!
- Mas você é uma besta mesmo, não? E isso é motivo pra se matar?
- É! Carinha mais fraco! Deixa de ser covarde!
- É isso mesmo....vou deixar de ser covarde...um, dois, três e....
- Caralho! A bichona pulou mesmo!!!
- Pois é, que retarda...

PLAFT

Perfeição



Era uma festa no teatro. O elenco comemorava junto com a equipe técnica o sucesso da estreia e as críticas excelentes que saíram no dia seguinte. Cumpriram o ritual de esperar sair o jornal e comprá-lo ainda fresquinho, lá pelas 4 da manhã. Beberam, obviamente, durante toda a espera. Os elogios dos críticos só confirmaram o que os vários minutos de aplausos de pé os fez pensar: o êxito da montagem foi total.

Mas, algo inusitado acontecia. No meio dos festejos e da gritaria causados pelo álcool e pelo retumbante sucesso da peça, uma pessoa estava quieta, taciturna, desde a leitura das críticas. E justamente aquela que deveria estar mais exultante. Saulo Rebeskini, autor e diretor da peça, parecia muito aborrecido.

Só notaram sua atitude na hora do brinde com toda a equipe, quando terminaram de ler o último caderno cultural. Saulo não estava entre eles. Depois de um breve corre-corre, encontram-no afundado em uma poltrona, as mãos no queixo e uma cara decepcionada.

- Ei, Saulo!!! O que você tá fazendo aí, rapaz? Vem brindar com a gente! - chamou Raul, o assistente de direção.
- Não estou no clima... - respondeu.
- Que cara é Saulo? Parece que tá num enterro!!! - perguntou Franklin, o protagonista da peça, visivelmente bêbado.
- É como se fosse... - disse Saulo, sem o menor jeito de quem queria conversa.

Vendo a cena inesperada de ter que consolar o responsável pela bem sucedida peça, o restante dos presentes rodeou a poltrona onde sentava Saulo.

- O que você tem?!?! A peça foi muito bem! Todos os jornais elogiaram! Deram nota máxima para direção e pro seu texto! - disse alguém do grupo
- Eu sei...e esse é o problema!

Raul sentou num dos braços da poltrona e segurou Saulo pelos ombros.

- Então qual é o problema, Saulo? Você queria que a peça fracassasse?
- Acho que..sim. Não queria que minha primeira encenação fosse um sucesso.

Todos se olharam, boquiabertos. Ninguém sabia o que dizer. Depois das palavras do Saulo, copos foram deixados nas mesas, garrafas foram abandonadas e as risadas foram substituídas por expressões interrogativas. O silêncio foi quebrado pelo próprio intérprete da cena, que notou que sua reação foi completamente inesperada.

- E o que vou fazer agora? Eu não tenho mais como escrever ou dirigir nada! Se eu fosse mal em alguma coisa, texto ou direção, tudo bem...Mas ir bem nos dois? Estou num beco sem saída!
- O que você está falando, homem!!! Agora todas as portas estarão abertas pra você! - falou o trôpego Franklin.
- Aí é que está! Eu se eu não corresponder? Não quero ser decadente logo no meu segundo trabalho! E como eu vou conseguir superar essa estreia!
- Você vai conseguir, Saulo! Que paranoia é essa, justo nessa hora? Você é o cara mais talentoso...
- ...que você conhece. Sei, sei, já ouvi essa história e concordo com ela. Tenho a noção exata do meu talento. Essa peça é excelente porque ela foi o meu sonho realizado. Ela saiu justamente como eu imaginava que sairia. Ela já estava montada na minha cabeça, e foi assim encenada. Eu sei que ela vai ser o ponto máximo da minha carreira. Só que o início de carreira não pode ser seu ponto máximo ao mesmo tempo.
- Mas..- hesitou Raul antes de continuar - quem disse que você não vai conseguir fazer nada melhor? De onde você tirou essa ideia?
- Eu sei, Raul. Eu sei que nunca vou superar esse começo.
- Ah... Nesse jornal disseram que você poderia ter feito uma peça maior...isso é um defeito! - falou Regina, uma coadjuvante não muito brilhante.
- Queriam uma peça maior para que ela desse maior prazer pra plateia, Regina. É isso que está escrito na matéria. Isso não é bem um defeito.
- Isso tudo é viadagem de autor angustiado! Bebe logo um uísque e para de babaquice, Raul! - gritou Giovanni, o produtor do espetáculo.
- Não é viadagem, Giovanni. Eu não estou feliz com o começo da minha derrocada. Apenas isso.
- Tó...pega esse copo e bebe, porra! - Giovanni entregou para Saulo um copo cheio de bebida.

Saulo pegou o copo contrariado e o virou em uma talagada, sob o olhar de todos a sua volta.

- E agora Saulo? - perguntou Giovanni - Tá vendo as coisas mais claramente agora?
- Tô. E agora mesmo que eu vi que estou encurralado na minha carreira de dramaturgo.
- Ai, caralho! Desisto! Raul, dá um jeito nesse cara que ele é amigo seu...- disse Giovanni se retirando.
- Vocês não entendem! O fracasso é experiência vital para qualquer um. Eu tinha planejado toda minha carreira e seria no seu início que eu iria falhar. Eu contava com o aprendizado que só um projeto mal sucedido pode oferecer.
- Você está exagerando Saulo. Deixa de drama, homem de Deus!
- Não estou exagerando, Raul. É assim que é...

A confraternização estava arruinada. Não havia mais clima para nada, muito menos para comemorar. O primeiro a ir foi Giovanni, que acabou levou consigo vários dos integrantes da equipe. Em pouco tempo só restava Saulo e Raul nos bastidores do teatro.

- Vamos embora, Saulo. Todo mundo já foi, você conseguiu acabar com a festa.
- Você também não entende, não é Raul?
- O que há para entender, Saulo? Você está triste porque sua peça não foi um fracasso. Como alguém em sã consciência pode entender isso?

Raul olha para Saulo e nota que ele está completamente alheio à sua presença. Quando ele começa a falar, não é com Raul.

- Fiz o melhor que pude. Calculei tudo, reescrevi passagens inteiras do texto. Eu mesmo supervisionei a criação dos cenários, da iluminação, das roupas. Ensaiei com os atores exaustivamente, tirando o máximo até dos mais fracos. Depois de tudo pronto, revi cada parte da peça, a procura de defeitos e os que havia, eu os acertei. Era para tudo, tudo, tudo sair perfeito.
- Mas saiu, Saulo!!!
- E esse é o problema. Não era possível que saísse. Não nessa peça. Alguém tinha que encontrar algum defeito nela. Eu pensei até em sabotá-la em alguns momentos, mas não fiz. Eu queria que saísse tudo perfeito, tudo, mesmo sabendo que isso era improvável. Mas aconteceu...
- Tá, Saulo. As críticas saíram, seu trabalho foi exaltado e você - sabe-se lá porque diabos - não ficou muito satisfeito. Queria falhar, mas acontece que não falhou em nada. Foi perfeito. E agora? Vai fazer o que? O que você quer?

Saulo não responde. Pensativo por alguns minutos, responde em seguida:

- Eu não sei...Não sei o que eu quero ou o que eu vou fazer daqui pra frente.

Raul levou Saulo para casa depois da conversa que tiveram. Saulo estava meio alto e quando chegou em casa foi direto para cama. Precisava por as ideias em ordem. Nem ele mesmo sabia ao certo o porque de tamanha frustração com o sucesso. Queria ter falhado em algo, isso ele já tinha assimilado. Mas sua obsessão pelas críticas negativas que não vieram ainda não era totalmente entendida.

No dia seguinte, a primeira coisa que Raul fez foi ir até a casa do Saulo. Estava preocupado com o amigo. Uma pessoa que ficasse tão infeliz com a boa sorte de um projeto pessoal seria capaz de qualquer coisa. Tocou o interfone no prédio do Saulo, que demorou pouco para atender. "Deve ter acordado cedo", imaginou Raul. Subiu com o elevador e encontrou a porta de Saulo aberta, a sua espera. De dentro do apartamento, o som de Bach saía num volume desproporcional para a hora do dia.

- Agora você também ficou surdo? - entrou falando Raul, momentos antes de se emudecer por completo. A casa do Saulo estava numa completa balbúrdia. Dezenas de livros estavam espalhadas pelo chão, abertos. Discos, revistas, reproduções de obras de arte, tudo numa anarquia completa. Saulo estava sentado no meio dessa loucura toda, com a barba por fazer e com a mesma roupa da noite anterior.

- Raul, eu descobri.
- O que é isso, Saulo??? Que bagunça é essa?!?!
- Eu não dormi muito hoje, Raul. Tive uma visão, um insight, não sei como explicar...mas eu descobri a razão da minha insatisfação.
- "Insight"? Saulo, você ainda está bêbado?
- Não, não...Estou sóbrio, como nunca estive antes.
- O que diabos aconteceu, Saulo?
- Ontem à noite, depois que você me trouxe para casa, eu fui direto para cama. Mas não dormi muito. Acordei com alguém me chamando, aqui dentro de casa.
- Como assim, "alguém me chamando"? Alguém estava aqui?
- Não. Quer dizer, sim. Bom, pra falar a verdade, não sei explicar direito.

Raul tentou evitar a cara de estranhamento que tinha acabado de fazer, mas foi impossível. Ele não precisou fazer a pergunta que Saulo respondeu em seguida.

- Não, Raul, eu não estou louco. Levantei e encontrei um sujeito sentado diante da minha cama. Levei um baita susto. Perguntei quem ele era e como tinha entrado na minha casa. Ele disse que não veio fazer nada de mal para mim, que não era um ladrão. Só queria conversar um pouco comigo.
- Ahn? Saulo, que história é essa? Como o cara entrou? Quem era esse sujeito?
- Não me interrompa, Raul. Era um cara de meia idade, grisalho, sem traços característicos. Era tão comum que posso dizer que era impossível de ser descrito. Aparentava tanta calma que nem pensei em fazer nada. Assim que ele falou que não ia fazer nada de mal, me tranquilizei na hora. Não me pergunte porque.
- Claro que não vou perguntar! Ao que parece, você ficou completamente louco!
- Espera Raul! Ele começou a falar. Disse que sabia pelo que eu estava passando e veio me ajudar. Queria conversar comigo sobre o conceito de perfeição.
- O que? Saulo, essa é história mais louca que eu já ouvi.
- Pra mim também é, amigo. Mas me deixe continuar. Ele começou dizendo que muita gente já passou pela aflição que eu passei. Que a sensação de "dever cumprido", de não ter mais o que fazer depois de realizar algo incapaz de ser superado por si mesmo, era comum em artistas e que os verdadeiros artistas sempre sabem a hora de parar. Quando não há mais nada de relevante a ser criado, esses artistas de verdade penduram as chuteiras. E que o meu problema é que eu havia pulado todas as etapas de um progresso artístico e realizei minha obra-prima prematuramente.
- Bom...isso foi mais ou menos a razão do seu chororô ontem.
- Eu sei. Entendi de primeira que esse era um dos motivos pelos quais deveria me preocupar no futuro. Como poderia superar esse meu primeiro trabalho? Essa era uma questão. Mas eu ainda não sabia porque isso me incomodava tanto. Eu poderia...sei lá, abandonar o teatro.
- Não seja ridículo, Saulo!
- Calma, Raul. Depois da conversa com o estranho, eu descobri o que me incomodava: minha peça, apesar de todas as análises dizerem o contrário, não é perfeita.
- Claro que é, Saulo! Ninguém pôde encontrar um senão nela! Ninguém conseguiu encontrar um defeito sequer em todo espetáculo!
- E é esse justamente o seu único defeito! Ela não tem defeitos!

Novamente Raul não conseguiu evitar a expressão de preocupação com o amigo.

- Sei que parece contraditório, Raul, mas o estranho me explicou tudo. Ele me falou que "A" perfeição é uma meta que apenas serve como objetivo. Alcançar a perfeição é um ideal, um sonho. NADA pode ser perfeito. Ele me deu vários exemplos e eu procurei outros aqui em casa, por isso todos esses livros e discos espalhados. A perfeição não existe. Os defeitos fazem parte de qualquer processo criativo e ele me mostrou as falhas das maiores obras de arte dos maiores nomes da cultura de todos os tempos. Dante, Shakespeare, Rafael, Michelangelo, Da Vinci, Bach, Picasso, Cervantes. Mesmo em seus principais trabalhos, podemos encontrar algo falho neles. Mesmo que imperceptível, eles existem. Não haver falhas no meu trabalho, é uma falha.
- Saulo...Você definitivamente está bêbado.
- Não estou Raul! - falou agarrando o amigo pelos braços - Os defeitos fazem parte da vida, assim como da arte. Eu falhei justamente por não ter falhado. A perfeição não existe e mesmo que existisse, não seria perfeita. Entendeu?
- Não. E me admira muito um sujeito culto como você cair numa esparrela de um desconhecido que invadiu sua casa no meio da madrugada para falar esse tipo de besteira. E quem era o sujeito afinal?
- Ele não me disse seu nome. Mas depois do último exemplo que ele me deu de "obra-prima com defeitos", tenho uma desconfiança de que eu saiba quem é o sujeito. Sabe quando falamos do que nós mesmos fizemos e não conseguimos evitar aquela pontinha de orgulho?
- Ah, é? E qual foi o exemplo?
- Ele começou falando que minha busca pela "peça perfeita" era justificada. Já realizá-la era impossível e eu ter notado isso, a despeito do que todos disseram, foi o que me salvou da soberba, do orgulho. Foi aí que ele me disse que buscar a perfeição é uma obrigação do artista, mas quando ele pensa que a alcançou, prova que é um insano; é cometer uma afronta ao maior criador de todos, já que até sua obra máxima é a maior criação já feita e ainda assim é falha.
- De quem ele estava falando, afinal?
- Dele mesmo. E a obra máxima que ele falou era a própria vida.
- A própria vida? E isso quer dizer que...
- Deus, Raul, Deus...Foi o risinho dele de falsa modéstia depois de falar da criação da vida que o entregou. Ele, DEUS, em pessoa - se é que eu posso falar assim sem ser herege - me visitou.
- Você chama DEUS de orgulhoso, fala que ele veio até aqui só pra apaziguar suas neuroses de artista atormentado e está se preocupando com heresias? Você não é herege, Saulo, você é louco!
- Raul...não sei se foi Ele que esteve aqui, pode ter sido uma alucinação. Mas, não vejo problemas dele vir aqui...Ele não é onipresente? E se Deus não pode ter orgulho da sua criação, quem mais pode ter?
- Saulo, vai tomar um banho...você deve estar cansado. Isso só pode ser um esgotamento nervoso.
- Até vou tomar um banho, mas eu nunca estive tão bem em toda minha vida.
- Tá bom, tá bom. Não vou discutir isso com você. Se você está feliz, é isso que importa. Só me faz um favor: não comenta isso com ninguém, certo? Não quero ver você internado num sanatório.
- Combinado.

Enquanto Saulo tomava seu banho, Raul foi arrumando a bagunça feita pelo amigo. Estava realmente preocupado com ele. De todas as loucuras, até habituais, do seu amigo, essa havia batido todos os recordes. Estaria Saulo ficando maluco?

Mesmo que fosse isso, a vida de ambos seguiu sem que ocorresse problemas ou novas visitas divinas. Saulo continuou sua carreira, com muito sucesso, mas sem repetir as críticas impecáveis da sua primeira peça. Os analistas do seu trabalho sempre encontravam algum defeito nos seus espetáculos posteriores, seja uma hesitação no texto ou uma certa frouxidão na direção. Apesar disso, todos eram muito elogiados, às vezes até mais que seu primeiro êxito. Saulo nunca esteve tão feliz.

16.10.03

Feliz Aniversário, Doris



Seu nome era Doris Deyse. Era loira, olhos azuis e mãe de família. Era seu auto-retrato. Gostava de se descrever assim. Seu maior orgulho era poder responder em todos os questionários das revistas sobre comportamento que era "do lar".

- E das melhores! - sempre dizia.

Dizia que não trabalhava porque não queria. Ficou noiva do primeiro namorado aos 17, quando tinha acabado de se formar normalista. Não chegou a dar aula para as crianças (que ela adorava!), casou com 18 e foi realizar seu sonho de dona de casa. O marido saía para o trabalho, terno e pasta na mão e ela ficava em casa, sem trabalhar: arrumar os quartos, varrer a casa, fazer o almoço, ver algum programa de auditório vespertino - eu me divirto muito com a TV! - e uma cochilada à tarde.

Era feliz. Os filhos vieram pouco tempo depois. Um menino e uma menina, um atrás do outro.

- Agora tudo está perfeito! Um menino mais velho, para proteger a irmã caçula! - falava orgulhosa.

