15.4.02

Romance de verão


Conheceram-se na praia. Ele, assíduo frequentador das areias; ela, branquinha, raramente pegava sol. Quem começou o assédio foi ele. Ela não lhe deu muita bola. Estava mais preocupada com seu protetor solar e sua barraca. "Sol?!? Deus me livre!", costumava dizer. E o sujeito que falava incessantemente se apoiava no seu guarda–sol, impedindo que ele cumprisse sua função. Seu fracasso era previsível, mas ele não era desses que costumavam desistir assim. "Vai ficar a temporada toda aqui, amorzinho?" , ele perguntou, sem perder o péssimo hábito dos diminutivos ridículos ao falar com os outros. A afirmativa deixou-o mais tranquilo. Se hoje ele não fora muito feliz na abordagem, ela que esperasse. Agora era questão de honra.

Ela achara o sujeitinho vulgar e convencido. Sua beleza, que devia fazer muito sucesso no balneário, não a encantou nada. "Cara convencido comigo não tem vez!", era quase seu bordão. Dispensara-o de um modo incisivo, mas educado, pra ele nem pensar em voltar. Mas ela tinha a plena impressão de que essa não seria a última vez em que se veriam.

Cidade litorânea, pequena, poucas opções de diversão noturna. Encontraram-se, casualmente – por parte dela – num barzinho agitado. Ele foi logo puxando papo. "Gostou do local, minha linda?" , mostrando que não tinha problema só com os diminutivos ao se dirigir a alguém. "Moro numa metrópole…como vou achar isso aqui bom?". Ela achou sinceramente que a resposta ríspida traria algum resultado. Ledo engano. Ele era insistente. E como ele mesmo havia decidido, era questão de honra.

A corte seguiu a noite toda. Não que ela fosse facilmente dobrável, mas as tequilas a mais a fizeram ver algumas qualidades no surfista. Ele era chato e inconveniente, mas também, e isso era inegável,divertido. Sem contar aquele tórax. Ela começou a achar que poderia se divertir um pouco com ele. A única coisa que a incomodava era a promessa, já antiga, de nunca fazer parte de um "romance de verão", desses em que você "conhece-beija-fode-nunca-mais-vê-na-vida". Não combinava com ela, e o que é pior: ela sempre acabava sofrendo, até com os relacionamentos mais supercificiais.

Ele já sabia que tinha a presa em suas mãos. Ela fora difícil, mas não muito mais que as outras. Essas garotas da capital são assim. Primeiro fazem jogo duro, depois liberam. Já sabia como funcionava. Talvez ela regateasse na mesma noite, mas na próxima,era certo. Mas ele não conseguia ficar com a mesma mulher mais de três dias. Ainda mais na alta temporada, com todas as turistas facilitando. Estava decidido em ficar com ela até comê-la. Depois, partiria para outra.

Ao contrário do que os dois imaginavam, acabou sendo bom. Foi intenso, forte. Eles, incrível, combinavam. Ele ficara deslumbrado. Ela, satisfeita. Ele desistira da idéia da noite única. Queria mais um pouco dela, aliás, queria mais muito dela. Dera a sorte grande, achando-a antes de todos. Ela gostara. Mas o que a deixava mais feliz era perceber que, apesar de ter sido uma das suas melhores noites, ela não estava presa, não acontecera aquela ligação que sempre a deixava a mercê dos homens. Se ele quisesse vê-la de novo, ótimo. Se não, melhor ainda.

Mas ele quis. E foi ao encontro dela dia após dia. Ela gostava, se sentia lisongeada. Mas era maçante vez outra. Não no sexo. Mas quem vive só de sexo? As conversas é que a chateavam um pouco. Ainda mais quando ele vinha com aquele papo de "Puxa, nunca descasquei antes! Olha minha pele!". Dizia que a culpa era dela, que ela o estava fazendo definhar. Ela achou graça da primeira vez. Mas a piada, recontada todo dia, cansava-a.

Em 15 dias, ela já começava a achá-lo chato em excesso. Queria dar um fim no caso. Mas ela sabia exatamente como se sente uma pessoa rejeitada. E não queria fazê-lo passar por isso. Além do mais, faltavam duas semanas e pronto. Fim de conversa. Já ele estava cada vez mais apaixonado por ela. Não sabia explicar o que era. Se era seu bronzeado vermelho, coisa de gente muito branca, ou seus cabelos curtos, ou suas mãos. Já nem pensava só em sexo, com certeza o melhor que já tivera, procurava outros motivos para tamanha paixão. Se sentia estranho, mas feliz. A única coisa que o incomodava era sua pele indo embora, em placas, sem piedade. Isso nunca tinha acontecido com ele.

Os dias foram passando, o desinteresse dela crescendo, a pele dele caindo. Ela já quase não falava mais com ele, assim que ele chegava, levava-o para seu quarto e arracava-lhe as roupas, apressada, faminta. Não que tivesse tanto desejo por ele. Tinha mesmo era repulsa do que ele falava, das suas conversas chatas, e agora, pra piorar, ele começava a criar feridas pelo corpo, de tanto que sua pele caía. "Será câncer de pele?" se perguntava. A cada abraço, mordida, arranhão dado, sua pele ia embora, resina podre, sem serventia.

Ele estava preocupado. Não com a pele, e sim com a frieza dela, com seu distanciamento. E por mais que ele adorasse só transar com ela, sentia falta de algo, de calor. Ela estava só o usando, já descobrira. Mas ele não só aceitava esse simulacro de atenção, esse amor falsificado, como não tinha forças pra se negar a isso. Ele fazia o jogo dela. E sabia disso.

Faltavam dois dias para ela ir. Ela foi se despedir, mais obrigada pelos amigos que a acompanhavam na viagem que por qualquer traço de estima. Não queria mais vê-lo. Encontrou-o em casa, no escuro. Parecia um leproso. Sua pele toda caíra. Ainda assim, ele sorriu para ela um sorriso sincero, puro. "Que bom te ver…queria que soubesse que te amo. Você não é só mais um caso de verão. Eu quero que você fique aqui…pra sempre. Olha só….estou definhando por você". Ela não acreditava no que ouvia. Esse rebotalho de gente, esse ser desfeito, incompleto, o mais imperfeito dos homens, teve coragem de propor algo desse gênero. A vontade dela era a de matá-lo. Pisar naquele corpo deformado pelo sol, possível foco de doenças incuráveis, um trapo. Seria fácil. Um bicho servil como aquele morreria por ela feliz, bastaria que estalasse os dedos. Se aproximou dele, com ódio, e lhe deu o beijo mais tenro do mundo. E amou-o mais uma vez.

Ela partiu no dia previsto. Ele nunca mais saiu do seu quarto. Seus amigos, preocupados, foram a sua casa alguns dias depois. Um cheiro forte de putrefação estava entranhado em todas as paredes, móveis, no chão. Encontraram no quarto apenas um esqueleto. Usava uma bermuda igual a dele.

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