16.10.03

Feliz Aniversário, Doris



Seu nome era Doris Deyse. Era loira, olhos azuis e mãe de família. Era seu auto-retrato. Gostava de se descrever assim. Seu maior orgulho era poder responder em todos os questionários das revistas sobre comportamento que era "do lar".

- E das melhores! - sempre dizia.

Dizia que não trabalhava porque não queria. Ficou noiva do primeiro namorado aos 17, quando tinha acabado de se formar normalista. Não chegou a dar aula para as crianças (que ela adorava!), casou com 18 e foi realizar seu sonho de dona de casa. O marido saía para o trabalho, terno e pasta na mão e ela ficava em casa, sem trabalhar: arrumar os quartos, varrer a casa, fazer o almoço, ver algum programa de auditório vespertino - eu me divirto muito com a TV! - e uma cochilada à tarde.

Era feliz. Os filhos vieram pouco tempo depois. Um menino e uma menina, um atrás do outro.

- Agora tudo está perfeito! Um menino mais velho, para proteger a irmã caçula! - falava orgulhosa.

A rotina a deixava feliz. Acordar cedo, aprontava o café da manhã para família, arrumava a casa, via Tv e dormia. Estava realizada e se achava a melhor mulher do mundo. Cumpria suas obrigações, fazia valer o salário que o marido trazia para casa e criava bem os filhos.

Não gostava muito de pensar. Não, não era uma alienada (Esse governo...Sei não, viu? - fazia essa análise mandato após mandato). Só não pensava muito na sua vida. Para ela, isso só servia para criar problemas e desestruturar seu lar perfeito.

Como toda mulher, tinha "aqueles dias". Nessa época, ficava mais quieta, às vezes dormia mais a tarde. Se dava esse luxo. A vontade de bater nos filhos - que estavam na idade em que começavam a criar problemas - ela controlava. "Surras não levam a nada! Temos que ser compreensivos!" - era seu lema. Ela ficava mais irritada "nesses dias", mas nem os anos sem uma das suas paixões, o cinema (ADORO fitas românticas!), por falta de tempo do marido para levá-la a incomodavam.

- Ele trabalha muito, coitado! Sempre faz serão até de madrugada duas vezes por semana! Tenho que dar minha cota de sacrifício. Afinal de contas, eu não faço nada e ele sustenta a casa! - refletia.

Um dia em que estava mais nervosa, não sabia porque, bebeu um pouco do uísque do marido. Relaxou, apesar do gosto amargo. "Prefiro laranjada! É mais docinho!". Gostou tanto da sensação, que isso se tornou um hábito. Não só "naqueles dias", mas toda vez que se sentia cansada ou incomodada por algo que não sabia explicar. Ficava feliz quando bebia. As vezes, alegre, até colocava suas roupas antigas, de quando era normalista. Elas quase não cabiam mais - "Ser do lar engorda!" falava, divertida. Além do mais, fazia tempo já que não era uma adolescente. Era uma senhora já.

Mantinha-se feliz, depois de todos os anos, todas as arrumações de casa, todos os problemas cada vez maiores dos filhos e dos serões mais longos e repetidos do marido. Tinha sua garrafa à tarde - começou a comprar uma só para ela, economizando nas compras de mês - e isso bastava. Não ligava para os namorados esquisitos da filha e nem para o fato do filho mais velho, que devia proteger a caçula, estar sempre aéreo e com uns amigos estranhos, que fediam a uma fumaça com cheiro estranho. Do marido, não podia reclamar. Ele era o arrimo da família. E a explicação dele para aquelas manchas vermelhas na camisa foram muito plausíveis.

No dia em que completaria 45 anos, não mudou sua rotina. Esperava algum gesto do marido, mas ele havia ido dormir tarde e acordou atrasado para o trabalho. Já não esperava o beijo de bom dia dele, hábito abolido já há anos. Ele engoliu o café e saiu, sem se despedir ou felicitá-la. Foi acordar a filha, para o desejum. Ela não estava no seu quarto e sua cama, ainda estava arrumada. Ficou preocupada. Foi até o quarto do filho, perguntar se ele sabia da irmã menor. O quarto tinha o mesmo que os amigos do filho tinham. Ele estava estirado na cama e não acordou nem com os chamados, nem com as sacudidelas. Resolveu deixá-lo dormir mais um pouco. Saiu com cuidado, para não pisar nas seringas jogadas no chão. Ele podia querer usá-las depois e se ela quebrasse alguma delas, ela ia ouvir muito, e com razão.