A rotina a deixava feliz. Acordar cedo, aprontava o café da manhã para família, arrumava a casa, via Tv e dormia. Estava realizada e se achava a melhor mulher do mundo. Cumpria suas obrigações, fazia valer o salário que o marido trazia para casa e criava bem os filhos.

Não gostava muito de pensar. Não, não era uma alienada (Esse governo...Sei não, viu? - fazia essa análise mandato após mandato). Só não pensava muito na sua vida. Para ela, isso só servia para criar problemas e desestruturar seu lar perfeito.

Como toda mulher, tinha "aqueles dias". Nessa época, ficava mais quieta, às vezes dormia mais a tarde. Se dava esse luxo. A vontade de bater nos filhos - que estavam na idade em que começavam a criar problemas - ela controlava. "Surras não levam a nada! Temos que ser compreensivos!" - era seu lema. Ela ficava mais irritada "nesses dias", mas nem os anos sem uma das suas paixões, o cinema (ADORO fitas românticas!), por falta de tempo do marido para levá-la a incomodavam.

- Ele trabalha muito, coitado! Sempre faz serão até de madrugada duas vezes por semana! Tenho que dar minha cota de sacrifício. Afinal de contas, eu não faço nada e ele sustenta a casa! - refletia.

Um dia em que estava mais nervosa, não sabia porque, bebeu um pouco do uísque do marido. Relaxou, apesar do gosto amargo. "Prefiro laranjada! É mais docinho!". Gostou tanto da sensação, que isso se tornou um hábito. Não só "naqueles dias", mas toda vez que se sentia cansada ou incomodada por algo que não sabia explicar. Ficava feliz quando bebia. As vezes, alegre, até colocava suas roupas antigas, de quando era normalista. Elas quase não cabiam mais - "Ser do lar engorda!" falava, divertida. Além do mais, fazia tempo já que não era uma adolescente. Era uma senhora já.

Mantinha-se feliz, depois de todos os anos, todas as arrumações de casa, todos os problemas cada vez maiores dos filhos e dos serões mais longos e repetidos do marido. Tinha sua garrafa à tarde - começou a comprar uma só para ela, economizando nas compras de mês - e isso bastava. Não ligava para os namorados esquisitos da filha e nem para o fato do filho mais velho, que devia proteger a caçula, estar sempre aéreo e com uns amigos estranhos, que fediam a uma fumaça com cheiro estranho. Do marido, não podia reclamar. Ele era o arrimo da família. E a explicação dele para aquelas manchas vermelhas na camisa foram muito plausíveis.

No dia em que completaria 45 anos, não mudou sua rotina. Esperava algum gesto do marido, mas ele havia ido dormir tarde e acordou atrasado para o trabalho. Já não esperava o beijo de bom dia dele, hábito abolido já há anos. Ele engoliu o café e saiu, sem se despedir ou felicitá-la. Foi acordar a filha, para o desejum. Ela não estava no seu quarto e sua cama, ainda estava arrumada. Ficou preocupada. Foi até o quarto do filho, perguntar se ele sabia da irmã menor. O quarto tinha o mesmo que os amigos do filho tinham. Ele estava estirado na cama e não acordou nem com os chamados, nem com as sacudidelas. Resolveu deixá-lo dormir mais um pouco. Saiu com cuidado, para não pisar nas seringas jogadas no chão. Ele podia querer usá-las depois e se ela quebrasse alguma delas, ela ia ouvir muito, e com razão.

Voltou ao quarto da filha, ainda sem parabéns pelo dia. Foi até ao banheiro da filha, tinha que lavá-lo. Encontrou na pia um papel dobrado e o examinou. Era algum tipo de exame. Sem se preocupar com o que era, viu um positivo no final. Não sabia que a filha tinha ido ao médico.

- Preciso conversar mais com minha filhota! Não sei quase nada dessa menina! - pensou.

Decidiu acordar o filho. Ele deve saber de algo sobre esse exame. O cheiro no quarto dele era horrível, mas não era mais o mesmo. O filho, por algum motivo, tinha vomitado.

- Deus!!! Esse garoto anda bebendo! Vou ter que conversar com ele também.

Deixou o quarto e saiu para pegar o material de limpeza. Deixaria o filho curando a ressaca mais um tempo, sem acordá-lo. Não estava muito contente. A filha sumida e talvez doente, o filho de ressaca e o marido sem cumprimentá-la no dia do seu aniversário. Isso não era bom. A rotina que ela tanto gostava estava muito alterada nesse dia.

Limpou o quarto do filho e vendo que ele estava pálido e tremia, puxou suas cobertas, para que ele melhorasse do frio. "Só esse menino pra sentir frio com um verão desses!" - pensou, rindo. Passou a mão em sua testa suada e fria e saiu do quarto.

Na sala, viu que todo o serviço estava atrasado. Assim, o jantar ia acabar atrasando, ainda mais hoje em que faria uma surpresa para família e prepararia um bolo, em sua homenagem. Queria cometer essa extravagância. Mas antes, para se animar um pouco, foi até sua garrafa.

- Uma dosezinha seria ótimo agora.

Estava no meio do copo quando o telefone tocou. Atendeu e uma voz feminina, desconhecida - não era sua mãe ou alguma amiga dos seus filhos - começou a falar uma história absurda sobre o marido dela a abandonar, que ele preferia uma mulher de verdade e não uma velha gorda como ela. Que hoje o marido dela não voltaria pra casa e talvez nunca mais voltasse. Onde já se viu? Depois de mais algumas ofensas, Doris se cansou e resolveu desligar.

- Olha, minha filha...Você discou errado. Deve ter sido engano - e bateu o telefone.

Voltou para sua garrafa e encheu seu copo. Pensou em como o mundo estava mudado. Uma pessoa passando um trote desse, logo pela manhã. O estranho foi a garota acertar o nome dela. Doris não é um nome tão comum assim.

- Muita coincidência!

Levou a garrafa para cozinha, para fazer o almoço bebendo mais um pouco. Era seu aniversário, ela merecia, depois de um dia tão diferente. Terminou de fazer tudo junto com a garrafa. Estava feliz de novo. Estava meio alta, "de pilequinho", como gostava de falar. Foi dormir um pouco. Passando em frente do quarto do filho, e ouviu ele ainda passando mal, tossindo. Deixou para cuidar dele depois que essa tontura passasse. Afinal de contas, era o aniversário dela. Ela merecia um descanso.
Dormiu demais. Já eram sete da noite quando acordou. Desceu correndo as escadas, para arrumar a sala de jantar. O marido, se não fosse fazer serão, chegaria em meia hora. E ele detestava não encontrar a mesa posta.

Na pressa, esqueceu de ver o filho. Lembrou dele no meio da arrumação da mesa. A cozinha estava exatamente como ela havia deixado, de onde ela deduziu que o filho não descera para almoçar. Sua filha também não tinha dado sinal de vida. Assim que acabasse com a mesa, iria acordar o filho e ligar para as amigas da menina.

Doris ainda estava meio tonta. Tinha exagerado na bebida. Colocou o bolo na mesa e sentou-se diante dele para descansar mais um pouco. Acabou cochilando. Acordou no escuro, duas horas depois, ainda sem sinal dos filhos ou do marido. Resolveu decorar o bolo antes de tomar qualquer providência.

- É meu aniversário, caramba! Eu mereço um bolo bonito!

Eram quase dez da noite quando terminou de escrever "Feliz Aniversário, Mãe!" no bolo, com o glacê que ela mesma fez. "Receita da mamãe!". Era estranho ninguém aparecer, mas resolveu esperar. Devia ser alguma surpresa da família. Ela sentou novamente à mesa e esperou.

1.10.03

Chaves



Saí de casa e esqueci minha cópia das chaves. Foi de propósito. Não pretendo voltar, nunca mais. Deixo tudo lá, móveis, roupas e intenções não realizadas. É tempo de fazer algo.

Corro o mundo à procura de outras chaves, que abram outras portas. Não tenho mais âncoras: deixei de ser o filho antes de ser pai e agora espero por outros filhos. O mundo é minha porta e ela ainda está trancada. Por enquanto.

E por enquanto vou vagar por aí, até arranjar uma chave mestra. Ou um pé de cabra. Até que o mundo esteja escancarado para mim, até que eu possa ir e vir para onde eu bem entender, até quando eu puder escolher fincar minhas raízes no ar ou simplesmente desaparecer, lentamente.

Esse é o momento das raízes. Esse é o momento de novos começos. Esse é o momento de, apesar de tudo, agarrar a esperança com as mãos até quebrar-lhe os pulsos.

Esse é o momento.