2.4.02

A Queda


Atravessar a grande ponte no estado em que se encontravam era uma temeridade. O dia amanhecendo denunciava que a noite anterior havia sido longa e, pra variar, repleta dos excessos que sempre cometiam. Não fosse o cd da última sensação do rock americano no último volume, a viagem seria de um silêncio ébrio inquebrável. Não havia disposição para falar.

O dia seria lindo e isso se anunciava pela enorme bola amarelo-incandescente que vinha diretamente na cara do motorista. Incomodava, deixava-o quase cego, mas pelo menos impedia que ele caísse no sono. O carona tinha o privilégio de poder fechar os olhos, mas os cigarros que acendia um atrás do outro o obrigavam a catar o maço esmigalhado no bolso da frente da calça e procurar o isqueiro nos outros. Podia só usar o tato para isso, mas a visão era mais eficiente.

O som alto, a fumaça e o sol eram seus estimulantes no momento, mas eram o bastante apenas para que o torpor não os fizesse desmaiar. Iam devagar na pista. Apesar de estar bêbado de sono e álcool, o motorista sabia que ser imprudente seria loucura. O pequeno movimento da manhã era uma dádiva, para eles e para os carros que, por sorte, não estavam ali, correndo o risco de serem abalroados. Era um risco pequeno, até por não estarem fazendo barbeiragens, mas sempre era um risco.

– Para de fumar um atrás do outro, merda! Quero ligar o ar…

A primeira frase dita na viagem seria o prenúncio de uma discussão? Não, não havia ânimo para isso. O carona olhou para o motorista num misto de indiferença e sono, olhou pro cigarro, na metade, pôs na boca, tragou longamente e jogou o resto pela janela. Como uma pequena vingança, fechou a janela e expeliu toda a fumaça no carro já fechado, rindo.

– Filho da puta… disse o motorista.

Em condições normais, a fumaça não incomodaria o motorista. O excesso de fumaça desequilibrou a fórmula que os mantinham de olhos abertos – sol, som, fumaça – fazendo o motorista, por uns segundos, fechá-los.

– CARALHO…Que merda é essa?!?!

O grito do carona acordou o motorista. Infelizmente, ao abrir os olhos abruptamente, eles estavam voltados para o sol. A cegueira que o acometeu por apenas alguns segundos foi o bastante para ocasionar o acidente. Não houve tempo para desviar do carro parado no acostamento da ponte. O choque não fora muito forte, mas o impacto do cinto de segurança no estômago do motorista era o que faltava para que tudo o que ele tinha consumido na noite anterior fosse jogado goela fora. Atordoado, sujo e tremendo, passados alguns segundos intermináveis, ele falou com o carona:

– PORRA!!! Espero que você tenha morrido com essa, cara…porque senão eu te mato!!! Essa merda foi culpa sua, sua mula!

– Minha?!?!? Nem vou comentar isso…e se eu fosse você, não me preocupava comigo, não…Tinha um cara na frente do carro….e depois dessa merda que você fez, não tô mais vendo ele…
A raiva que estava do carona, o nojo do vômito em seu corpo, o cálculo do prejuízo com o carro e a imagem do seu pai acabando moralmente com ele mais uma vez estavam ebulindo na mente do motorista. Talvez por isso tenha demorado alguns momentos para perceber a gravidade do que tinha acabado de ouvir.

– Ahn?

A ideia ainda não tinha sido completamente absorvida pelo motorista. O que esse estúpido esta dizendo? Como tinha alguém e sumiu? É foda andar com bêbado! A razão voltou logo depois.

– Peraí, cara….vamos lá ver isso!!!

Tirar o cinto deu a mostra do quanto os dois haviam se machucado. Os dois gemeram de dor, colocando ambos a mão na barriga. O passo trôpego de bebida piorou muito com a dor que sentiam.
Os estragos nos carros não foram dos piores, mas o principal – e aterrador – era a ausência de alguém perto do carro avariado. Nenhum sinal de vida, além do motor do carro estar ligado, o que era uma prova irrefutável de que alguém estivera por ali. Só que não havia ninguém.

