29.4.02

Palavras


Tenho um caso com as palavras
Tenho as amado há anos
Eu as como, as respiro
Eu as levo para cama
E sou promíscuo
E gosto de mexer com elas
Intercambiá-las
Fazendo orgias
Que até o mais depravado dos
Poetas enrubesceria
Venho sendo esse sátiro
Por muito tempo
Gosto do som delas
Gosto da sua forma
Sinto, as vezes
Até seu cheiro:
Chuva breve em chão quente
O vento frio do outono
Livros novos
A mulher que eu amo
Eu amo as palavras
E suas combinações
Seu movimento
Seu poder transformador
As palavras me tornam
Uma pessoa melhor

19.4.02

Nódoa


Sai de casa e sente a chuva bater em sua fronte, com força. Sente a primeira água do outono levar todo o peso que carregas, sente a liberdade de estar leve, não dever mais nada para a vida. Esse vida que te tinha, mais que você tinha a ela. Corre na chuva e veja seu reflexo nas poças e, no seu rosto marrom de lama, veja que a sujeira está toda no chão, que ela corre, que ela vai para o bueiro. Veja seus iguais fazendo igual, expiando seus erros, apagando suas falhas. Observe seus reflexos, enlameados nas poças, correrem como o seu. Veja.

Veja como são muitos. Os inúmeros da tua espécie, a grande malta dos desajustados por culpa, os arrependidos reincidentes, os eternos perdoados. Veja suas lamas-reflexo, seus rostos-peso, suas águas-carregadas-de-culpa indo pelas correntes criadas pelo temporal. Veja os bueiros, como ralos, incapazes de filtrar tamanha imundice.

Os bueiros transbordam e inundam tua cidade. E tudo volta. Pior, mancham, maculam, sujam o que havia de limpo.

15.4.02

Romance de verão


Conheceram-se na praia. Ele, assíduo frequentador das areias; ela, branquinha, raramente pegava sol. Quem começou o assédio foi ele. Ela não lhe deu muita bola. Estava mais preocupada com seu protetor solar e sua barraca. "Sol?!? Deus me livre!", costumava dizer. E o sujeito que falava incessantemente se apoiava no seu guarda–sol, impedindo que ele cumprisse sua função. Seu fracasso era previsível, mas ele não era desses que costumavam desistir assim. "Vai ficar a temporada toda aqui, amorzinho?" , ele perguntou, sem perder o péssimo hábito dos diminutivos ridículos ao falar com os outros. A afirmativa deixou-o mais tranquilo. Se hoje ele não fora muito feliz na abordagem, ela que esperasse. Agora era questão de honra.

Ela achara o sujeitinho vulgar e convencido. Sua beleza, que devia fazer muito sucesso no balneário, não a encantou nada. "Cara convencido comigo não tem vez!", era quase seu bordão. Dispensara-o de um modo incisivo, mas educado, pra ele nem pensar em voltar. Mas ela tinha a plena impressão de que essa não seria a última vez em que se veriam.

Cidade litorânea, pequena, poucas opções de diversão noturna. Encontraram-se, casualmente – por parte dela – num barzinho agitado. Ele foi logo puxando papo. "Gostou do local, minha linda?" , mostrando que não tinha problema só com os diminutivos ao se dirigir a alguém. "Moro numa metrópole…como vou achar isso aqui bom?". Ela achou sinceramente que a resposta ríspida traria algum resultado. Ledo engano. Ele era insistente. E como ele mesmo havia decidido, era questão de honra.

A corte seguiu a noite toda. Não que ela fosse facilmente dobrável, mas as tequilas a mais a fizeram ver algumas qualidades no surfista. Ele era chato e inconveniente, mas também, e isso era inegável,divertido. Sem contar aquele tórax. Ela começou a achar que poderia se divertir um pouco com ele. A única coisa que a incomodava era a promessa, já antiga, de nunca fazer parte de um "romance de verão", desses em que você "conhece-beija-fode-nunca-mais-vê-na-vida". Não combinava com ela, e o que é pior: ela sempre acabava sofrendo, até com os relacionamentos mais supercificiais.

Ele já sabia que tinha a presa em suas mãos. Ela fora difícil, mas não muito mais que as outras. Essas garotas da capital são assim. Primeiro fazem jogo duro, depois liberam. Já sabia como funcionava. Talvez ela regateasse na mesma noite, mas na próxima,era certo. Mas ele não conseguia ficar com a mesma mulher mais de três dias. Ainda mais na alta temporada, com todas as turistas facilitando. Estava decidido em ficar com ela até comê-la. Depois, partiria para outra.

