5.2.06

Sem noção


Sem a menor noção da realidade, resolveu desafiar o destino inevitável. Tinha alguma ideia da roubada em que estava se metendo, claro. E não eram apenas os alertas dos amigos sinceros e as célebres e várias histórias com finais infelizes que conheciam que indicavam o resultado dessa "coragem": mesmo ele, intimamente, sabia que não ia se dar bem.

- Vou fazer merda - pensava.

Mas era teimoso. Não seria uma "quase certezazinha de nada " de que se ferraria que o impediria de tentar. E seguiu firme para seu holocausto. Seus conhecidos de longa data nunca o viram tão empenhado em uma conseguir algo, no caso, se estrepar. "Sem noção é pouco!" diziam os mais chegados. Por esse tempo, a máxima "se conselho fosse bom não seria dado, e sim, vendido" era seu bordão.

Sua preparação não foi muito apurada. Pra falar a verdade, ele não fez nada, era como um carro desgovernado em direção a um muro. E os resultados, de certa forma, seriam bem parecidos. Sentia-se irreparavelmente impelido e fazer o que faria. Como um meteoro atraído pela gravidade, mesmo que isso significasse sua desintegração.

Estava decidido. Era mais forte que ele. Pegou o telefone e ligou para ela. Estava mesmo apaixonado.

30.1.06

Amadurecimento

 (O outro lado)


A última pessoa que eu esperava encontrar, ali, caminhando em minha direção como se nada houvesse acontecido era ela. Ela mudou muito, não fisicamente, mas de uma forma mais sutil, quase imperceptível para quem não a conhecesse bem. Mas para mim, a quem ela não poderia guardar segredos, um mapa completamente visitado, minha garotinha estava quase irreconhecível.

Peguei-a pelos ombros, olhando bem para o rosto dela. Era ela, lógico, mas ainda estava em dúvida. Ela sorriu para mim e a certeza veio. Ela era a mesma ainda. Nunca mudaria a ponto de perder aquela expressão luminosa que sempre teve.

Ela falou primeiro. Não devia estar tão atônita com o encontro como eu. Claro que eu não devo ter mudado tanto quanto ela. Bom...talvez eu tenha uma expressão um pouco mais triste desde que ela se foi. Agora ela voltou. E eu não consigo falar nada.

Depois de um "oi" que não pude definir se alegre ou conformado, consegui falar algo: "Você não precisava ter feito tudo isso sozinha". Idiotice, pensei na hora. Eu sempre fui o maduro entre nós dois e a primeira frase que consigo falar depois de tanto tempo sem vê-la é um lamento de garoto de 2° grau.

Uma resposta sucinta - "eu quis assim", disse ela - mostrou que apesar de ter conservado o mesmo sorriso, ela era outra pessoa. Mais segura, certo ponto petulante. Uma mulher. A "garotinha" tinha partido e essa, aparentemente, não voltaria mais.

Convidei-a para beber algo. Um pouco por falta do que falar, muito pelo choque de a reencontrar daquela forma. Vê-la impassível diante de mim, que estava visivelmente abalado, me deu uma vontade absurda de tomar umas cervejas. Caminhamos juntos, falando inutilidades, trombando nossos ombros, na falta de coragem de darmos as mãos. O bar de sempre, a mesa de sempre e as bebidas de sempre (gin tônica pra ela; uma long neck pra mim). O clima entre nós, no entanto, não poderia ser mais diverso daquele a que estávamos acostumados. O tempo e nossos atos, errados ou não, mudaram tudo o que havia.

E aquela expressão de segurança, a atitude de quem domina uma situação em que eu deveria estar no controle foi me irritando. Eu não conhecia aquela na minha frente. Seu corpo era um simulacro: dentro, havia uma desconhecida. Por isso, quando aquela pessoa que eu ignorava completamente quem era tentou ser como minha garota, puxando minhas mãos para suas coxas por baixo da mesa, eu recuei. Ela estranhou. Aquela que eu conhecia sabia o quanto eu adorava esse tipo de coisa. Vindo dessa desconhecida, esse gesto só me causou uma surpresa incomum. Asco, talvez?

Ela ficou sem graça por uma fração de segundo, para logo depois estar completamente dona de si. Mas sua expressão, seu rubor inesperado e contido, seu olhar ofendido pela minha recusa a denunciou. Ela era minha garotinha, a mesma de sempre. Apenas tinha virado uma mulher.

O fascínio voltou nessa hora. Em questão de segundos, minha sutil repulsa por uma estranha que tentava se passar pela pessoa que melhor conhecia na vida se tornou uma mistura de ternura, afeto e tesão absolutos. Não sei ao certo se eram as cervejas que havia tomado, mas tinha certeza que, naquele momento, eu a amava de novo. E sabia que essa mulher, ao mesmo tempo tão misteriosa e tão cara-metade para mim, estaria agora e sempre em mim.

Mais cervejas, mais gin tônicas e eu poderia jurar que ela nunca havia sumido, que tudo era como antes. Nada havia mudado e éramos um casal perfeito, feitos um para o outro. O tempo, que no começo do nosso encontro parecia ser o mais cruel dos carrascos, tinha parado. E quando a vi se levantando para ir ao banheiro, meio tonta e vacilante, como antigamente, eu sabia o que tinha que fazer.

Mas o que me parecia tão correto e natural resultou no maior erro de avaliação que já tive. A tentativa de surpreendê-la com um beijo ao abrir a porta do banheiro só a fez rir. Um riso aberto, franco, sem uma ponta de arrependimento de rir e o que é pior: de me humilhar. Me lembro dela ter me chamado de babaca. E nunca vi esse adjetivo ser usado com tanta propriedade. Depois do que aconteceu, eu me sentia a própria definição do babaca.

Nos olhamos. Eu sem jeito, ela impassível. Aquela menina que há alguns anos me abraçaria e faria ao menos uma piada pra quebrar o gelo e melhorar meu humor não estava mais lá. Uma mulher, sem dúvida.

Voltamos para nossa mesa, pedimos a conta e ficamos em silêncio. Demos "até logo" um ao outro e seguimos em direções diferentes. As milhares de palavras que deveríamos trocar, perderam seu significado. "Não há amadurecimento sem perda" pensei.

22.1.06

Bem-me-quer


para Paula

Era uma garota simples, que cresceu uma mulher simples, mas, no fundo, era ainda uma garota. Simples, como sempre.

Não entedia porque as coisas não davam certo. Com a família, com os amigos, no trabalho, nos relacionamentos. Tudo ia bem, mas depois de algum tempo, as pessoas pareciam não entender que ela não queria nada muito complexo: só queria ser feliz. Mal sabia a moça que esse desejo não tem nada de simples.

Estava em pé no ônibus, espremida entre desconhecidos, sendo apalpada eventualmente - já acostumada, não ligava muito se não houvesse excessos - e sem que o rapaz adolescente sentado no banco à sua frente se oferecesse sequer para segurar sua bolsa.

Entre uma cotovelada e outra em um abusado, ela pensava. Não exigia muito. Não criava problemas pra ninguém. Só queria ter alguém que a respeitasse, que fosse medianamente educado e gentil (queria alguém que comprasse seus sorvetes e umas flores de vez em quando), que soubesse amar uma mulher decentemente - nem exigia fidelidade, desde que o cara fosse discreto. Mal sabia que querer alguém assim era exigir demais.

De repente, o estalo: podia ser essa sua imaginada simplicidade, essa modéstia de sonhos e desejos, a razão de todas as suas insatisfações. Por que não exigir muito? Por que não exigir muito de tudo?

Começou a mudar sua vida no ônibus mesmo, ao descer bem antes de onde deveria. Deu uma cotovelada mais forte naquele que seria o último cara a tirar proveito dela e ficou em um ponto longe daquele trabalho que detestava. Estava agora perto de um parque que nunca tinha entrado, só via pelas janelas dos coletivos que a levavam para o trabalho. Hoje, para estrear sua nova vida, iria conhecê-lo.

Procurou um banco e sentou-se. Depois de uma olhada mais cuidadosa, reparou que o parque não era dos mais bem cuidados. Montes de lixo não recolhido, mato crescendo entre os jardins. O próprio banco em que ficou estava meio quebrado. Não se importou. "Não tem problema, aqui está bom o bastante", pensou.

Teve o segundo estalo do dia. Mas todos os seus problemas não eram criados justamente por conta dessa sua atitude "bom o bastante"? Olhou o lugar onde havia decidido, de certa forma, começar vida nova e viu que ele não era nem de perto o local ideal. Sabia que precisava sair dali, mas parte dela achava que não havia nada demais continuar no parque. Ela entendeu que essa decisão - sair ou ficar - era significativa para o resto dos seus dias.

Pegou uma margarida, no meio do jardim descuidado, entre tufos de grama alta e lixo amontoado. Começou o velho jogo que gostava tanto de fazer na infância. "Bem-me-quer, mal-me-quer". De certa forma, uma volta aos tempos em que não tinha tomado as decisões, certas ou não, que norteavam sua vida até hoje. Agora ela arrancava as pétalas da flor não por uma paixão infantil, mas pela pessoa que mais merecia ser amada por ela, desde o começo.

No fim das pétalas, deu bem-me-quer. Ela se levantou e saiu do parque, sabendo exatamente o que tinha que fazer a partir daquele momento.

8.1.06

Imortalidade


- "Se a imortalidade fosse algo ruim, os deuses não seriam eternos"...
- Ahn?
- "Se a imortalidade fosse algo ruim, os deuses não seriam eternos"...
- Eu tinha ouvido. Eu só não entendi porque você falou isso.
- Li isso em algum lugar.
-E isso é motivo para você falar isso do nada?
- Não é do nada. Você não concorda?
- Nunca pensei a respeito. Você e essa mania de conversas metafísicas inúteis, sempre querendo discutir o sexo dos anjos.
- Quem falou em "anjos"? Eu falei em deuses! Não compare os deuses com....
- Não se trata disso! Você deve estar querendo me irritar.
- Que isso, querida?!? Só estou querendo ter um papo interessante com você.
- Só se "interessante", agora, virou sinônimo de "chato".
- Nossa...tem dias em que você fica intratável!
- Intratável é essa sua mania de pensar besteiras. Por que não pensa em algo mais prático e útil?
- Prático e útil?
- É
- Bom....
- O que foi?
- Você pode fazer uma coisa prática pra mim. E seria bem útil.
- O que é?
- Espreme essa espinha que me apareceu atrás da orelha?
- Ah, porra! Você está falando sério?
- Estou. Por que? Isso não é prático o bastante pra você?
- Foi só nisso que você conseguiu pensar?
- No momento, sim.
- Tá bom. Vem cá. Vira a cabeça. Isso. Só você mesmo pra ter uma espinha aí.
- Ai! Calma, mulher! Isso dói!
- Não seja chorão! Pronto....
- Parece que você gostou disso, né?
- Pelo menos foi algo prático, nada "filosófico".
- Putz. Tá vendo como você é?
- O que foi agora?
- Não sei se você é fútil por achar mais interessante espremer uma espinha a ter uma discussão filosófica ou se é sádica por gostar mais de me ver sentir dor a conversar algo mais profundo comigo.
- Putaqueopariu! Tá bom, mala! A imortalidade não é boa, seria uma punição para os mortais e os deuses só são eternos porque a eles cabe a responsabilidade de tomar conta e as vezes interceder por suas crias, a humanidade. Tá bom? Satisfeito agora?
- Pô...tá vendo? É um excelente ponto de vista! Não sei porque você não expõe mais esses seus insights! Eles são geniais. Você já tinha pensado no tema "imortalidade" antes da frase que eu disse? Sua resposta parece ser fruto de algum tempo de ponderação sobre o assunto.
- Não. Pensei em tudo isso agorinha mesmo.
- Sério?
- É. Foi só imaginar o que seria passar a eternidade tendo que ouvir suas abobrinhas. Nenhum deus seria tão cruel comigo.
- Nossa! Tem dias em que você...
- ...fica intratável. Eu sei, eu sei...

8.9.05

O Bloqueio

(para Thereza)



Tobias vivia sob a sombra do relativo sucesso do seu primeiro e único livro lançado. As críticas foram muito boas, as vendas nem tanto, mas até hoje são um reforço necessário aos vencimentos de professor universitário.

A boa recepção da sua estreia como escritor ajudou também sua carreira acadêmica. Depois de ver seu nome sendo bem falado nos círculos intelectuais mais gabaritados, Tobias recebeu convites para entrevistas e palestras e surgiram algumas oportunidades de emprego em melhores faculdades. Ele aproveitou tudo como pode. Não se sentia melindrado com a súbita atenção que lhe era dada. Sabia que seu trabalho merecia todo esse reconhecimento e se agora colhia os louros era por merecimento. Durante algum tempo pode viver melhor, não sem deixar de demonstrar orgulho e satisfação. Todos esperavam pelo próximo livro de Tobias, no qual - pelo menos assim acreditava a crítica especializada - ele mostraria a maturidade artística para entrar na galeria dos grandes escritores do seu tempo.

Mas o segundo livro não vinha.