– Você tem certeza que viu alguém??? Você está muito bêbado para afirmar isso! Não PODE ter havido alguém aqui…senão, onde estaria? Você está louco!

O desespero do motorista mostrava que ele já tinha tirado a mesma conclusão desesperadora que tirou o carona.

– É, não tinha…O motor ligou sozinho..aliás, o CARRO chegou aqui sozinho…Claro que tenho certeza…e pra início de papo, não estou bêbado…não como você, seu desgraçado!!! Olha a merda que você fez!!! JOGOU O CARA NO MAR!!!

A frase dita assim, como um soco na cara, acordou de vez o motorista. Ele corre pra frente do carro avariado, procurando um sinal, uma pista do que pode ter ocorrido. Para seu horror, um pedaço de jeans no para-choque só confirma o acontecido. O motorista corre até o parapeito da ponte e olha para o mar. Nada. No próprio parapeito ele vê as manchas vermelhas incriminadoras. Não há mais a menor razão para dúvidas. Um homem havia sido atirado ao mar, e a culpa era dele.

Ou não…A culpa era da maldita fumaça que o carona havia jogado em sua cara. O primeiro sentimento que o motorista sentiu foi a confusão. O que poderia fazer agora? A confusão em sua cabeça dá lugar ao medo, assim que repara nas câmeras de controle da ponte, sob eles. Um crime… era o que tinha acabado de cometer. E ainda tinha sido filmado! A prisão era certa. Ele estava bêbado, bateu em um carro parado, era um assassino. Quando o motorista lança seu olhar ao carona, todo o medo passa por um instante. O que ele sente é o mais profundo ódio. Ele tinha achado o culpado. E ele tinha que pagar por isso.

O soco do motorista no carona não foi em cheio. Ele não percebia o quanto estava bêbado, o quanto estava bambo. Com o vento no alto da ponte, o golpe não foi firme. O carona não esperava por isso, e a surpresa, a bebida e o vento o fizeram desabar no chão. Sua tentativa de levantar foi inútil, não tinha firmeza nas pernas. Sua reação foi inesperadamente rápida para o motorista. O chute na altura no do joelho do motorista derrubou-o. Os dois se engalfinharam na pista, nem se preocupando com o trânsito ou as câmeras ou, o que é pior, a proximidade do parapeito da ponte. Trocavam golpes inúteis – erravam quase todos, e os certeiros, não faziam efeito nos corpos anestesiados pelo álcool – enquanto rolavam no chão. O vento estava forte. Eles nem chegaram a perceber a queda.

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Uma semana depois, eles nem eram mais notícia. No dia da queda, foram até manchete. Dois homens, aparentemente drogados, iniciaram uma briga sem motivo aparente no alto da ponte e caíram no mar. As testemunhas foram os motorista que passavam pela cena no momento. As câmeras da ponte não estavam funcionando. Os corpos não foram encontrados. Os jornais noticiaram que eles eram amigos há tempos, e seus familiares não imaginam o que pode ter ocorrido. A única pessoa que pode explicar algo do acontecido é o motorista do outro carro que estava parado na ponte, e que tinha sido abalroado pelo carro dos dois. O outro motorista estava sendo procurado, mas continuava desaparecido. E como o automóvel não tinha nenhuma documentação e era roubado, não havia como identificar quem o dirigia. A hipótese mais plausível era de que o dono do carro desaparecido tenha coagido de alguma forma os dois a pularem da ponte. Enquanto ele não for encontrado, o caso continuará sem solução.

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Duas semanas depois foi encontrado um corpo numa praia distante uns bons 30 km da ponte. Estava em péssimo estado, vários peixes pareciam ter matado sua fome com ele. O que se pode ver é que usava um jeans e tinha uma fratura na perna que não parecia ter sido provocada por algum animal marinho. Parecia que tinha batido em alguma superfície dura. Imaginaram que poderia ter caído de algum barco, quebrado a perna e, não podendo nadar, morrera afogado. Essa ideia foi logo descartada ao encontrarem, dentro da sua carteira, dobrada em um plástico, uma carta.

Era um bilhete suicida.

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