Ao contrário do que os dois imaginavam, acabou sendo bom. Foi intenso, forte. Eles, incrível, combinavam. Ele ficara deslumbrado. Ela, satisfeita. Ele desistira da idéia da noite única. Queria mais um pouco dela, aliás, queria mais muito dela. Dera a sorte grande, achando-a antes de todos. Ela gostara. Mas o que a deixava mais feliz era perceber que, apesar de ter sido uma das suas melhores noites, ela não estava presa, não acontecera aquela ligação que sempre a deixava a mercê dos homens. Se ele quisesse vê-la de novo, ótimo. Se não, melhor ainda.

Mas ele quis. E foi ao encontro dela dia após dia. Ela gostava, se sentia lisongeada. Mas era maçante vez outra. Não no sexo. Mas quem vive só de sexo? As conversas é que a chateavam um pouco. Ainda mais quando ele vinha com aquele papo de "Puxa, nunca descasquei antes! Olha minha pele!". Dizia que a culpa era dela, que ela o estava fazendo definhar. Ela achou graça da primeira vez. Mas a piada, recontada todo dia, cansava-a.

Em 15 dias, ela já começava a achá-lo chato em excesso. Queria dar um fim no caso. Mas ela sabia exatamente como se sente uma pessoa rejeitada. E não queria fazê-lo passar por isso. Além do mais, faltavam duas semanas e pronto. Fim de conversa. Já ele estava cada vez mais apaixonado por ela. Não sabia explicar o que era. Se era seu bronzeado vermelho, coisa de gente muito branca, ou seus cabelos curtos, ou suas mãos. Já nem pensava só em sexo, com certeza o melhor que já tivera, procurava outros motivos para tamanha paixão. Se sentia estranho, mas feliz. A única coisa que o incomodava era sua pele indo embora, em placas, sem piedade. Isso nunca tinha acontecido com ele.

Os dias foram passando, o desinteresse dela crescendo, a pele dele caindo. Ela já quase não falava mais com ele, assim que ele chegava, levava-o para seu quarto e arracava-lhe as roupas, apressada, faminta. Não que tivesse tanto desejo por ele. Tinha mesmo era repulsa do que ele falava, das suas conversas chatas, e agora, pra piorar, ele começava a criar feridas pelo corpo, de tanto que sua pele caía. "Será câncer de pele?" se perguntava. A cada abraço, mordida, arranhão dado, sua pele ia embora, resina podre, sem serventia.

Ele estava preocupado. Não com a pele, e sim com a frieza dela, com seu distanciamento. E por mais que ele adorasse só transar com ela, sentia falta de algo, de calor. Ela estava só o usando, já descobrira. Mas ele não só aceitava esse simulacro de atenção, esse amor falsificado, como não tinha forças pra se negar a isso. Ele fazia o jogo dela. E sabia disso.

Faltavam dois dias para ela ir. Ela foi se despedir, mais obrigada pelos amigos que a acompanhavam na viagem que por qualquer traço de estima. Não queria mais vê-lo. Encontrou-o em casa, no escuro. Parecia um leproso. Sua pele toda caíra. Ainda assim, ele sorriu para ela um sorriso sincero, puro. "Que bom te ver…queria que soubesse que te amo. Você não é só mais um caso de verão. Eu quero que você fique aqui…pra sempre. Olha só….estou definhando por você". Ela não acreditava no que ouvia. Esse rebotalho de gente, esse ser desfeito, incompleto, o mais imperfeito dos homens, teve coragem de propor algo desse gênero. A vontade dela era a de matá-lo. Pisar naquele corpo deformado pelo sol, possível foco de doenças incuráveis, um trapo. Seria fácil. Um bicho servil como aquele morreria por ela feliz, bastaria que estalasse os dedos. Se aproximou dele, com ódio, e lhe deu o beijo mais tenro do mundo. E amou-o mais uma vez.

Ela partiu no dia previsto. Ele nunca mais saiu do seu quarto. Seus amigos, preocupados, foram a sua casa alguns dias depois. Um cheiro forte de putrefação estava entranhado em todas as paredes, móveis, no chão. Encontraram no quarto apenas um esqueleto. Usava uma bermuda igual a dele.

2.4.02

A Queda


Atravessar a grande ponte no estado em que se encontravam era uma temeridade. O dia amanhecendo denunciava que a noite anterior havia sido longa e, pra variar, repleta dos excessos que sempre cometiam. Não fosse o cd da última sensação do rock americano no último volume, a viagem seria de um silêncio ébrio inquebrável. Não havia disposição para falar.

O dia seria lindo e isso se anunciava pela enorme bola amarelo-incandescente que vinha diretamente na cara do motorista. Incomodava, deixava-o quase cego, mas pelo menos impedia que ele caísse no sono. O carona tinha o privilégio de poder fechar os olhos, mas os cigarros que acendia um atrás do outro o obrigavam a catar o maço esmigalhado no bolso da frente da calça e procurar o isqueiro nos outros. Podia só usar o tato para isso, mas a visão era mais eficiente.

O som alto, a fumaça e o sol eram seus estimulantes no momento, mas eram o bastante apenas para que o torpor não os fizesse desmaiar. Iam devagar na pista. Apesar de estar bêbado de sono e álcool, o motorista sabia que ser imprudente seria loucura. O pequeno movimento da manhã era uma dádiva, para eles e para os carros que, por sorte, não estavam ali, correndo o risco de serem abalroados. Era um risco pequeno, até por não estarem fazendo barbeiragens, mas sempre era um risco.

– Para de fumar um atrás do outro, merda! Quero ligar o ar…

A primeira frase dita na viagem seria o prenúncio de uma discussão? Não, não havia ânimo para isso. O carona olhou para o motorista num misto de indiferença e sono, olhou pro cigarro, na metade, pôs na boca, tragou longamente e jogou o resto pela janela. Como uma pequena vingança, fechou a janela e expeliu toda a fumaça no carro já fechado, rindo.

– Filho da puta… disse o motorista.

Em condições normais, a fumaça não incomodaria o motorista. O excesso de fumaça desequilibrou a fórmula que os mantinham de olhos abertos – sol, som, fumaça – fazendo o motorista, por uns segundos, fechá-los.

– CARALHO…Que merda é essa?!?!

O grito do carona acordou o motorista. Infelizmente, ao abrir os olhos abruptamente, eles estavam voltados para o sol. A cegueira que o acometeu por apenas alguns segundos foi o bastante para ocasionar o acidente. Não houve tempo para desviar do carro parado no acostamento da ponte. O choque não fora muito forte, mas o impacto do cinto de segurança no estômago do motorista era o que faltava para que tudo o que ele tinha consumido na noite anterior fosse jogado goela fora. Atordoado, sujo e tremendo, passados alguns segundos intermináveis, ele falou com o carona:

– PORRA!!! Espero que você tenha morrido com essa, cara…porque senão eu te mato!!! Essa merda foi culpa sua, sua mula!

– Minha?!?!? Nem vou comentar isso…e se eu fosse você, não me preocupava comigo, não…Tinha um cara na frente do carro….e depois dessa merda que você fez, não tô mais vendo ele…
A raiva que estava do carona, o nojo do vômito em seu corpo, o cálculo do prejuízo com o carro e a imagem do seu pai acabando moralmente com ele mais uma vez estavam ebulindo na mente do motorista. Talvez por isso tenha demorado alguns momentos para perceber a gravidade do que tinha acabado de ouvir.

– Ahn?

A ideia ainda não tinha sido completamente absorvida pelo motorista. O que esse estúpido esta dizendo? Como tinha alguém e sumiu? É foda andar com bêbado! A razão voltou logo depois.

– Peraí, cara….vamos lá ver isso!!!

Tirar o cinto deu a mostra do quanto os dois haviam se machucado. Os dois gemeram de dor, colocando ambos a mão na barriga. O passo trôpego de bebida piorou muito com a dor que sentiam.
Os estragos nos carros não foram dos piores, mas o principal – e aterrador – era a ausência de alguém perto do carro avariado. Nenhum sinal de vida, além do motor do carro estar ligado, o que era uma prova irrefutável de que alguém estivera por ali. Só que não havia ninguém.

– Você tem certeza que viu alguém??? Você está muito bêbado para afirmar isso! Não PODE ter havido alguém aqui…senão, onde estaria? Você está louco!

O desespero do motorista mostrava que ele já tinha tirado a mesma conclusão desesperadora que tirou o carona.

– É, não tinha…O motor ligou sozinho..aliás, o CARRO chegou aqui sozinho…Claro que tenho certeza…e pra início de papo, não estou bêbado…não como você, seu desgraçado!!! Olha a merda que você fez!!! JOGOU O CARA NO MAR!!!

A frase dita assim, como um soco na cara, acordou de vez o motorista. Ele corre pra frente do carro avariado, procurando um sinal, uma pista do que pode ter ocorrido. Para seu horror, um pedaço de jeans no para-choque só confirma o acontecido. O motorista corre até o parapeito da ponte e olha para o mar. Nada. No próprio parapeito ele vê as manchas vermelhas incriminadoras. Não há mais a menor razão para dúvidas. Um homem havia sido atirado ao mar, e a culpa era dele.

Ou não…A culpa era da maldita fumaça que o carona havia jogado em sua cara. O primeiro sentimento que o motorista sentiu foi a confusão. O que poderia fazer agora? A confusão em sua cabeça dá lugar ao medo, assim que repara nas câmeras de controle da ponte, sob eles. Um crime… era o que tinha acabado de cometer. E ainda tinha sido filmado! A prisão era certa. Ele estava bêbado, bateu em um carro parado, era um assassino. Quando o motorista lança seu olhar ao carona, todo o medo passa por um instante. O que ele sente é o mais profundo ódio. Ele tinha achado o culpado. E ele tinha que pagar por isso.

O soco do motorista no carona não foi em cheio. Ele não percebia o quanto estava bêbado, o quanto estava bambo. Com o vento no alto da ponte, o golpe não foi firme. O carona não esperava por isso, e a surpresa, a bebida e o vento o fizeram desabar no chão. Sua tentativa de levantar foi inútil, não tinha firmeza nas pernas. Sua reação foi inesperadamente rápida para o motorista. O chute na altura no do joelho do motorista derrubou-o. Os dois se engalfinharam na pista, nem se preocupando com o trânsito ou as câmeras ou, o que é pior, a proximidade do parapeito da ponte. Trocavam golpes inúteis – erravam quase todos, e os certeiros, não faziam efeito nos corpos anestesiados pelo álcool – enquanto rolavam no chão. O vento estava forte. Eles nem chegaram a perceber a queda.

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Uma semana depois, eles nem eram mais notícia. No dia da queda, foram até manchete. Dois homens, aparentemente drogados, iniciaram uma briga sem motivo aparente no alto da ponte e caíram no mar. As testemunhas foram os motorista que passavam pela cena no momento. As câmeras da ponte não estavam funcionando. Os corpos não foram encontrados. Os jornais noticiaram que eles eram amigos há tempos, e seus familiares não imaginam o que pode ter ocorrido. A única pessoa que pode explicar algo do acontecido é o motorista do outro carro que estava parado na ponte, e que tinha sido abalroado pelo carro dos dois. O outro motorista estava sendo procurado, mas continuava desaparecido. E como o automóvel não tinha nenhuma documentação e era roubado, não havia como identificar quem o dirigia. A hipótese mais plausível era de que o dono do carro desaparecido tenha coagido de alguma forma os dois a pularem da ponte. Enquanto ele não for encontrado, o caso continuará sem solução.

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Duas semanas depois foi encontrado um corpo numa praia distante uns bons 30 km da ponte. Estava em péssimo estado, vários peixes pareciam ter matado sua fome com ele. O que se pode ver é que usava um jeans e tinha uma fratura na perna que não parecia ter sido provocada por algum animal marinho. Parecia que tinha batido em alguma superfície dura. Imaginaram que poderia ter caído de algum barco, quebrado a perna e, não podendo nadar, morrera afogado. Essa ideia foi logo descartada ao encontrarem, dentro da sua carteira, dobrada em um plástico, uma carta.

Era um bilhete suicida.

Sobre o fim


Tudo, tudo mesmo, tem um fim. Encarar a inevitabilidade disso é que não é fácil. Até sequoias milenares morrem, viram uma massa amorfa e putrefata, muito diferente da sua imagem anterior, resplandecente na sua (quase) perenidade. Tudo acaba e encarar esse fato é a única coisa racional a se fazer.

Não cabe aqui e nem é minha intenção fazer analogias com teorias sobre renovação de energia, aura, transformações químicas e físicas, eternidades que não me interessam nem um pouco. Existem fins que não são novos começos, e algumas das vezes isso já vale o seu final.

Pior mesmo é se deixar arrastar pela corrente, insistir numa vida sem valor, uma verdadeira não-vida. Melhor acabar de uma vez. Odeio ver coisas definhando, morrendo devagar, como uma tortura chinesa.

Não leva a nada, só ao óbvio fim. A questão básica nesse ponto é: terá caráter para tanto? Ou seguirá se agarrando a uma carcaça, num pálido simulacro de existência, numa auto-paródia? Qual é a sua escolha?

Fará a tempo?

E cadê força de vontade?

1.4.02

Tão longe, tão perto


Como chips e transmissão via satélite
Conectando-se a milhares de milhas
Todos estão juntos
Todos estão longe
Em uma unidade
Multiforme, partida, em milhões de pedaços

Como a megalópole
Como a tribo remota
Cada tribo, uma mente
Várias mentes tribais

A cola desses fragmentos
Passa pelo silício
Passa por cada fio
Ligado por dedos
Digitalmente fracionada
Digitalmente interligada