Voltou ao quarto da filha, ainda sem parabéns pelo dia. Foi até ao banheiro da filha, tinha que lavá-lo. Encontrou na pia um papel dobrado e o examinou. Era algum tipo de exame. Sem se preocupar com o que era, viu um positivo no final. Não sabia que a filha tinha ido ao médico.

- Preciso conversar mais com minha filhota! Não sei quase nada dessa menina! - pensou.

Decidiu acordar o filho. Ele deve saber de algo sobre esse exame. O cheiro no quarto dele era horrível, mas não era mais o mesmo. O filho, por algum motivo, tinha vomitado.

- Deus!!! Esse garoto anda bebendo! Vou ter que conversar com ele também.

Deixou o quarto e saiu para pegar o material de limpeza. Deixaria o filho curando a ressaca mais um tempo, sem acordá-lo. Não estava muito contente. A filha sumida e talvez doente, o filho de ressaca e o marido sem cumprimentá-la no dia do seu aniversário. Isso não era bom. A rotina que ela tanto gostava estava muito alterada nesse dia.

Limpou o quarto do filho e vendo que ele estava pálido e tremia, puxou suas cobertas, para que ele melhorasse do frio. "Só esse menino pra sentir frio com um verão desses!" - pensou, rindo. Passou a mão em sua testa suada e fria e saiu do quarto.

Na sala, viu que todo o serviço estava atrasado. Assim, o jantar ia acabar atrasando, ainda mais hoje em que faria uma surpresa para família e prepararia um bolo, em sua homenagem. Queria cometer essa extravagância. Mas antes, para se animar um pouco, foi até sua garrafa.

- Uma dosezinha seria ótimo agora.

Estava no meio do copo quando o telefone tocou. Atendeu e uma voz feminina, desconhecida - não era sua mãe ou alguma amiga dos seus filhos - começou a falar uma história absurda sobre o marido dela a abandonar, que ele preferia uma mulher de verdade e não uma velha gorda como ela. Que hoje o marido dela não voltaria pra casa e talvez nunca mais voltasse. Onde já se viu? Depois de mais algumas ofensas, Doris se cansou e resolveu desligar.

- Olha, minha filha...Você discou errado. Deve ter sido engano - e bateu o telefone.

Voltou para sua garrafa e encheu seu copo. Pensou em como o mundo estava mudado. Uma pessoa passando um trote desse, logo pela manhã. O estranho foi a garota acertar o nome dela. Doris não é um nome tão comum assim.

- Muita coincidência!

Levou a garrafa para cozinha, para fazer o almoço bebendo mais um pouco. Era seu aniversário, ela merecia, depois de um dia tão diferente. Terminou de fazer tudo junto com a garrafa. Estava feliz de novo. Estava meio alta, "de pilequinho", como gostava de falar. Foi dormir um pouco. Passando em frente do quarto do filho, e ouviu ele ainda passando mal, tossindo. Deixou para cuidar dele depois que essa tontura passasse. Afinal de contas, era o aniversário dela. Ela merecia um descanso.
Dormiu demais. Já eram sete da noite quando acordou. Desceu correndo as escadas, para arrumar a sala de jantar. O marido, se não fosse fazer serão, chegaria em meia hora. E ele detestava não encontrar a mesa posta.

Na pressa, esqueceu de ver o filho. Lembrou dele no meio da arrumação da mesa. A cozinha estava exatamente como ela havia deixado, de onde ela deduziu que o filho não descera para almoçar. Sua filha também não tinha dado sinal de vida. Assim que acabasse com a mesa, iria acordar o filho e ligar para as amigas da menina.

Doris ainda estava meio tonta. Tinha exagerado na bebida. Colocou o bolo na mesa e sentou-se diante dele para descansar mais um pouco. Acabou cochilando. Acordou no escuro, duas horas depois, ainda sem sinal dos filhos ou do marido. Resolveu decorar o bolo antes de tomar qualquer providência.

- É meu aniversário, caramba! Eu mereço um bolo bonito!

Eram quase dez da noite quando terminou de escrever "Feliz Aniversário, Mãe!" no bolo, com o glacê que ela mesma fez. "Receita da mamãe!". Era estranho ninguém aparecer, mas resolveu esperar. Devia ser alguma surpresa da família. Ela sentou novamente à mesa e esperou.

Sem comentários: