12.1.07

Paraíso



O sujeito morre e vai direto para o famoso juízo final. Está em uma sala que, poderia se dizer, fazia parte do Fórum Celestial. Um anjo o recepciona e lhe dá dicas.

Anjo - ...E fique de pé diante do Senhor!
Carlos - Claro, claro, vou ficar. Eu não imaginava que o céu fosse assim, tão informal. Parece mesmo um tribunal isso aqui.
Anjo - Mas aqui É um tribunal. Você será julgado por seus pecados agora.
Carlos - Ah, claro. É que eu estou tão tranquilo da minha ida pro Paraíso que nem lembrei disso.
Anjo - Vamos ver se será tão fácil assim.
Carlos - Que isso? Você não é uma espécie de anjo? É normal um cara da sua posição vir com esse papo pra me assustar?
Anjo - Não estou assustando. Apenas digo que as coisas nunca são tão simples como as almas recentes acham que serão.
Carlos - Você está me assustando sim! Deus não é infinito em sua misericórdia? Por que eu, que tive uns pecadilhos bobos aqui e acolá vou ter um julgamento "não tão simples"?
Anjo - Cale-se. Chegou o Senhor.
Carlos - Você é muito autoritário, sabia?
Deus - Silêncio!
Anjo e Carlos - Sim Senhor!
Deus - Vamos logo que eu tenho muito o que julgar hoje. Você faz ideia de quantos pecadores eu tenho que julgar por dia?
C - Mas o Senhor não é onipresente? Não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo?
A - Ihhhh...uma insolência dessas e o sujeito ainda quer um julgamento simples e piedoso
D - Você quieto também, anjo.
A - Desculpe Senhor
D - E você, está rindo de uma ordem do teu Deus?
C - Rsrsrsrs...não Senhor..Imagina!
A - Tá ferrado.
C - Quem disse?
D - Calem-se ambos!
A e C - Desculpe, Senhor.
D - Então, Carlos Alberto Antunes da Costa. Subiu aos céus na idade de 45 anos e...
C - Muito cedo na minha opinião, se me permite comentar, Senhor.
D - Quem sabe se é cedo ou não sou eu.
C - Tem razão. Desculpe.
D - Sem mais interrupções. Vi que você espera um julgamento rápido e um acesso direto ao reino dos Céus. É isso?
C - O Senhor ouviu minha conversa com o alado aqui? Ah...pra isso o Senhor é onipresente, né?
A - Levo o insolente direto pras profundas, Senhor?
C - Não se meta!
D - Os dois, calados. E espero que agora me obedeçam. Só falem se assim forem solicitados.
A e C - Sim, senhor.
D - Mas então, Carlos. Você espera ir pro céu com essa sua ficha?
C - Claro! Sempre fui religioso, sempre ajudei os pobres - quando pude - e o Senhor sabe que eu sempre acreditei em Vossa Senhoria acima de qualquer coisa.
D - Ah...É mesmo? Colocaria sua alma imortal como garantia disso?
C - Bom....eu acreditava muito na Seleção de 82 também. Mas o Sr. sabe no que deu, né?
A - Claro que ele sabe, incrédulo! Quem você acha que fez o Cerezo entregar aquela bola?
C - FOI O SENHOR?
D - A soberba de toda uma nação, ainda mais sendo um povo tão religioso, precisava ser coibida, meu filho. E anjo: delação é um pecado muito grave, sabia?
A - Desculpe, Senhor.
D - E o seu apetite, Carlos?
C - Que tem ele, Senhor?
D - Não acha que ele era um tanto quanto exacerbado?
A - Nota-se pela pança...
C - Anjos não têm sexo. Preferia que esse não tivesse língua!
D - O que eu já falei para vocês dois?
A e C - Desculpe, Senhor.
D - A questão, Carlos, é que sua fome há muito tempo deixou de ser apetite para ser gula.
C - Queisso, Sr.! Eu comia tão pouco!
D - Sei. Por isso aquelas feijoadas duplas toda sexta-feira, não?
C - Mas Senhor! A feijoada de sexta é sagrada!
D - Não blasfeme!
C - Desculpe, Senhor.
D - Eu até deixaria isso passar se fosse apenas a feijoada. E a sirizada? E os galetos? E os rodízios de massa? E os churrascos?
C - Saco vazio não para em pé, senhor!
A - De vazio esse saco não tem nada!
D - Anjo....
A - Desculpe, Senhor.
D - Você era uma draga de comida, Carlos.
C - Tá bom, Senhor, admito que várias vezes pequei pelo excesso nesse caso.
D - Pecar é o termo mais apropriado. Mas a gula não é o único dos seus pecados graves.
C - Não, Senhor? E tem mais?
D - Tem, claro que tem. De preguiça à luxúria, você fez de tudo um pouco.
C - Assim o Senhor me ofende!
D - Carlos: o nome disso é juízo final porque você está sendo julgado por tudo o que fez na vida. Acha mesmo que ofendo você? Sei de todas que você aprontou. Querendo esconder algo quem ofende aqui é você a mim.
C - Tá, Senhor...reconheço que tive meus pecadilhos.
D - Nem tão "ilhos", Carlos. Teve aquela vez que você roubou dinheiro da sua avó doente.
C - Aquilo não foi um roubo, Senhor! Eu estava fazendo uma antecipação compulsória de herança. E além do mais, a velhota não podia nem mais andar naquela época! Pra que ia precisar de grana?
A - Tsk, tsk, tsk...querendo justificar um pecado com esse linguajar politicamente correto? Roubo é roubo!
C - E o que você entende desse linguajar? Vai me dizer que o "politicamente correto" também é obra divina?
D - Não, Carlos. Isso veio lá das profundas.
C - Não me surpreende.
D - E sua preguiça? Essa talvez seja uma característica sua mais marcante que a gula.
C - Mas aí o Senhor há de concordar que é normal uma certa letargia depois de comer muito...
D - Isso não o exime do pecado. E eu nem quero falar da luxúria.
C - Luxúria?!?!
D - É. Você quando não pensava em comida, tinha sexo na cabeça o tempo todo.
C - E pensar é pecado?
D - Não se lembra do ato de contrição na missa? "Confesso a Deus Todo-Poderoso e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes..."
A - ...por pensamentos e palavras, atos e omissões".
C - Não se mete, Anjo
D - Agora ele acertou, Carlos. Não se lembra disso?
C - Lembro, Senhor.
D - Mas não foi apenas em pensamento que você pecou contra a carne, Carlos. Na sua obsessão sexual, você desejou várias vezes a mulher do próximo. E não apenas desejou, não é mesmo?
C - Ah...o Senhor está falando da Dina? A mulher do Ananias? Foi apenas uma vez. E ela dava mole pra todo mundo, né?
D - E isso justifica sua falha de caráter.
C - Não. Mas mais injustificado foi o meu mau gosto. Ela era feinha.
D - Pois então? Como uma pessoa com sua história pode pleitear uma lugar no paraíso?
C - Mas Senhor...claro que tive meus deslizes. Sou humano, passível de falhas, como qualquer outro. O Senhor sabe que, apesar de tudo isso, sou uma boa pessoa. Pelo menos, em essência.
D - Sei, claro que sei. Mas seus pecados devem ser expiados de alguma forma. Por isso, te condeno a vagar com essa sua lista de pecados, com letras garrafais, por onde quer que você vá. E aviso logo: muitas pessoas da sua família e amigos estão por aqui. Inclusive o Ananias. E a Dina.
C - Senhor! Mas isso é muito constrangimento pruma alma só! Será um inferno!
D - Não queira sequer imaginar o inferno, meu filho. Isso é apenas o seu purgatório. Anjo, leve essa alma para que pague por seus pecados.
A - Sim, Senhor.

Deus e toda a sala evaporam no ar. Sobram, em um espaço vazio, branco e indefinido, Carlos e o Anjo, que mal consegue conter os risos.

A - Deu sorte, rapaz. Essa pena, apesar de engraçada, é leve.
C - Você fala isso porque não conhece meu pai. Se ele estiver por aqui, vou ouvir até o final dos tempos.
A - Não se pode dizer que você não mereceu isso.
C - Ah, não posso?
A - Não. Não se esqueça que Ele ouve tudo - diz, sussurrando
C - Tem razão. Eu mereci isso.
A - Pois é.
C - Mas me fala um negócio, em particular...lá na Alemanha. O meião do Roberto Carlos também foi obra dEle?

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