Nos 3 primeiros anos a fama de menino prodígio das letras nacionais (tinha 27 anos quando saiu seu livro) lhe garantiu uma estabilidade nos meios literários. "Há de se ter paciência com escritores" todos diziam. Durante esse tempo, foi festejado no novo emprego, ainda o convidavam para escrever artigos e volta e meia recebia afagos da inteligenzzia em geral.

Depois de 5 anos seu nome era menos lembrado nos suplementos culturais. Algumas vezes, uma entrevista, sempre perguntando porque do sumiço do autor. Já não era "A" novidade na universidade em que trabalhava e a antiga admiração dos alunos se foi com eles, que já estavam se formando. Chegou a perder uma coluna que mantinha em um jornal. A única pessoa que sempre o procurava era seu editor, sempre perguntando quando Tobias teria novidades para ele.

- Em breve, em breve. Estou trabalhando nisso - era sua resposta padrão, há anos.

A realidade que ninguém poderia imaginar era que Tobias não conseguia mais escrever. Tinha perdido as contas de quantas páginas já havia ido pro lixo por não achar aceitável o que estava nelas. Enganava a todos falando que estava terminando seu próximo livro e quando perguntavam algo sobre o que tratava desconversava. Tinha inventado vários argumentos diferentes para pessoas diversas. Isso chegou a criar uma mística em torno de tão esperado livro. Ninguém sabia ao certo quando ou do que trataria o próximo trabalho do Tobias.

O problema é que realmente ninguém sabia. Nem ele mesmo.

- Por que você não viaja? Tira uma licença da universidade, vai pro exterior. Espairece as idéias. Isso pode revigorar suas ideias. Se você prometer me trazer umas 100 páginas, consigo arrancar mais um adiantamento na editora. Vai ser difícil, mas eu tento.

Mário, seu editor, sempre tentava incentivar Tobias. Não apenas por motivos comerciais. Acreditava no seu talento e acabou se afeiçoando aquele cara que há alguns anos não passava de um rapazote cheio de confiança e um manuscrito debaixo de braço.

- Não é uma questão de sair do lugar, Mário. O problema é comigo. Detesto usar esses chavões, mas estou com um bloqueio. Não sei o que fazer. Ultimamente nem dormir eu tenho conseguido.
- Tobias. Eu te conheço, rapaz. Quando fez aquela viagem pra Europa você voltou cheio de idéias ótimas. Aliás, que fim levaram todos aqueles argumentos.
- Lixo, todos. Eram uma porcaria.
- Não eram Tobias! Você precisa desenvolver as histórias com mais paciência. Não pode ir desperdiçando boas idéias assim.
- Não eram boas.
- Você não deu chance para elas virarem boas. Vai, eu te empresto a grana, se for o caso. Você me paga com calma. Se naquela viagem de dois dias você voltou mais criativo, imagine depois de algumas semanas.
- Isso não vai adiantar, Márcio. Eu me conheço.
- Porque ao menos não tenta?

Tobias não gostava muito desse tipo de intrusão na sua vida, esses conselhos impostos e não pedidos, essa forçada de barra. Mas não era todo dia que tinha uma oferta dessas. Viajar para Europa, sem se preocupar muito com dinheiro? Não era de se recusar. E, no final das contas, podia realmente ajudar de alguma forma com seu livro.

- Vou pensar - disse, sem querer dar o braço a torcer.

Foi pro micro assim que Mário saiu. Tentou escrever um pouco, já com a cabeça em outro continente. Não adiantou. Não se satisfez com nada que escreveu. Apagou o arquivo e resolveu deitar. Imaginou que descansado e com novas perspectivas pudesse render mais.

Acordou no meio da madrugada, depois de um sono carregado de sonhos estranhos. Não se lembrava exatamente com o que havia sonhado. Levantou-se, foi até a cozinha, bebeu uma água. Na volta para o quarto, viu seu computador desligado, no escuro do seu escritório. Resolveu tentar escrever um pouco. Ainda estava com sono, mas achou melhor dar um tempo antes de voltar à cama. Queria desanuviar um pouco do sonho que teve. Escreveu por uns 40 minutos. Para sua surpresa, achou bom o que havia escrito. "Deve ser o sono", pensou. Resolveu salvar o texto e ir dormir. Pela manhã, de cabeça fresca e descansada, olharia o que fez com mais cuidado.

Os resto da noite também foi povoada de sonhos, dessa vez mais claros. Não conseguia se ver neles, o que achou bastante estranho. O normal era tomar parte das histórias - histórias? Por que chamar seus sonhos assim? - criadas pelo seu subconsciente, não só tomar parte, mas ser seu protagonista.

Dessa vez sonhava com um rapaz chamado Calvin, filho de americanos que moravam aqui na época do governo militar. Via nitidamente sua saga, evoluindo de um mero garoto mimado, cria de um lar formado por um presidente da subsidiária local de uma grande multinacional e uma intelectual da direita ianque a um combatente nas linhas de frente da clandestinidade esquerdista. A história era boa e passava como um filme em sua mente. Mas tinha a clara sensação de que já a conhecia, até seus mínimos detalhes.

Acordou com Calvin e suas aventuras na cabeça. Poderia até escrevê-la, mas não achava justo. Sentiria-se plagiando a si mesmo. Quis deixar as invenções do seu inconsciente para sua mente, sua real escritora. Foi até o micro. Lembrou-se que tinha que reler o que havia escrito na noite anterior. Não conseguia se lembrar do que se tratava, só tinha a impressão de que havia gostado.

Abriu o arquivo. Levou um susto. Tudo o que havia escrito era sobre Calvin. Contava como a família do seu herói inconsciente havia chegado ao país e terminava exatamente onde começara o sonho que tinha tido quando voltou a dormir.

Não entendia o que havia acontecido. Nunca se utilizou do que criava dormindo antes. Sempre fora um escritor cerebral, com método. Precisava estar sempre lúcido para escrever. Imaginava suas tramas inteiras, personagens, situações, desfechos, antes de sentar para escrever. No máximo, fazia anotações, que utilizava quando estava diante do teclado. Por que dessa vez criava assim, sem querer?

Qual foi seu raciocínio, a seguir? Não queria usar a história do Calvin, não achava sua, apesar de ser. Mas ter descoberto que havia começado a escrevê-la antes do seu último sonho lhe fez cogitar que teve o sonho influenciado pelo que havia escrito e não o contrário. E, pensando bem, quem era ele para tentar explicar como funciona a inspiração? Ainda mais quando ela chega com tanta força, tão bem estruturada e, melhor, com tão bom argumento. Gostava do Calvin e da sua vida. E ele não podia desperdiçar uma boa história.

Sentou-se e colocou no micro todo o sonho que tinha tido. Ficou bom, bom como há muito não conseguia escrever. Estava satisfeito. Em menos de uma hora de trabalho, já tinha escrito cerca de 30 páginas. Com essa velocidade, teria um livro inteiro, o tão esperado segundo livro, em menos de um mês, já contando a revisão. Ligou para Mário. Teve que deixar um recado em sua secretária eletrônica. Contava apenas que tinha boas notícias e pedia que ele retornasse assim que pudesse.

Saiu para dar uma volta. Era uma bela manhã de sábado. Deu uma caminhada no Centro da cidade, que além de sempre inspirá-lo, era também o cenário da história. Passou pelos prédios antigos, ruas seculares, feliz consigo mesmo. Curiosamente, apesar de estar imerso nos lugares por onde Calvin viveria suas aventuras, não conseguia pensar na continuação da história. "Estou muito excitado com isso tudo, é isso", pensou. Imaginou que estando diante do micro e do que já havia escrito, a história seguiria seu fluxo normalmente e ele escreveria com a mesma fluidez. Caminhou mais um pouco, almoçou um sanduíche no seu boteco preferido, tomou alguns chopes para acompanhar. Achava que merecia. Chegou a se desligar da trama parada no meio do caminho. Sabia que, quando chegasse à casa, tudo se resolveria.

Só que não se resolveu. Diante do arquivo aberto, com metade da folha no monitor em branco, não saia nada. Forçava a colocar Calvin pelas ruas que tinha acabado de passar e nada o agradava. Tentou diversas opções, nada o agradava. Se exasperou um pouco. Por mais que se concentrasse, o resto da história não vinha. Não sabia o que fazer. Estava apagando pela décima vez um parágrafo que detestou quando tocou o telefone. Atendeu com raiva.

- O que aconteceu? Sua voz não é de "boas notícias" . Era o Mário.
- É você...Eu tenho boas notícias. Mas agora estou meio irritado, só isso.
- O que aconteceu, afinal? Se tem boas novas, por que a irritação? E quais são as boas notícias?
- Comecei a escrever um livro novo ontem. E está bom. Muito bom, na verdade.
- Jura?!?!?! Mas isso é maravilhoso, Tobias! Por que isso haveria de te irritar?
- Não foi isso que me irritou, obviamente. O que me irrtou foi eu ter escrito quase 30 páginas em poucas horas...
- O que você disse?
- Que não foi isso que me irritou.
- Não! 30 páginas em poucas horas!?!?! Meu filho! Isso é demais! Você voltou a velha forma! Tenho que ler isso agora. Estou...
- Calma, Mário! Você está muito empolgado. Nem me deixa falar....
- Claro, claro...desculpe. Mas você entende esse empolgação, não?
- Entendo. Mas o que me irrita é que já estou há mais tempo diante do micro do que quando escrevi as 30 primeiras páginas e até agora não escrevi uma linha que prestasse.
- Agora é você quem precisa ficar calmo, Tobias. As coisas não funcionam assim, você bem sabe. Deixe a história maturar dentro de você. Você teve um arroubo criativo. Não esperava que manter o mesmo ritmo, não é mesmo?
- Não o mesmo ritmo. Mas esperava ter algum ritmo. Ainda mais depois que passei a tarde no Centro, no lugar onde se passa a ação do livro.
- Tá explicado! Você almoçou naquele bar, não foi?
- Foi, comi um sanduba e bebi uns chopinhos. Mas o que isso tem a ver?
- Quantos você bebeu?
- Uns 4 ou 5. Estava alegre e....
- E você ainda que escrever com todo esse álcool na cabeça, Tobias?
- Eu já escrevi com muito mais álcool na cabeça, Mário.
- Eu sei, eu sei. Mas lembre-se: você não é mais o prodígio que era. Descanse um pouco, clareie suas idéias e volte ao trabalho. Mais tarde eu passo aí.

Tobias não concordava com a teoria etílica do seu bloqueio repentino, mas achou melhor mesmo dar uma descansada. Se empolgou na caminhada e estava mesmo cansado. E, isso não podia negar, os chopes davam mesmo uma certa sonolência.

Acordou assustado, com a campainha tocando. Olhou o relógio, eram onze da noite. Só podia ser o Mário. Levantou-se e abriu a porta.

- Desculpe, Tobias. Você não me ligou e não aguentei esperar. Tinha que ler os primeiros capítulos logo.
- Fazer o que, não? Você nunca primou mesmo pela paciência. Entra. Vai precisar esperar eu imprimir o arquivo.
- Isso não demora muito.

Foi até o computado, que havia deixado ligado com o arquivo aberto antes de deitar. Em alguns segundos o barulho da impressora puxando as folhas em branco começou. Mário estava mesmo ansioso, foi pegando logo a primeira página impressa e começou a ler o texto. Tobias achou engraçado o desespero do amigo. Enquanto via a impressora funcionar, leu o último parágrafo que havia escrito.

Aconteceu de repente. O resto da história veio inteiro na sua cabeça, de uma vez só. Quase podia ver as palavras digitadas na folha do seu monitor. Começou a digitar apressado.

- Tobias, até agora está muito bom....o que está fazendo?
- O que parece que estou fazendo, Mário? - respondeu, sem parar de digitar ou mesmo olhar para o amigo.
- Sei que está escrevendo. Mas você nunca escreveu na frente de ninguém, nem de mim.
- Pois é. Mas o resto veio agora. Não posso esperar você acabar de ler tudo, se mancar e ir embora.

Mário estava bestificado. Tobias nunca havia permitido que ninguém ficasse por perto quando escrevia. E nunca tinha visto também alguém escrever tão rápido. Tobias parecia uma estenógrafa de tribunal.

- Você....-começou Mário, com medo de atrapalhar - você quer que eu saia?
- Não precisa. Desde que você fique quieto - disse Tobias, ríspido.

Mário nem conseguia ler direito as folhas que tinha nas mãos. Estava espantado com Tobias. Ele parecia um possesso. A impressão que tinha era de que o teclado não resistiria mais vinte minutos de tecladas tão firmes e rápidas. Antes que conseguisse terminar de ler as 30 páginas impressas, Tobias gritou um "acabei". Tinha escrito mais vinte e tantas folhas, num fôlego só.

- Acabou o livro?
- Claro que não, Mário. Não tenho mais ideias, por hora. Só isso.
- Mas...Você viu como escreveu? Parecia possuído.
- Quem garante que não era exatamente isso? - disse Tobias, enigmático.

Mário terminou as folhas que tinha nas mãos, depois terminou as que Tobias tinha acabado de criar. Estava pasmo. Além de ser um excelente texto, numa primeira olhada não precisava sequer de uma revisão. Parecia pronto para ir ao prelo.

- Não exagera, Mário. Ainda tenho que revisar isso. Com calma. - disse Tobias, depois de ficar em completo silêncio enquanto o amigo lia. Do canto escuro da sala em que estava, fumava um cigarro. Dele só se via a fumaça.

Ficaram em silêncio por uns momentos. Mário sabia que algo estranho se passava com Tobias. Tobias também sabia que não estava agindo normalmente. Mas o que os dois sabiam é que algo estranho não é necessariamente ruim. E se essa mudança repentina no comportamento ajudasse Tobias a escrever, não haviam do que reclamar. Pelo contrário.

- Acho que vou dormir, Mário. Quero escrever mais pela manhã.
- Tá certo. Está tarde mesmo. Se escrever algo cedo, me manda por e-mail.
- Combinado.

Tobias foi para cama, sem querer pensar muito no que se passava. Não estava com sono, mas deitou-se. No escuro, acendeu outro cigarro. Não tentava mais pensar em Calvin e no desenrolar dos seus feitos. Só pensava no porque de precisar sonhar para escrever.

Acordou só no dia seguinte, com o sol esbofeteando-lhe o rosto. Correu para o livro. Tinha seu último sonho ainda vívido na cabeça e não queria esquecer nenhum detalhe. Escreveu tomado pela febre que o acometia desde que começou a ser um relator de sonhos. Em 45 minutos tinha escrito mais 20 páginas. Então a fonte secou.

Mandou as novas páginas para o Mário e foi tomar um café na padaria. Voltou para casa, conversou com Mário pelo telefone por uns minutos, leu os jornais de domingo, ligou a tv apenas para ver que não havia nada que prestasse. Voltou para o micro.

- Não vai adiantar nada, eu sei - pensou.

Era fato. Suas idéias só surgiam na inconsciência do sono. Estava com quase uma centena de páginas escritas, algumas, das melhores que jamais havia produzido. E não sabia de onde vinha a ideia criadora. Era frustrante. Pior, exasperante: saber que talvez nunca considerasse seu de verdade o que pode ser o melhor trabalho já feito por ele era de matar.

- Ora, diabos! Os sonhos são ou não meus? Por que me envergonhar disso? - pensou depois de meia hora estático de frente para as páginas no monitor.

Não tinha muito o que fazer. Domingos são dias normalmente chatos e esse estava especialmente monótono. Voltou para tv, ficou olhando os programas, sem realmente ver. Depois de algum tempo, acabou cochilando. Acordou de súbito, uns 15 minutos depois. E com novas ideias. Escreveu apenas seis páginas. Teve a certeza de algo que já desconfiava: a duração do seu sono determinava o andamento do livro.

Tobias então teve que se adaptar a esse novo método de escrita, que era seu, mas que não fora criado por ele. Passava a maioria do tempo dormindo. Não saía mais de casa. Quando tinha afazeres na rua, andava com um bloco e uma caneta, para a eventualidade de um cochilo no ônibus ou em alguma fila. Seus amigos ligavam e sempre quem atendia era sua secretária eletrônica. Falava apenas com Mário, mais para avisar que tinha mais material e que o enviaria em breve. O amigo estava adorando o livro, só não compreendia a mudança de comportamento de Tobias. Durante um tempo, resolveu aceitar que talvez fossem excentricidades de artista. Chegou mesmo a pensar que seu novo modo de agir fosse necessário para que Tobias voltasse a escrever. Quem garante que a fórmula antiga, que usou para escrever o primeiro livro, teria que funcionar no segundo?

Só que o tempo foi passando e o livro não terminava. Tobias tinha planejado um volume com no máximo 300 páginas - o que ele sempre achou um exagero para contar uma história - e ele já estava com quase 500. Mário dizia para deixar fluir a trama, para terminar quando ele pensasse em um ótimo final para o livro. Mas o final não vinha. Os sonhos sempre ditavam os rumos de Calvin, exatamente na seqüência de um para o outro, mas aparentemente não estavam sequer próximo de um encerramento.

Apesar de estar gostando muito do resultado, Tobias começava a ficar tenso. Que esse segundo livro era muito melhor que o primeiro, ele não tinha dúvidas. Mas por não ter planejado a estrutura da história, ele não tinha o controle sobre ela. Não sabia como, e pior, nem quando o livro terminaria. Isso começava a tirá-lo do sério.

Ele queria dar um final logo para o livro, apesar de saber que ele estava tão bom que tinha que acabar por si mesmo. Tomou a decisão de não sair mais de casa enquanto não colocasse um ponto final ao livro. Comunicou sua decisão ao Mário, pediu que ele resolvesse o que aparecesse. O amigo entendeu e até apoiou.

- Se você precisa disso para acabar, ótimo. - respondeu.

Ficou semanas sem ver ninguém além do Mário. Dormia, acordava e escrevia febrilmente. Essa era sua rotina diária, sem modificações. Não via mais TV, não lia mais jornais. Era apenas ele, seus sonhos e seu livro. E o fim não chegava.

A ansiedade de por um fim definitivo à história causou a única coisa que não poderia acontecer: Tobias começou a ter insônia. Tentava dormir, girava na cama e despertava. Não chegava a escrever sequer duas, três páginas. Ligou para o editor.

- Mário, vou parar de mandar as partes do manuscritos para você.
- Ahn? Mas....por que isso agora, Tobias?
- Acho melhor, Mário. Isso me pressiona.
- Tobias...que tal parar de viadagem? Qual é o problema, afinal?
- Não consigo terminar o livro, não parece óbvio? E qualquer tipo de pressão atrapalha.
- Não vejo como isso pode ser uma pressão.
- Pra falar a verdade, nem eu. Mas eu prefiro te mandar tudo quando acabar.
- "Acabar" seria bom mesmo. Você já está na página 700. Vamos ter que dividir seu livro em dois. Ou três.
- Nem pense nisso, Mário! O livro é único e....Deixa pra lá! É por essas e outras que não vou mais te mandar o que estou escrevendo.
- Quem sou eu para atrapalhar o grande "artista" - disse Mário, irritado - se você acha que vai te ajudar a terminar logo esse diabo de livro, é melhor pra todos. Você parece um lunático desde que criou esse Calvin.

Tobias quase contou para o amigo o motivo do mistério, mas achou que se Mário soubesse que ele estava plagiando o próprio subconsciente - ou que pelo menos acreditava nisso piamente - aí mesmo que seria chamado de louco. Desligou o telefone e tentou dormir. Não conseguiu.

Resolveu sair de casa pela primeira vez depois de dezenas de dias. Era como se tivesse tido um pequeno surto. Bebeu em todos os bares que encontrou abertos, fez amizades e desafetos entre a fauna boêmia. Chegou à casa trôpego, dia já claro. Teve apenas um raciocínio ligeiramente sóbrio antes de desabar na cama.

- No estado em que estou, vou dormir tanto que conseguiria terminar uma nova versão da bíblia. - pensou antes de apagar por completo.

Durante algumas horas, Tobias dormiu como uma pedra. O problema é pedras não sonham. E foi justamente isso que aconteceu. Tobias teve um sono pesado e despovoado de sonhos. A única coisa que ele tinha conseguido com a bebedeira foi uma ressaca avassaladora. "Mesmo que eu tivesse sonhado, não conseguiria escrever nada", pensou com sua cabeça inchada e surpreendentemente ainda bêbada. Passou mal o resto do dia, prostrado na cama, sem ideias, sem sono, apenas mal estar. Agora ele sabia que álcool não ajudava. Se sua insônia continuasse essa noite, teria que tomar alguma providência.

As horas passaram, lentas. O sono de Tobias não veio. Eram duas da manhã quando ele resolveu tomar calmantes. Tomaria uma bela dose, se sentaria na frente do micro e dormiria ali mesmo. Queria acordar e já terminar com o trabalho. Antes que o trabalho terminasse com ele.

Tomou três comprimidos, que resultaram em um amolecimento físico e mental de Tobias. "Não é o bastante", pensou. Pegou mais três e engoliu com ajuda da cerveja que estava à sua frente. Sentiu sua pressão cair, estava até com frio. "Agora vem", estava ele, quase feliz. Antes de apagar pela segunda vez em menos de 24 horas, novamente Tobias teve um breve momento de lucidez.

- Talvez eu não devesse tomar esse remédio estando bêbado - foi a última coisa que conseguiu pensar.

Mário só começou a ficar preocupado na segunda semana sem contato com Tobias. Eles tinham combinado de não se falarem, nem por e-mail, até que o livro estivesse pronto. Mário se controlou para não ligar e não ligou. No meio da segunda semana sem que Tobias desse sinais de vida, pediu por e-mail que o amigo mandasse notícias. Não teve resposta. Ligou dois dias depois e ninguém atendeu. Resolveu ir até a casa do amigo. Bateu na porta e nada. Não ouvia nenhum som de dentro do apartamento. Esperou um tempo. O porteiro não via seu amigo há muito tempo, pelo menos não no seu turno. Foi até o boteco em que Tobias costumava almoçar e não o viam há dias. Perguntou ao jornaleiro, ao apontador de jogo de bicho. Ninguém sabia de Tobias.

Teve um mal pressentimento. Correu até o apartamento, chamou o porteiro, arrombaram ambos a porta. Não houve reação ao barulho provocado. Mário correu até o escritório de Tobias. Encontrou o amigo sentado na cadeira, braços pendidos, cabeça solta, boca entreaberta. A saliva escorria viscosa pelo seu peito. Mário pegou o pulso do amigo. Sentiu a pulsação, um sopro, mas estava lá. Ligou para emergência, já olhando o frasco com comprimidos em cima da mesa.

Tobias estava em coma profundo. No hospital, perguntaram ao Mário se ele imaginava porque Tobias havia tentado se matar. Respondeu que não fazia a menor ideia. Que tirando a angústia por não conseguir terminar o livro que estava escrevendo, não conseguia ver Tobias como um suicida. Muito menos quando, segundo o próprio, o amigo estava prestes a acabar a história de Calvin.

Ninguém poderia saber, mas para Tobias, a história ainda não acabou.

3.5.05

Fim de caso



Você vai arranjar outra em pouco tempo. Alguém que realmente te mereça.

É foda. Não basta estar sendo bicado, você ainda tem que aturar a comiseração alheia. E esse papo de "arranjar outra"? Parece que eu vou ao mercado pegar uma mulher que esteja dentro do prazo de validade e pronto, já tenho um relacionamento novo! As pessoas parecem não crer que alguém possa passar o resto da vida sozinho. Isso acontece, e muito! E na maioria das vezes, nem é por opção: arranjar alguém que se de bem com a gente é complicado. Isso sem falar no detestável "alguém que realmente te mereça"....

Não podemos considerar que demos errado. Foi ótimo enquanto durou. A culpa não é sua...eu que não estou legal...

Ah, o revisionismo pós-término! É, você está me dando o fora e "não demos errado"... O que seria necessário para considerarmos que demos errado? Que você me desse um tiro na cabeça? E lá vem ela com outro chavão de fim de namoro: "A culpa não é sua". CLARO que a culpa não é minha....quem está terminando é você, pombas!

Terminamos agora, mas não quero perder sua amizade. Sempre vou gostar de você, quero sua amizade, sempre, sempre...

Caralhas...era o que eu menos queria ouvir. Amigos eu tenho muitos, não preciso de outros. E você quer ser minha amiga, né? Então quero ver aguentar uma sequência de domingo comigo: pelada-cerveja-Maracanã-cerveja. E com aqueles assuntos que você ADORA: mulher e futebol. Se você não puder me acompanhar nisso, não vai poder ser minha amiga. Combinado?

Estou muito triste com isso tudo (snif..)

Eu namorava uma masoquista e não sabia. Se está sofrendo, por que terminar? Gosta de se sentir mal? E ainda chora, a covarde...Se pensa que vai me sensibilizar com essas lágrimas, tá lascada. Você arranjou isso tudo, eu não queria terminar, você sim. Aguente a barra, porra!

- Fala alguma coisa! Esse seu silêncio tá acabando comigo...

- O que eu posso dizer? Se você acha que isso é o melhor pra nós dois, eu só posso aceitar. Sabe que eu sempre concordo com o que você diz...


29.4.05

Rotina


Quando chegou ao ponto às 4 da madrugada e viu que perdeu ao mesmo tempo um táxi e o ônibus que serviria para ele - e que provavelmente demorariam muito para aparecerem novamente - foi que ele sentiu que havia exagerado. Estava bêbado e com a garganta inflamada depois de tanto álcool e nicotina. Mas isso não o impediu de estar com uma lata de cerveja na mão direita e um cigarro na esquerda.

Sentado, a cabeça doendo e a língua sem tato, se perguntou onde diabos seus planos tinham mudado de rumo para estar nessa situação. Havia projetado outra vida para si mesmo, em nada parecida com a que tinha agora. Emprego, sua casa, até seus amigos, que teoricamente só o são por sua própria escolha, não eram o que gostaria que fossem.

Queria saber o que o levava sempre para outros caminhos que não os certos. Tinha um exemplo prático, literalmente, à mão: mesmo com a garganta arruinada e meio zonzo de bêbado, fumava com a esquerda e bebia com a direita. Olhou com nojo para as mãos, sem saber se o asco era para o que segurava ou se para elas. A segunda opção era a mais coerente no momento.

Ônibus que não o serviam passavam, deixando seu rastro de vento e frio. Os raros táxis que passavam estavam todos ocupados, com pessoas mais sortudas que ele. Estava com raiva dessa situação e com mais raiva ainda dele mesmo, por haver, novamente, caído nela.

Burro! - sussurrou para si mesmo, enquanto pisava no cigarro, já praticamente no filtro.

Mas apesar de toda essa aparente revolta consigo mesmo, nada demonstrava que ele procuraria, com o afinco necessário, mudar. Desde a sua posição no ponto de ônibus - prostrado, encurvado e tossindo em um banco público - até o fato de se render à cerveja e ao fumo mesmo quando menos deveria fazê-lo, demonstravam seu comodismo. Na verdade, o conformismo pode muito bem conviver com a revolta. Basta que se tenha inteligência o bastante para saber o que está errado e que não se tenha força de vontade para mudar o que está errado.

Seu ônibus chegou 40 minutos depois. Ele não tinha certeza se era o primeiro deles, depois de tantas cochiladas que havia dado. Subiu irritado no coletivo, descontando esse sentimento na maneira como perguntou ao cobrador se essa demora era normal. Recebeu um "é sim" dos mais desanimados que já ouviu.

Sentou-se em uma das várias poltronas vazias do ônibus, abriu a janela e deixou que o vento frio batesse diretamente no seu rosto. Não sentia calor. Queria que o frio o mantivesse acordado. Passar do ponto onde deveria descer e ter que caminhar, ébrio e chateado como estava, era a última coisa que ele desejava que acontecesse. Não que não estivesse acostumado. Já havia acontecido várias outras vezes, em situações parecidas com aquela. Mas seria um final de noite (dessa noite em especial) "perfeito" demais.

Não hoje. Nunca mais! - pensou, alguns momentos antes de cair no sono, apesar do vento no rosto, apesar da precaução tomada, apesar da revolta que sentia e apesar do sincero sentimento de mudança.

Acordou vinte minutos depois, três paradas depois da sua casa.

28.4.05

A casa



A casa estava abandonada há algum tempo. O cheiro de bolor era forte e tinha contaminado cada pedaço das paredes. Seria preciso uma limpeza grande para ela voltar aos velhos tempos. Lembrava-se desses tempos. Momentos bons e ruins, como em todas as casas. Nada que justificasse o abandono.

É preciso tirar os móveis, espantar a poeira, abrir as janelas, deixar o sol entrar. Não só o sol, mas a chuva, o vento, o frio, o cheiro de mar, de sangue e das promessas não cumpridas. Era tempo de voltar a habitar a casa. Mesmo que ela vá ficar mais vazia do que antes, como seu próprio dono, agora, está mais vazio.

Vamos a reforma. É hora de povar à casa novamente, nem que seja com os fantasmas de sempre.

29.9.04

O Blecaute



Foram precisos alguns segundos antes que todos notassem que não foi o dj que parou com "Come Together" do Primal Scream propositadamente no meio do refrão. Os frequentadores do clube ainda cantaram a música um tempo, até notarem que tinha havido uma falta de energia e não apenas na pista, mas em toda casa.

Fernanda era uma das que cantaram o refrão, mesmo depois da música ter parado. Ela estava de olhos fechados, curtindo o efeito do ácido que tinha tomado e foi das últimas a reparar no blecaute. Ela só se deu conta do ocorrido quando as pessoas à sua volta começaram a gritar. Não eram gritos de medo. Sentia-se a excitação em cada berro emitido. Fernanda não precisaria nem ter sentido o clima do público. Ela já estava mesmo excitada.

Não sabia ao certo onde estava Caio. No meio do ligeiro caos criado, ela não tinha certeza se ele já tinha voltado do banheiro. Isso era uma das coisas que a irritavam nele, a falta total de timing. Ela tinha pedido que ele ficasse e dançasse com ela a música. Ele disse que não aguentaria esperar, que voltava rápido.

As pessoas começaram a se esbarrar na pista. Ela não sabia se Caio estava ou não por perto. Mas ela não fazia, naquele momento, a menor questão de averiguar isso.

Passaram-se uns quinze minutos antes que a energia retornasse. A gritaria generalizada havia parado bem antes disso. Tirando um ou outro ruído na pista, todos se silenciaram, por alguns momentos. O retorno das luzes foi meio constrangedor para todos. O que tinham feito e com quem era uma incógnita para quase todos. Homens, mulheres, todos estavam confusos, mas não necessariamente desgostosos. A volta da energia, tão repentinamente como havia acabado foi como um choque para Fernanda. Serviu para trazer sua lucidez de volta, apesar de ainda estar ligeiramente confusa. Resolveu procurar por Caio e foi encontra-lo no bar do clube. Estava calmamente bebendo uma cerveja.

- Porra, Caio! Onde você estava?
- Estava no banheiro, Nanda. Eu tinha te avisado!
- E demorou esse tempo todo?
- Não estava achando o papel no meio daquela escuridão.
- Você acha mesmo o momento apropriado para piadas?
- Não começa, Nanda! O que foi agora?
- Por que você não voltou pra pista? Por que não me procurou, caralho?
- Eu voltei pra pista. E também não percebi nenhum esforço seu pra me encontrar.
- Não se faça de idiota, Caio. Você sabia onde eu estava, e não o contrário...

Apesar da discussão não ser a única no lugar e muito menos a única por causa do apagão, parecia que era a que mais chamava atenção. Caio pagou a cerveja e puxou Fernanda pelo braço. "Não vamos fazer uma cena aqui. Se você quer brigar, vamos brigar no carro", disse.

A primeira coisa que Fernanda fez foi ligar o rádio, no último volume. "Pumping on Your Stereo" do Supergrass quase arrebentou os alto-falantes do carro. Caio abaixou o volume na hora.

- Se você vai começar a discutir comigo, será mais producente se eu continuar com minha audição perfeita, não acha?
- Para Caio... Não quero mais discutir com você. Desculpa minha explosão. Eu estava nervosa por causa da escuridão.
- Não era motivo para ceninha que você criou, Nanda.
- É, talvez....- a hesitação da Fernanda aguçou a curiosidade do Caio.
- Talvez? Se não foi só o blecaute, o que foi?
- Porra Caio! Você sabia que eu tinha tomado uma bala. O diabo do lugar fica escuro um tempão e quando as luzes se acendem, não é você que está do meu lado. Fiquei assustada.
- Não entendi. Desde quando você tem medo de escuro? Ou foi a pessoa que você encontrou do seu lado que te deixou nervosa?
- ....
- Nanda...fala. Quem é que estava ao seu lado? Ou melhor, o que a pessoa que estava ao seu lado fez com você na escuridão?
- Caio...eu estava louca. Você não estava do meu lado...
- Caralho, Fernanda! Você se pegou com o cara???
- Caio...tava escuro, eu estava distraída, pensei que era você.
- Pensou que era eu??? Porra, Fernanda!
- Desculpa...

Caio olhava para frente, o carro ainda parado. Via as pessoas saindo do clube, tentando imaginar quem era o cara que tinha agarrado sua namorada no escuro. Ele olhou para Fernanda, com a cabeça encostada no banco do carro, olhando pra cima.

- Tá bom, Nanda. Vamos enterrar esse assunto. Eu tive culpa também. Sei como você fica as vezes. Devia ter te procurado melhor.
- Me desculpa, Caio?
- Tá bom....só não vamos mais falar nesse assunto.

Fernanda abraçou Caio e lhe deu um beijo, daqueles que eram a marca registrada do casal. Eles se conheciam muito bem. Caio percebeu o que ela estava pensando, sabia que ela estava muito excitada. Sabia, pela intensidade do beijo, pelo jeito como ela enfiara a língua em sua boca, em como ela o abraçou e onde suas mãos iam, nos lugares certos.

- Espero que toda essa vontade não seja por causa de um desconhecido...
- Você disse pra não falarmos mais nisso...mas não é por causa do beijo de um estranho. Você tem camisinha?
- Não foi, é? - falou Caio, entre um beijo e uma mordida - o que foi então.
- Você é muito bobo...mas eu te conto. Você não percebeu como eu já não queria briga assim que entramos no carro?
- Notei sim...e daí?
- Foi como você me pegou pelo braço, pra gente sair do clube. Você sabe que eu fico maluca quando você se faz de bravinho.
- Eu estava puto, não bravinho.
- Melhor ainda, amor. Tem camisinha ou não?
- Tenho, claro...mas você não acha melhor a gente...
- Não acho nada, Caio. Essa película pro vidro foi muito cara para gente não aproveita-la.



A campainha toca na casa da Fernanda. Caio entra sem dar o beijo habitual na namorada. Ele parecia estar muito preocupado. Não se nota qual é o estado de espírito da Fernanda. Seu rosto não demonstra nenhuma emoção. Caio não demorou mais que cinco segundos para perceber isso, depois de vê-la. E isso só serviu para deixá-lo ainda mais nervoso com toda a situação.

- O que foi dessa vez Nanda? O que eu fiz? De onde você tirou essa idéia idiota de terminarmos?
- Calma, Caio. Senta primeiro. Não vou conversar com você em pé ou andando pela sala como um maluco.
- Maluco?!? Então eu sou o maluco? Você aparece com essa novidade e eu sou o louco?
- Senta que eu te explico.

A calma e a segurança da Fernanda realmente estavam tirando Caio do sério. Não que ele não estivesse acostumados com as sandices ocasionais da namorada, mas essa era a mais estapafúrdia de todas. E, pior, parecia ser a mais séria.Caio sentia-se num dilema: queria que Fernanda acabasse logo com essa brincadeira - se é que era mesmo uma brincadeira - mas estava curioso para ouvir a história.

- Quer beber alguma coisa? - Fernanda perguntou, com uma serenidade incompatível com o momento.
- Nanda, chega de palhaçada. Fala logo o que foi dessa vez.
- Tá bom. Você lembra daquele dia em que faltou luz no clube? Foi ali...
- Lembro, claro. Mas espero que isso não tenha nada a ver com essa insanidade. Além de fazer sei lá quantos meses, se alguém tinha motivos para ficar irritado com aquele dia...
- Não tem nada a ver com quem tinha motivos. Você vai me deixar continuar, Caio?
- Fala, Fernanda - respondeu, exaltado.
- Naquele dia, eu estava muito doidona e acabei ficando com um carinha qualquer que me agarrou no escuro.
- Eu sei, Fernanda. Mas eu pensei que essa história já tinha...
- Deixa eu falar, Caio. Naquele dia, eu não contei tudo que aconteceu.
- Ah...não?
- Não. Eu não "fiquei" apenas com o cara. Estava escuro, a luz demorou a voltar, o clima foi esquentando e...
- Porra, Fernanda! Não vai me dizer que você...
- Isso mesmo, Caio. Eu acabei transando com o cara.
- Não acredito no que estou ouvindo...
- Mas foi...eu transei com o cara, ali, no pista de dança, encostada nas caixas de som.
- Porra, Fernanda! - gritou Caio, se levantando - Como é que você faz isso!
- Eu fiz...

Caio começou a andar em volta da sala. Sua cabeça estourava. Não sabia o que fazer. Fernanda olhava para o chão, em silêncio. Caio se senta novamente, ao lado da Fernanda e pega sua mão.

- Olha, Nanda. Isso já faz um tempo. E mesmo que fizesse, eu não terminaria com você por causa disso. Eu também deixei de te contar uma coisa sobre aquela noite.
- É mesmo? - Fernanda disse, se virando para Caio, olhando-o nos olhos, com uma incrível calma - e o que foi?
- Eu demorei para te encontrar porque...eu também fiquei com alguém naquela noite. E também transei com ela no meio do blecaute, no banheiro do clube.
- Mesmo? - Fernanda estava surpresa - e porque você não me contou?
- Não quis te contar. Me desculpa. Aconteceu e eu me aproveitei quando você me contou antes.
- Muito nobre da sua parte.
- Pelo menos, eu não fiz no meio da pista...
- É incrível como você tem o dom de falar as maiores besteiras, nas piores horas - respondeu irritada.
- Desculpa, Nanda. Mas veja os fatos. Quem está no erro sou eu. Eu que fui falso com você. Estamos quites no lance da transa. E não temos mais motivos para terminar. Não por isso.
- Não por isso. Mas você não me deixou terminar o que eu queria dizer. Não é por uma transa casual que eu quero terminar com você. Eu já queria, antes de você me contar o que tinha feito.
- O que você ainda tem pra me contar, Fernanda?
- Eu fiquei grávida nesse dia.
- O que?!?! - Caio se levantou novamente.
- Você ouviu.
- Grávida?!?! Mas...quem te garante que não é meu? Transamos naquele dia também! No carro, você se lembra.
- Mas usamos camisinha, como sempre usamos. O único cara com quem transei sem preservativo nos últimos meses foi com o desconhecido.
- Mas...mas...

Caio andava pela sala, nervoso, mas sem palavras. Não sabia o que dizer, nem como agir. Estava puto da vida, mas tinha a exata noção de que a gravidez foi um acidente. Pelo que ele sabia, poderia ter engravidado a mulher com quem tinha fodido na mesma noite. Sentia que o que estavam passando agora era uma prova para o casal. Ou um castigo divino pelas drogas que andavam consumindo. Os dois se mantiveram em silêncio por algum tempo, até que Caio resolveu falar.

- Nanda...eu sei que esse filho não foi planejado. Não tenho motivos para terminar com você. Nós resolveremos isso. Vamos numa clínica, tiramos isso de você...
- Você ainda não entendeu nada, não é Caio. Eu não vou fazer um aborto.
- Mas...tá, a gente conversa sobre isso mais tarde. Você está nervosa, eu entendo. O importante é você saber que eu não quero terminar por causa disso.
- Mas você ou é muito egocêntrico ou é muito burro. Eu não perguntei sua opinião sobre terminarmos ou não. EU quero terminar com você.
- O que??? Do que você está falando?
- Sei que você não tem motivos para terminar comigo. Eu é que tenho meus motivos para terminar com você.

Agora Fernanda tinha conseguido realmente surpreender Caio. Ele não sabia o que pensar. Só podia olhar para ela com uma cara estupefata.

- Eu não terminei de contar tudo sobre aquela noite. Quando o cara me abraçou, no meio do breu, eu ainda tinha dúvidas se era ou não você. Mas assim que ele me beijou, é óbvio que eu percebi que não era meu namorado.
- Mas e daí! - explodiu Caio - Ainda não vejo motivos para querer terminar com você e muito menos motivos para você querer o fim do namoro. Eu sabia que a mulher que eu beijei não era você desde o começo!
- Não é essa a questão. A questão é que eu, mesmo sabendo que não era você, eu continuei beijando o cara. Eu queria beijá-lo, mesmo sabendo que estava te traindo. Eu quis dar para ele e dei.
- Fernanda, meu amor - Caio se ajoelhou diante da Fernanda, tomando-lhe as mãos - eu fiz a mesma coisa. Eu queria beijar aquela desconhecida, da mesma forma que você. Nós dois erramos. Eu posso te perdoar, porque eu te amo. Eu perdoo até mesmo esse filho. Por que você não pode me perdoar?
- Mas eu te perdoo, Caio. O problema é que eu não posso perdoar a mim.
- Ahn?
- É isso. Eu poderia conviver facilmente com milhares de traições suas. Mas não posso conviver com a minha traição. Nenhuma sequer.
- Você não pode estar falando sério.
- Estou sim, Caio. Eu tentei me enganar, desde aquela noite. Descobrir, hoje, que estou grávida, me fez ver a realidade. Eu não te amo mais. De outra forma, eu não teria feito o que fiz.
- Nanda, Nanda...você está nervosa, soube que está esperando um filho não planejado, de alguém que provavelmente nunca mais vai ver. Você está muito abalada para pensar direito. Amanhã...
- Amanhã, Caio, nós não teremos mais nada. E eu nunca pensei com tanta clareza em toda minha vida.

Ele ainda segurava as mãos da Fernanda quando viu, nos seus olhos, que a decisão dela estava tomada. Caio se levantou e saiu, sem olhar para trás. Saiu compreendendo vagamente o que levou Fernanda a tomar essa decisão radical. E o que realmente o incomodava agora era não saber se era essa vaga compreensão do ocorrido que o deixava mais arrasado ou a certeza de que ele nunca teria coragem para agir da mesma forma.

6.7.04

Tudo certo



Não saberia dizer, dentre todas as coisas inesperadas com que fora presenteado naquele dia, qual delas tinha sido pior. O despertador não tocou, o chuveiro queimou, estava sem cigarros, a condução, um inferno. Isso tudo e ainda não eram 10 da manhã.

Levou a bronca de praxe do chefe. "Atrasado de novo!" já era o seu bom dia fazia algumas semanas. Senta-se na mesa, pilhas de papéis, trabalho atrasado de dias, semanas, até meses. Olhares-reprimenda de todos os lados: companheiros(?) de trabalho, gerentes, sub-chefes e toda uma hierarquia do tédio, conspirando e tramando contra.

"Fodam-se todos!", era o que queria gritar. Resolveu tomar uma atitude. Foi até a copa beber um café. Olhares-reprovação o acompanham.

Como sempre, queimou a mão na xícara muito quente e a língua no café idem. Quando a temperatura da bebida ficou suportável, notou que estava com pouco açúcar. "Hoje está pior que o normal", pensou. E ainda faltava a pilha de papéis, o almoço caro, a volta insuportável para casa...

Acabou o café e foi lavar a xícara - estava cansado das broncas, exclusivas para ele, da servente do escritório - e num movimento descuidado, encostou a mão molhada no fio desencapado da cafeteira. Nunca ia imaginar que uma simples mão molhada e um pedaço microscópico de fio sem capa pudesse causar tamanho tranco.

Acordou num lugar branco, rodeado por pessoas de branco. A claridade era tanta que teve dificuldades em abrir os olhos. Dera sorte: morreu e estava no céu. Já estava imaginando que tudo mudaria quando sente uma mão pesada no ombro. Era o seu superior no escritório.

- Que papelão, hein? Além de matar todos de susto na repartição, você desmaia, quebra uma xícara, uma cafeteira e perde meio dia de trabalho. Saiba que tudo isso vai ser descontado no seu salário do mês que vem.

Vendo que seu sonho de um paraíso não era real, começa a chorar, baixinho. O que faz seu chefe se compadecer dele, pela primeira vez.

- Olha, rapaz, não fique assim! Por que está chorando? Seja homem!!! Está tudo bem com você, eu sei. Não está?

- Está - respondeu, em meio a uma crise de soluços - está tudo absolutamente certo. Certo, como sempre esteve...

14.6.04

Cinza



para Ginger

O céu carregado que cobria sua cabeça e da sua atual namorada o faziam lembrar dela. Ela gostava do cinza, dos dias nublados. Para ela, eram um convite a reflexão.

- Mentira! Você gosta por causa daquela música!

Falou para irritá-la, dizendo que era por causa de "Happy When it Rains", do Jesus & Mary Chain. Ele gostava de implicar com a importância que ela dava ao rock. Ela não admitia, mas tinha a noção exata do quanto seu humor dependia de ouvir a canção certa pela manhã ou passar pela sua cabeça um refrão que a alegrasse.

Mas agora, esse céu acinzentado - que nem era o mesmo para ele e para ela - só prenunciava a chuva e outra série de memórias. Ele seguia calado, a cabeça realmente nas nuvens e o coração longe daquela que agora levava pela mão.

Era o começo de mais um domingo, sem que o sábado ainda tivesse realmente terminado. Só depois de ir para casa e fazer um sexo mais por reflexo que por vontade, entupidos de álcool e "outras cositas más" que ambos estavam. Aí poderiam considerar o dia oficialmente terminado.

Não que com ela fosse diferente, mas era diferente. Era com ela. Iam para o clube, bebiam, dançavam, encontravam os amigos, ficavam loucos e, as vezes, davam vexame. Não brigavam, pelo contrário: só depois de virarem amigos dos seguranças acabou-se a ameaça constante de serem expulsos por excessos de intimidade no meio da pista de dança.

- Pega leve, menina...a gente faz em casa, aqui é bandeira!

E como não seria, entre 30, 40 pessoas espremidas na pequena pista? Mas estavam loucos de amor e ácido e não conseguiam se controlar. Sempre eram cutucados pelos seguranças, que amigos, só pediam para maneirarem. Hoje, os clubes são outros, como outra é sua mulher. Não há mais excessos. Só há a lembrança, toda vez que tocava alguma música que ela gostava.

Ele se divertia com sua atual namorada, mas depois de algumas doses e principalmente de algumas músicas, costumava ficar quieto. A atual namorada notava que algo não estava bem, via-o pensando, coisa anormal de se fazer no meio de tanto barulho e movimento. Repentinamente, falava que queria ir. A atual namorada perguntava se ele estava se sentindo mal.

- Não, não é nada. Não suporto Mazzy Star, só isso.

No fim das contas, foi melhor sair daquele ambiente infestado de fumaça e recordações. Queria ar puro. Estava meio alto e se a garota que ele estava namorando agora começasse a fazer perguntas, ia se irritar. Esperava que o nascer do sol, que devia estar próximo, iluminasse seu raciocínio. Ele só não contava com o céu totalmente nublado.

-"You were my sunny day rain/ You were the clouds in the sky/ You were the darkest sky/ But your lips spoke gold and honey"

Não pode evitar o tom ríspido quando sua atual namorada perguntou o que ele balbuciava. Tentou consertar a situação, explicando com a voz mais delicada que podia fazer que era uma música sobre a chuva, condizente com o tempo que inesperadamente pegaram na saída do clube. A atual namorada o abraçou e ele retribuiu, mas, olhando para o céu, percebeu que esse abraço foi mesmo para ela.

Chegaram em casa antes da chuva. Falou com a atual namorada que estava cansado demais para tomar banho, que desmaiaria imediatamente. A namorada respondeu que ela não deixaria que isso acontecesse, que iria tomar um banho e já, já estaria na cama com ele. Deu um beijo nele e saiu, sem imaginar que o gosto ruim na boca do namorado não tinha nada a ver com as várias bebidas que ele havia tomado.

Tirou os sapatos, a camisa e se jogou na cama. Era inevitável, ainda pensava nela. Tentou imaginar - e conseguiu facilmente - como seria se ela estivesse aqui, no lugar da atual namorada: ele falaria que estava cansado, ela o beijaria, levaria ele pela mão até a cama, deitaria ele, colocaria uma música - dependendo do clima, poderia ser "Just Like Honey" do Jesus ou alguma mais eletrônica, como a banda Air - e então transariam, de várias maneiras, também dependendo do clima, mas esses eram muitos, e mudavam inúmeras vezes. Nessas situações, só uma coisa era rotina: era ela quem sempre dominava.

Sua atual namorada apareceu de repente, saída do banho, nua, secando os cabelos. Ele estava excitado, mas apesar da bela visão à sua frente, não era por isso. Era por ela. Ela ainda o deixava de pau duro, e não precisava estar presente para isso. Mesmo em outra cidade, outro estado, bastava que ela surgisse em sua mente.

A visão dele excitado fez sua atual namorada abrir um sorriso. Não foi direto para cama. Foi até o som e colocou um cd. Veio andando até a cama, com o controle remoto do som na mão. Deitou-se em cima dele e lhe deu um beijo. Sem parar de beija-lo, virou o controle em direção ao play. A música demorou uns segundos para começar.

Era o disco da Maria Rita.

Ele se levantou e ficou sentado na cama. A atual namorada perguntou o que houve. Enquanto acendia o cigarro, respondeu que não era nada, já tinha dito que estava cansado. A namorada abraçou-o e beijou-lhe o pescoço, falando que estava tudo bem, que se ele estava cansado, era só se deitarem. Ele saiu da cama, colocou a camisa e os sapatos novamente, e disse que precisava dar uma volta. A atual namorada protestou. Além dele não ter descansado nada, estava ameaçando um temporal.

- Eu gosto de chuva - foi o que disse, saindo do quarto e fechando a porta.

Na rua o vento era forte, mas eram tantas nuvens, em milhares de camadas sobrepostas, que não espantava a chuva iminente. Ele estava com frio. Cruzou os braços, cigarro entre os dedos, e seguiu em frente, enquanto as primeiras gotas começavam a cair.

Tinha vontade de chorar. Sabia que não era por causa da MPB na hora do sexo que ele tinha fugido do quarto daquela maneira. Gostava da sua atual namorada, mesmo sabendo que nunca deixaria de amá-la. Ela estava entranhada em sua vida, como o cheiro de nicotina estava na camisa que usara no clube esta noite.
A chuva agora era realmente chuva, apagou o cigarro dele e encharcou sua camisa. No meio da já quase tempestade, ele lembrou das razões que ela deu para ir embora, da sua casa, da sua cidade, da sua vida. Ela disse que não gostava muito de finais felizes, que não tinham graça. Foi uma conversa difícil que virou briga depois dela dizer que ainda o amava e que iria amá-lo sempre. Isso ele não podia agüentar. Se ela o amava ainda, não aceitava que ela fosse. Não entendia o porque.

- Porque assim que é a vida, porque é melhor assim e principalmente porque eu quero.

No meio da chuva, repetiu as últimas palavras que ouviu dela. Aceitou a tormenta como um batizado para sua nova vida, sem ela e sem ilusões sobre ela. Assim é a vida e ele aprendeu de uma forma dolorosa. E não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.

Ele olhou o céu acinzentado com a certeza que nunca mais o veria com os mesmos olhos, com a mesa esperança amarga. Depois virou-se e fez o caminho de volta para casa, para aquela que seria sua atual realidade.

8.6.04

O Ralo



Começou com uma lacraia, ainda filhote, saindo pelo ralo. Jorgina quase teve um ataque ao ver o sinuoso artrópode. Além de detestar insetos, sempre tivera pavor de veneno de lacraia. Todo mundo sabe que uma picada do bicho traria no máximo uma dor de cabeça a moça, mas ela não ligava para os argumentos.

- E se eu tiver uma alergia ao veneno e morrer? - perguntava, irritada.

Jorgina matou a lacraia com o rodo que estava ao seu lado, escorado na parede. Foi mais por sorte, já que ela batia com os olhos fechados, sem a menor preocupação com a mira. As pancadas do rodo foram acompanhadas por gritos estridentes.

- Ô, Jorgina!!! Vamos parar com essa gritaria, merda!
- Tem uma lacraia no banheiro, pai!
- E você tá gritando por que? Quer deixar a bicha surda?

Depois de uma sessão de berros e rodadas no chão, Jorgina abriu os olhos, devagar. Viu o cadáver da lacraria no chão, estraçalhado. Pode então terminar seu banho. Mas não conseguia tirar os olhos do corpo esmagado. A cara de nojo só foi desfeita depois de sair do banheiro. Foi direto à cozinha reclamar com a mãe.

- Mãe, alguém tem que dar um jeito naquele ralo!
- Jorgina, não me atormente, minha filha! Fala isso com teu pai.
- Taca água sanitária naquele buraco maldito que resolve! - gritou o pai, da sala.
- Isso resolve, mãe?
- Não sei...Sei que se você não ficasse horas penteando esse cabelo no chuveiro, o ralo entupiria menos e as lacraias não iriam precisar fugir do afogamento.
- Tava demorando! A culpa é sempre minha!

Tendo sido responsabilizada pelo incidente, Jorgina resolveu parar de discutir. Foi até a área pegar a água sanitária. Faria algo prático, ao invés de ficar só reclamando com os pais. Parou diante do ralo, garrafa de água sanitária aberta, e foi derramando com cuidado e atenção. Se alguma coisa viva saísse do buraco, incomodada com a água diferente, ela estaria pronta para sair correndo. Sorte dela, nada aconteceu.



Dia seguinte, "Seu" Manoel, pai de Jorgina, acorda as cinco da manhã para o trabalho. Tem sua rotina programada há décadas e detesta qualquer tipo de alteração nela. Todo dia é assim: sai da cama, escova os dentes, faz a barba enquanto se banha, olhando-se no espelhinho pendurado na torneira do chuveiro, bebe uma xícara de café com um pedaço de bolo de fubá. Sai de casa para abrir sua venda levando a página de esportes debaixo do braço.

"Seu" Manoel já tinha aberto chuveiro e provado a temperatura da água com a mão que não estava ocupada com a toalha e o aparelho de barbear. Pôs o aparelho no porta-sabonete e começou seu banho. Antes de sair debaixo da água, começou a se barbear. Fez uma espessa espuma esfregando o sabonete nas mãos e passou-a pelo rosto e pescoço. Barbeava-se com esmero, não queria que seus fregueses achassem que o dono da venda onde compravam comida não tinha cuidado com a própria aparência.
Quando estava concentrado em seu reflexo no espelho, passando a lâmina pela segunda pelo rosto, Manoel sentiu algo viscoso tocar seu pé. Sua reação foi imediata, misto de instinto e o reflexo. No pulo que deu, acabou cortando-se com a lâmina. Mas não reparou no corte ou no sangue que corria com a água do chuveiro. A cobra que estava rastejando no box era dona total da sua atenção.

- Ô Matilde! Matilde!!!! Corre aqui, acuda! - gritou "seu" Manoel, se esgueirando pelas paredes do box, fugindo do réptil.
- Mas o que foi, homem de Deus! Que desespero é....
- Uma cobra saiu do ralo, mulher!!!
- Uma o que?

Dona Matilde correu para o banheiro. Vinha do interior e conhecia muito mais de cobras que seu marido, filho de imigrantes que sempre morou na cidade. Entendia o pavor do esposo. Mas chegando ao banheiro, viu que nada podia fazer.

- Manel, meu filho! A porta do banheiro tá trancada! Não dá pra eu entrar!
- Ai, meu Deus!!! Mas você não consegue fazer nada sozinha, mulher!

Dona Matilde não respondeu. Ficou aflita com a situação onde não podia fazer nada de imediato. Colou o ouvido na porta e ouviu os barulhos que o marido fazia. De repente, um estrondo: ao que parecia, Manuel tinha saído do box. Ou melhor, pelo box.

Mas o barulho do vidro quebrado não foi nada, se comparado com a cena a seguir. "Seu" Manuel abriu a porta do banheiro e se jogou por ela. Ele não contava com a Dona Matilde colada com a cabeça na porta. O esbarrão foi inevitável.

Foi por pouco que dona Matilde não teve um ataque cardíaco. Não sabendo ainda o que tinha havido dentro do banheiro, se vê jogada ao chão, com o marido nu, com sangue e sabão no rosto todo. Só o fato de ver o marido seu roupas - fazia tempo - assim, de repente, já seria algo totalmente inesperado. Mas o sangue realmente a assustou.

- Manel - gritou dona Matilde - fala comigo, homem! Você está bem?
- Tá louca? Eu estou do seu lado! Não precisa gritar no meu ouvido!

A grosseria típica. Ele devia estar bem.

- Vai se vestir, Manoel - disse firme Matilde, se dirigindo ao banheiro.
- Tá...mas cuidado, mulher! Tem uma cobra enorme aí...- respondeu seu esposo, com uma voz bem mais contida, quase envergonhada.

Dona Matilde entrou devagar no banheiro. Olhou para cada canto do banheiro e dentro da armação do box semidestruído. "Seu" Manoel ia atrás, como um garotinho assustado, vendo a inspeção da mulher por cima dos seus ombros. Ela entra no Box, se agacha, pega alguma coisa no chão e se levanta, rindo.

- Mas era disso que você estava com medo, homem? Não tem vergonha?

Matilde segurava uma cobra cega, a maior que já tinha visto, mas inofensiva. "Seu" Manoel se encolheu quando a esposa aproximou o animal dele.

- Sai pra lá com isso, Matilde! Pra você que é do mato, é fácil! Nunca uma cobra tinha se esfregado em mim. E se ela me morde? Como eu ia saber se tinha veneno ou não?
- Nem boca esse bicho tem, Manuel! Não seja frouxo!

Diante desse argumento, Manuel se calou. Não tinha cara sequer para pedir para esposa parar de rir.

- Que seja, que seja - falou "seu" Manoel - de qualquer forma, tenho mesmo que dar um jeito nesse ralo. Uma lacraia é aceitável que saia. Uma cobra já é um exagero. No sábado eu vou dar uma olhada nesses canos.
- Só no sábado? E se sair outro bicho quando EU tomar meu banho, Manel?
- Ué? Mas não é a senhora que entende tudo de bicho selvagem? Se vire com suas cobras e lagartos até eu consertar isso.

Manuel se virou sem dar maiores satisfações à dona Matilde. Com o marido de costas, ela não pode ver o sorrisinho de triunfo que ele ostentava.



Jorgina chegou da rua à tarde. Foi recebida pela mãe, esbaforida.

- Onde você andou, menina! São quatro da tarde!
- Ué, mãe! Eu sempre chego às 3:30...o ônibus só demorou um pouco. Que foi que aconteceu?
- Eu precisando tomar um banho e nada de você chegar!
- E eu com seu banho?
- Olha a boca, menina!
- Desculpe, mãe...não quis ser grossa. Só quero saber porque você teve que me esperar para ir pro chuveiro.
- É que eu não estou confiando nesse ralo do banheiro. Hoje seu pai destruiu o box porque saiu uma cobra dele.
- Uma cobra?!? Meu Deus!
- Uma cobrinha à toa, não precisa entrar em choque, Jorgina.
- Mãe, eu tenho medo de lacraia...Imagina o que aconteceria comigo se eu visse uma cobra no banheiro.
- Deixa de frescura, garota. Estava esperando você chegar porque vou tomar banho com a porta aberta. Se eu te chamar, já entra levando um pedaço de madeira para qualquer eventualidade.
- Tá bom mãe....Eu levo uma madeira para VOCÊ resolver qualquer eventualidade. Eu não vou esmagar uma cobra com um pau...
- Mas é tão cagona quanto o pai! Tá bom, garota. Só presta atenção se eu te chamar, tá?
- Tá...

Dona Matilde entrou no banheiro, toalha no ombro. Colocou-a sobre a armação agora desvidraçada do box e abriu o chuveiro. Mantinha o olhar fixo no ralo. Não tinha medo do que quer que pudesse sair de lá, só não queria ser pega de surpresa. Estava quase terminando sua limpeza, só faltava enxaguar os cabelos, que estavam cheios de xampu.

A espuma caiu-lhe sobre os olhos. A ardência fez dona Matilde fechar os olhos com força. Estava esfregando o rosto quando sentiu um vento passando pelas suas pernas, seguido de um ruído de...seriam asas?

Fosse uma lacraia ou uma cobra, Matilde saberia como reagir. Mas quando ela, ao abrir os olhos, se deparou com uma dúzia de morcegos voando à sua volta, não soube o que fazer.

- AAAAAAHHHHHH!
- Mãe??? O que foi?!?! - gritou Jorgina.
- Venha cá! DEPRESSA!!!

Jorgina voou pelos cômodos da casa até chegar ao banheiro. Como a porta não estava trancada, foi entrando.

- Jorgina? É você - falou a mãe, sem poder vê-la, com a cabeça coberta com os braços.
- AAAAAHHHHH!
- JORGINA!

Dona Matilde ouviu os passos acelerados da filha se afastando. Pensou na hora o que seria dela se dependesse da filha para estar viva. Criou coragem, tateou as paredes atrás do rodo, até encontrá-lo. Saiu do banheiro nua e encharcada, distribuído pauladas no ar com o cabo do rodo. Caiu no chão da cozinha, esbaforida. Tinha acabado de se enrolar com a toalha que cobria a mesa quando surge a filha.

- Jorgina, sua retardada! Onde você se meteu quando eu precisei da sua ajuda no banheiro!!!
- Você não viu o bando de morcegos que tinha lá?
- CLARO QUE EU VI, sua burra!!! E pra que você acha que te chamei, mula?????
- Pra que?
- PRA VOCÊ ME AJUDAR A TIRÁ-LOS DE LÁ. CARAMBA!
- Mas mãe....Se eu tenho medo de lacraia, imagina o que eu senti quando vi aquele monte de rato voador no banheiro!
- Mas é uma imprestável mesmo!

A discussão terminou com o segundo barulho de vidros se quebrando no banheiro. Mãe e filha correram até o banheiro para ver o que tinha acontecido. Os morcegos tinham sumido, junto com o vidro que vedava o basculante.

- Primeiro eles saem por um buraco de onde mal sai uma cobra. Depois quebram um vidro que se eu socasse, só machucaria minha mão. Essa história está ficando muito estranha, minha filha. - disse dona Matilde, preocupada.
- Será que se a gente tacar a tal da água sanitária que papai falou, da jeito?

Dona Matilde olhou para Jorgina com pena. "Como é burra!", pensou sobre a filha.



- Manel, você TEM que dar um jeito nesse ralo agora! Não me interessa que sejam 7 da noite ou 4 da madrugada. Eu não vou mais me arriscar a entrar nesse banheiro e ser atacada por um bicho selvagem.
- Mas Matilde..eu acabei de chegar do trabalho, estou cansado e você nem vai mais tomar banho hoje, vai?
- Manel, eu não quero saber! Dê um jeito nisso, agora! Não quero ter que colocar um fiscal do IBAMA de plantão aqui em casa.
- Mas, Matilde, meu amor...veja bem...
- Eu estou vendo bem, Manel. Estou vendo que na hora que você for ler seu livro enquanto caga depois da janta, uma cobra vai subir pela privada e...
- Tá, tá, tá bom! Não precisa ser grosseira nem imaginar uma desgraça dessas! Eu vou dar uma olhada nesse cano...

Jorgina percebeu o sorriso vitorioso no rosto da mãe. Viu também a cara de descontente do pai, por isso nem perguntou se ele ira querer a garrafa de água sanitária. "Seu" Manoel voltou visivelmente irritado do quintal, trazendo a caixa de ferramentas.

- Eu só não quero nenhuma reclamação se eu tiver que quebrar o chão do banheiro todo. E se o barulho que eu fizer incomodar a novelinha de vocês, azar. Ouviram?
- Tá bom, Manel. Resolve logo esse troço e depois vem comer que o jantar tá quase pronto.

"Seu" Manoel entrou bufando no banheiro, batendo a porta. Ao contrário das ameaças feitas por ele, o banheiro manteve-se silencioso por uns bons 15 minutos. Jorgina via a novela sem interrupções e dona Matilde fritava um peixe para o jantar.

Mas a quietude foi subitamente substituída por um rugido e um grito horrível. A voz era do "seu" Manoel, mas o rugido foi inidentificável pelas mulheres. Correram até o banheiro, mas não conseguiram abrir a porta: por algum motivo inexplicável, Manoel havia trancado a porta.

Os gritos continuavam e eram cada vez mais horríveis. Jorgina e dona Matilde jogavam o corpo contra a porta, usando toda a força que tinham. O desespero de ambas ia aumentando, conforme os gritos iam se tornando menos intensos. Antes de ambas darem o golpe definitivo na porta, elas ouviram o ruído de algo se quebrando.

Presenciaram um cena surreal, assim que arrombaram a porta e entraram. Manoel estava estendido no chão, esquartejado, com partes de sua anatomia mastigadas e espalhadas por todo chão. Sua caixa de ferramentas estava jogada ao seu lado, completamente vazia. Onde deveria estar o ralo, um buraco com quase meio metro de diâmetro. O que os morcegos havia deixado do basculante não existia mais, tinha sido destruído por o que quer que tenha passado por ali. Pelas pegadas nos azulejos e pelo estrago feito na parede, era um bicho bem forte. Um tigre, talvez.

As duas mulheres se abaixaram diante do cadáver estraçalhado do pai/marido. Estavam ainda chorando, em choque, sem saber o que fazer quando, sorrateiramente, surge um par de mãos vindas da cratera onde ficava o ralo. Uma das mãos segurava uma chave inglesa.

21.5.04

O Escritor Arrependido



"O velho homem lava suas calças em plena Presidente Vargas, de manhã. Com esmero, passa o sabão pelo quase farrapo, dando especial atenção aos fundilhos da peça. Está sol, e apesar de ser inusitado varal, a calçada da movimenta avenida é perfeita para que sua roupa seque"

- Eu não aguento mais, André. Nunca fui um sujeito obsessivo. Acho ridículo isso, até esteticamente falando.
- Chico, você tem que relaxar. Tente olhar as coisas sem esse tipo de obrigação. Isso passa! Internação é um exagero.

O carro de André passa sem pressa pela Av. Presidente Vargas, em parte por conta do trânsito, em parte porque ele precisa prestar atenção não só ao trânsito, mas ao que diz Francisco. Depois do seu amigo ter conseguido se tornar o que sempre quis - um escritor respeitado - ele resolveu aparecer com manias estranhas. Segundo o Chicão, como era conhecido desde a infância por André, ele não conseguia mais pensar de forma normal. Tudo o que ele presenciava se tornava cena literária. Era como se a realidade à sua volta não passasse de uma obra, escrita por algum ser superior.

- Bom, pra alguns religiosos mais poéticos, é isso mesmo. Deus escreve certo...
- Porra, André, não brinca com isso! Estou ficando maluco com essa história.

"Os garotos correm pela avenida, com suas caixas de engraxate. A depor contra eles, sua cor e o preconceito já estabelecido e velado: 'preto correndo? Devem ter aprontado alguma!'. O erro das crianças foi ter passado na frente de um guarda".

- Que foi agora, Chicão? - pergunta André, vendo o amigo abaixar a cabeça e fechar os olhos com força.
- Eu não paro de pensar desse jeito! Tudo que eu vejo vira livro!
- Porra, Chico, e não foi sempre assim? Não é isso que te distingue dos não escritores? Não é esse o seu dom?
- Claro que não! Você acha que Machado de Assis pensava em prosa? Ou que Eça de Queiroz não pensava coisas corriqueiras de vez em quando? Até essa nossa conversa já virou palavra escrita, André.
- Jura?

"O que o amigo não entendia é que isso era um comportamento obsessivo, o que não condizia com sua mente analítica. Ele sempre trouxe seus pensamentos em rédea curta e agora parecia que ele estava precisando doma-los."

- Isso não é engraçado, André.
- Para de dramatizar, Chicão! É por isso que viviam te chamando de viado quando era moleque.
- Não era por isso. Era porque eu não participava das brincadeiras estúpidas da turma.
- Tá bom.

André entra na Rio Branco e repara que o problema do Chico é mais grave do que ele imaginava. Pelo menos para seu amigo, que parece estar levando essa questão muito a sério. Ele percebe a cara triste do Chicão olhando pela janela, as vezes mantendo o olhar em alguma pessoa em particular, virando o pescoço para ver a cena até onde o andar do carro permitisse.

"A velhinha subiu com dificuldade no ônibus, apesar da ajuda do menino que pode ser seu neto, talvez bisneto. A caixa na mão do moleque denuncia: são pedintes e vão explicar para as pessoas de classe média que se dirigem para suas casas confortáveis na Zona Sul que é melhor pedir do que roubar"

- Me fala Chicão, sério dessa vez. E não foi sempre assim? Você desde criança tem essas...visões.
- Mas não eram tão recorrentes. Eu também acredito que isso possa ser uma das coisas que me fazem um escritor. Não chegaria a chamar de dom, mas apenas uma forma diferente de ver o mundo. Acontece que agora eu só tenho esse ponto de vista. Pra mim, uma banca de jornais não é apenas uma banca de jornais.

" Só Deus sabe o quanto Batista lutou para conseguir comprar sua banca. Anos e anos acordando às três da manhã para organizar os cadernos dos jornais, aprendendo a rotina da profissão..."

- Acorda, Chico! - gritou André, balançando o amigo - Sem devaneios, porra!
- É esse o problema, André!!! Eu tenho vivido em devaneio! Eu não raciocino mais, eu crio metáforas!

André ficou quieto um momento, pensando no que Chico tinha acabado de dizer. Se estava nesse pé, a coisa toda realmente não era tão simples como ele imaginava. Será que o amigo precisava de algum tipo de tratamento? Seria isso uma doença?

- Eu não quero mais isso, André. Não quero mais olhar a vida e pensar em escrevê-la. Ia dar um livro muito extenso, e eu não gosto de escrever muito, você sabe. - disse Chicão, com um sorriso triste.
- É bom te ver sorrindo.
- Vá se desacostumando com isso, André. Não que eu vá parar de sorrir. Eu não quero mais ser o relator das pequenas misérias cotidianas. Não quero mais ser o escriba que tira algo bonito desse cotidiano decrépito...
- Chicão, você está me assustando. E usando adjetivos incomuns para as palavras...Não gosto disso.
- Calma, André - falou Chico, rindo - No mínimo você está pensando que vou me matar.
- Claro! Você tem essa mania de ser dramático. Sempre te chamaram de viadinho por causa disso.
- Não era por isso, caralho...mas isso não importa. Eu não vou me matar, seu idiota. Eu tenho cara de quem se mata?
- Tem razão, não tem mesmo. É muito gay pra isso - respondeu André, rindo.
- Tá bom, humorista. Aí, chegamos.

André para o carro em frente ao prédio do Chico, na Glória. Chico desce e da a volta no carro, para falar com o amigo. Estende a mão para o aperto.
- Se cuide André.
- Ih....Para com isso, Chico. Você está me deixando preocupado. Não vá fazer nenhuma loucura, porra.
- Claro que não André, não seja estúpido.
- Tá. Bom...deixe de ser viadinho. Depois a gente se vê.
- Tá. Até.

"O carro parte com uma das poucas coisas que o escritor arrependido vai sentir falta, que são suas amizades. O escritor pega as chaves de casa no bolso, abre a portaria do modesto prédio, sem porteiro. Pega o elevador, sobe até o sétimo, sai do elevador e entra no 701. "Reclusão!" pensa o escritor, antes de fechar a porta atrás de si e tentar imaginar essa nova fase como um recomeço."

26.4.04

A Amarelinha



- Amarelinha?!? Você está falando sério?

O pior é que Mateus falava. E ao reparar nisso, Fernanda não conseguia esboçar uma palavra. Só conseguia manter, sem o menor esforço, sua cara incrédula.

- Isso mesmo. Vamos decidir nosso futuro brincando de amarelinha. Nossos desentendimentos são tão surreais que só uma solução só pode surgir de uma decisão louca. Ou nós chegamos no céu e ficamos juntos ou seguimos caminhos diferentes.

Fernanda continuou muda, olhando estupefata para Mateus. Esses acessos de infantilidade que beiravam a insanidade eram um dos motivos das suas constantes rusgas. Segurou o acesso de raiva que estava prestes a ter e resolveu ver até onde ia mais essa demonstração de irracionalidade do marido. Ou ela fazia isso ou partiria para agressão.

- E como vamos fazer isso? - falou Fernanda, com a voz mais calma que pode.
- Fácil. Nós dois vamos jogar. Se algum dos dois conseguir chegar até o céu, esqueceremos nossos desentendimentos e viveremos felizes para sempre. Com nós dois jogando, teremos o dobro de chances de continuarmos juntos.
- E se nós dois perdermos?
- Aí é o destino: nos separamos.

Era o caso de se pensar se, depois de uma idéia esdrúxula dessas, valia a pena continuar com Mateus. Colocar três anos de casamento em jogo dessa forma só podia significar duas coisas: um descaso total com o relacionamento ou uma doença cerebral crônica. Fernanda observava o marido fazendo a amarelinha no chão de barro irregular e não sabia se chorava ou se gargalhava.

- Veja, Nanda. Estou fazendo um céu beeeeem grande pra gente.

Decidiu ver até onde ia a loucura de Mateus. Vendo-o agachado no chão, riscando o chão com um caco de telha, chegou a achar a história bonitinha. Esse pensamento não durou mais que dez segundos. Terminado o desenho, Mateus se levanta e oferece uma pedra para Fernanda.

- Quer começar?

Fernanda toma a pedra das mãos do marido e, sem olhar para Mateus, se posiciona na frente do desenho da amarelinha. Ela quase não acredita que está tomando parte dessa história. Se pergunta o que diriam sua mãe e suas amigas se visse a cena. Ela fecha o olho e joga a pedra. Ela quica no chão e quase sai do primeiro quadrado.

- Cuidado! Jogando assim parece que você quer que terminemos mesmo. - falou Mateus.

Fernanda olhou para trás, com ódio indisfarçado. Sem responder ao comentário do esposo, ela pula o quadrado onde está sua pedra e segue numa perna só, como mandam as regras do jogo. Completa a volta e apanha a pedra do chão, sem falhas.

Mateus bate palmas, que são retribuídas pela Fernanda com um sorriso sarcástico. Ela só ficava imaginando até onde iria isso tudo. Será que Mateus achava que, finda a brincadeira sem falhas, os problemas deles desapareceriam?

Jogou a pedra no segundo quadrado e fez o percurso sem problemas. Achou que teria mais dificuldades. Há quanto tempo não brincava de amarelinha? 15, 20 anos? Quando tirou a pedra do terceiro quadrado, viu que ainda estava afiada. Jogou a pedra no primeiro dos quadrados duplos e foi a sua busca. Estava chegando nela quando Mateus grita.

- Epa! Errou!

Ela não entendeu. Permaneceu parada, olhando para o marido, esperando explicações. Onde errara? E quem era ele para achar uma falha dela em um jogo que ela jogou muito mais vezes? Ela era uma menina, diabos! Nenhum menino pode corrigir uma menina num jogo de amarelinha!

- Quando você pegou a pedra, era pra continuar num pé só! Você abaixou o pé na casa do lado! Você errou Nanda!

Ele tinha razão. Na hora, Fernanda não sabia se estava mais irritada com o erro numa brincadeira que ela estava cansada de saber ou se pela felicidade de Mateus denunciando seu erro, mesmo que isso tenha reduzido à metade a chance deles permanecerem juntos. E a metade que ficou era a mais fraca, com certeza.

Saiu de cima da amarelinha mais irritada do que entrou. Chegou a pensar que perder o marido não era nada, comparado a perder o amor próprio, por ter sido corrigida no seu jogo. Antes disso tudo, perdeu a paciência.

- Chega, Mateus. Vamos como adultos, uma vez na vida.
- Calma, Nanda. É a minha vez.

Mateus foi para frente do desenho no chão e jogou a pedra. Sem problemas. Ele fez o percurso sob o olhar de reprovação da mulher, visivelmente fula da vida, porém calada. No segundo e no terceiro quadrados, a mesma eficiência. Vendo o marido jogar, a raiva pela futilidade da disputa virou despeito, por vê-lo sair-se melhor que ela. Quando Mateus passou incólume pelo pedaço onde ela humilhantemente tinha falhado, já não havia mais o ciúme pelo seu desempenho: ela estava torcendo por ele.

E Mateus seguia, firme em direção ao céu da amarelinha, que na sua mente distorcida, significava uma nova fase no relacionamento dele com Fernanda. Quando jogou a pedra na casa mais distante do desenho, o próprio céu, ela ricocheteou e quase saiu do desenho. Mateus ouviu claramente o suspiro de alívio de Fernanda, mas não deixou que ela notasse. Seguiu em frente. Foi numa perna só para o primeiro, segundo e terceiro quadrados. Fincou decidido os dois pés nas casas juntas e seguiu, corretamente, num pé só, para a próxima casa. Mais duas casas juntas, feitas perfeitamente. Faltava agora um quadrado antes do céu.

Mateus parou um momento, respirou fundo e olhou para Fernanda, que não conseguia mais disfarçar a torcida. Pulou, num pé só a casa que faltava. Perdeu o equilíbrio por um momento. Com o susto, Fernanda soltou um grito.

- Cuidado!

Ele ainda bambeou mais um pouco, mas conseguiu se fixar. Deu um salto para cair com os dois pés no céu e, pelo menos para ele, numa nova fase do casamento. Ele deu um pulo de felicidade e correu ao encontro da Fernanda.

- Viu? Eu consegui!
- Retardado... - falou Fernanda, abraçando-o e dando-lhe um beijo.
- Agora vai dar tudo certo entre nós! E nem vem que eu vi você torcendo por mim...
- Pois é. Acho que sua doença mental é contagiosa.- Fernanda respondeu, rindo.
- Não reclama. Essa sua torcida não era pelo meu sucesso no jogo, e sim pelo nosso sucesso.
- Isso mesmo...
- Então, por uns momentos, você acreditou na minha solução, mesmo ela sendo meio louca.
- Meio é pouco...
- Então. Essa foi a prova! Ainda acreditamos em nós juntos. Não interessa que o meio tenha sido um jogo de amarelinha.
- Hmmm... Pode ser. Quem sabe se nessa sua mente alucinada não existe uma lógica, ainda que distorcida?
- É o que dizem: o coração tem razões...
- Olha: me chame prum jogo da velha pra resolver nossas diferenças, mas não me venha com um chavão desses. - disse Fernanda, cortando a frase dele.
- Tá bom, tá bom...Eu faço o que você quiser agora. Acha que eu sou louco de te contrariar?

14.3.04

O vestido azul

para Ginger


Encontrei Martin, depois de semanas sem que desse as caras, apenas quando fui ao seu apartamento. Ele demorou vários minutos para abrir a porta, mesmo eu tendo tocado a campainha inúmeras vezes, Só insisti porque conseguia ouvir a música que vinha, alta, do seu aparelho de som.

Ao abrir a porta, vi que Martin tinha uma aparência péssima. Entrei em seu pequeno quarto e sala sem que trocássemos uma palavra. Notei que não só ele, como sua casa estavam em completo abandono. Devia fazer vários dias que ele não se preocupava com a higiene pessoal ou com uma arrumação. Vestia umas roupas sujas, tinha a barba por fazer e eu ainda não sabia se o cheiro ruim que estava sentindo vinha dele ou do verdadeiro caos de embalagens de comida, pratos e talheres abandonados pelos móveis e peças de roupas pelo chão. Tive que praticamente gritar pra me fazer ouvir.

– O que houve, Martin?
– Sobre o que especificamente você está falando? –respondeu ele, também em altos brados.

Como não pretendia ficar rouco, desliguei o som. Martin foi até o aparelho e o ligou novamente, colocando a mesma música que tocava antes, já pela terceira vez desde que toquei a campainha. Parecia obcecado por Blue Dress, do Depeche Mode. Ele teve pelo menos o bom senso de diminuir o volume.

– Não tire a música, por favor.
– Afinal de contas o que houve, Martin? Você desaparece por semanas e ainda te encontro desse jeito, largado e vivendo nesse chiqueiro.
– Largado? Chiqueiro? Não sei porque diz isso. Eu estou bem. Ou quase.
– Acho que “quase” não define sua situação. Olhe pra você: está imundo. Olhe à sua volta: sua casa está um pardieiro e eu espero sinceramente que esse fedor não esteja vindo de você. Há quanto tempo você não se lava? Por que seu apartamento está nesse estado? E por que essas calcinhas estão espalhadas pelo chão? O que diabos aconteceu por aqui, Martin?

Martin se abaixa e pega uma das lingeries do chão, delicadamente. Tem os olhos tristes agora, parece até mesmo que vai chorar. Uma cena que eu nunca imaginaria ver: Martin era uma rocha.

– O que te incomoda são as calcinhas – disse Martin, levando ela até o nariz e aspirando profundamente – ou é o cheiro delas?
– Não. O que me incomoda mesmo é ver você desse jeito.

– “Desse jeito”? Não se preocupe, eu melhoro. Você também estaria assim, ou até pior, se tivesse conhecido a Clarice.
– E foi essa tal de Clarice que te deixou assim? O que ela pode ter feito pra deixar o cara mais firme que eu
conheço assim, sem o mínimo cuidado com sua casa ou consigo mesmo, vivendo no meio do lixo, convivendo feliz com comida estragada e o cheiro de calcinhas sujas?

A reação de Martin me surpreendeu. Ele avançou na minha direção, agarrando meu colarinho, disposto a me esmurrar a cara. Vendo o espanto nos meus olhos e que estava prestes a bater no seu melhor amigo, Martin me soltou e desabou sobre uma cadeira, com a cabeça entre as mãos, chorando.

– Você não entende. Ela não era virgem. Não era...

Era realmente inacreditável vê-lo assim, ainda mais por causa de uma mulher. Martin sempre se dera bem no terreno das conquistas amorosas. Seu sucesso com as garotas era notório, como sua aversão total aos compromissos. Ele conseguia todas as mulheres que lhe interessavam, mas assim que elas se mostravam apaixonadas ou muito grudentas, Martin as dispensava sem o menor remorso. Não chegava a ser má pessoa por conta disso. Simplesmente tinha tal repulsa a se sentir preso que não conseguia ter um relacionamento duradouro. Fez muitas das suas conquistas sofrerem, claro, mas nunca chegou a brigar com nenhuma delas. O normal era, depois de um tempo natural de raiva por terem sido dispensadas sem um motivo justo, era ficarem amigas do Martin. E no fundo, a maioria delas preferia assim. Essas esperavam que um dia ele se ajeitasse e não perdiam as esperanças de conseguir agarrá-lo.

Sentei ao seu lado e perguntei novamente o que tinha ocorrido. Ele me levantou seus olhos desesperados e começou a me contar sua história.

Martin conheceu Clarice num café, depois de ter ido sozinho ao cinema. Ela estava numa mesa, lendo um livro, também só. Ele a achou interessante: devia ter pouco mais de 18 anos, tinha cabelos de um loiro resplandecente e uma pele que só quem freqüenta a praia com certa assiduidade pode ter. Usava um vestido azul que realçava seu belo colo, um casaco de lã por cima e – uma das fraquezas do Martin – óculos, com uma armação fina e delicada. Ele não pensou duas vezes antes de abordá-la.

– Este lugar está vago? – perguntou fazendo sua típica cara de “Don Juan” da Zona Sul.
– Parece estar ocupado? – respondeu com outra pergunta, sem mover o rosto, apenas levantando os olhos por cima das lentes.
– Gosto das garotas mordazes. Principalmente quando são assim para responder minhas perguntas estúpidas. Meu nome é Martin – disse, já se sentando.
– Já eu não gosto muito dos abusados, que vão se sentando sem receber permissão – antes que Martin pensasse que tinha tomado um fora, a moça abriu o mais belo sorriso que ele já tinha visto – Prazer, Clarice.

Se deram bem logo de cara. Tinham muitos interesses em comum, do livro que ela estava lendo – um dos preferidos dele – passando pelo filme que tinham acabado de ver, gostos musicais, opiniões políticas e outros assuntos vários. Ficaram encantados um pelo outro, e conversaram, sem notar o tempo, até acabarem as duas sessões seguintes no cinema. O café iria fechar, e como Martin não queria precipitar as coisas – não com alguém como Clarice – resolveu só trocar telefones. Combinaram tomar outro café qualquer dia desses.

Pretendia seguir sua cartilha. Não iria ligar no dia seguinte, para não demonstrar um interesse demasiado. Mas as horas foram passando, garotas que Matin não tinha a menor intenção de ver novamente ligavam, chamando-o para programas que tinha intenção menor ainda de fazer e a vontade de telefonar para Clarice aumentava. Quando estava a ponto de quebrar com um dos dogmas do seu manual de conquistas, o telefone toca. Era Clarice.

– Sabe o que é? Eu tenho uma festa para ir hoje e queria pedir emprestado o seu Violator do Depeche Mode. Me pediram pra levar uns cds.
– Melhor: eu copio o cd e dou pra você. Faço agora mesmo. Onde nos encontramos?
– Não quero te dar mais trabalho. Posso passar na sua casa? Fica melhor pra você?

Martin ficou surpreso e, obviamente, excitado com a inusitada proposta. Aceitou na hora, claro. Combinaram o horário e foi copiar o cd, arrumar a casa e a si próprio. Tomou um banho demorado, colocou perfume, coisa que não estava acostumado, e vestiu uma roupa bonita, mas casual o bastante para não parecer que estava se convidando para a festa que Clarice iria. Na hora marcada, o interfone toca. Martin a espera na porta, cumprimenta com dois beijos no rosto e a convida para entrar.

– A não ser que você esteja com pressa. Que horas é a festa?
– Não se preocupe. Faltam umas duas horas pro pessoal chegar lá. Marquei cedo com você por isso.
– Por isso o que?

Clarice respondeu abraçando Martin e dando um beijo em sua boca. Surpreendeu-se novamente, mas por pouco tempo. Acostumado com sua sorte com as mulheres, achou normal a atitude dela. Calrice estava muito sexy, apesar do visual quase inocente. Usava um vestido de alças com flores azuis, um pouco acima dos joelhos e um tênis. Martin agradeceu a Deus pelo calor que fazia, o que devia ser o motivo dela usar uma roupa tão leve.

Ofereceu uma bebida para Clarice, que entre as várias opções, escolheu uma cerveja. Martin adorava mulheres que não tinham a tão em moda preocupação com a “barriguinha” e bebiam com prazer uma cerva gelada. Não que Clarice precisasse se preocupar com isso. Com o corpo que tinha, Martin não conseguia imaginá-la barriguda nem com muito esforço.

Beberam, ouviram música e ficaram juntos por um tempo. Naturalmente as coisas foram esquentando, apesar de Martin não querer apressar as coisas com Clarice. Não com ela. Estavam deitados no sofá quando ele começou a desabotoar a calça. Vendo isso, ela se levantou e disse:

– Calma, Martin. Não precisamos nos afobar. Ainda temos uma festa para ir.
– Claro, amor...desculpe – respondeu, aliviado. Era a reação que Martin esperava dela, a prova de que Clarice era diferente das outras e merecia um tratamento especial.

Se recomporam e foram para festa. Não se largaram durante toda noite, Martin vendo que seu interesse por Clarice era o maior que já tivera por uma mulher. Quando Clarice já estava meio alta, pegou Martin pela mão e o levou até a área de serviço, o único lugar da casa em que a festa não tomava conta. A mistura do pileque com o tesão que sentia pela Clarice fizeram Martin propor que fossem para um lugar “mais calmo”. Ela aceitou na hora.

Iam para casa dela. Antes de descer do carro, em frente ao prédio em que ela morava, começaram os beijos e amassos, sem se preocuparem com quem passasse pela rua. Martin abaixou os bancos e quando estava quase chegando às vias de fato, Clarice pediu que ele parasse.

– Tá, tá...Vamos subir então? – ele quase suplicava.
– Tá louco, Martin? Eu moro com meus pais – disse Clarice sorrindo
– Então vamos lá pra casa. Em cinco minutos estamos lá.
– O problema não é esse Martin.
– E qual é o problema, amor? – foram conversando sem que Martin parasse de beijá-la.
– Eu sou virgem. Esse é o problema.
– Ahn? O que?
– Isso mesmo. Sou virgem. Isso te incomoda? – Clarice parecia ofendida com a expressão incrédula de Martin.
– Não, claro que não...Mas...Não vejo porque isso seria impedimento para...
– Você não é burro, Martin. Claro que você sabe que isso é um impedimento.

Martin se recriminou pela grosseria cometida. A bebedeira embotou seu raciocínio, e para quem não queria apressar as coisas, querer transar no primeiro encontro com uma garota que acabara de se revelar virgem era o cúmulo da afobação. Temeu ter posto tudo a perder.

– Você tem razão – ele falou, mais decepcionado com sua gafe que com a foda não dada.

Ela saiu do carro sem se despedir. Martin já começava a esmurrar o volante quando Clarice colocou a cabeça pela janela e lhe deu um longo beijo.

– Amanhã eu te ligo, tá?

Antes de subir, Clarice fez algo que o deixou atônito. Ela levantou o vestido no meio da rua, tirou a calcinha, sem pressa, como se estivesse no lugar mais discreto do mundo e a entregou para um estupefato Martin.

– Sonha comigo – ela disse antes de subir correndo as escadas da portaria do prédio.

Martin seguiu para casa sóbrio. Não haveria porre no mundo que resistisse ao que Clarice fez. E ela era virgem! Mesmo para ele, que tivera uma boa quantidade de mulheres na cama, a virgindade era quase uma abstração. E encontrar uma como Clarice, linda, gostosa, inteligente, com 20 anos e morando no Rio ainda intacta era praticamente uma impossibilidade. Ainda mais com a experiência – ele só podia definir assim – para deixar um sujeito mais velho como ele completamente louco de tesão. Tirar a calcinha daquele jeito, como uma menina fazendo uma travessura, tinha sido o golpe final. Martin estava apaixonado.

Começaram um romance tórrido, apesar de nunca realizarem a apoteose mais óbvia. Apesar de virgem, Clarice nunca poderia ser taxada como inexperiente. Gostava de fazer sua peraltices com Martin nos lugares mais extravagantes. Cinemas, boates, festas, nenhum lugar era perigoso ou indiscreto demais para ela. Martin enlouquecia, mas raramente pedia para que consumassem a transa. Quando ela dizia que seria no tempo certo, ele respeitava e aguardava.

Ficava imaginando com seria a primeira vez com ela. Sentia seu fogo e sabia que Clarice era a mulher da vida dele. Depois de deixá-la em casa, era inevitável que se masturbasse com alguma das calcinhas que ela lhe dava, que já estavam em um número considerável. Já era um hábito Clarice lhe presentear com suas lingeries, sempre que tinha quase chegado a foder. Não achava que fosse provocação dela. Via mais como uma compensação dela, por não ceder todo seu corpo para ele. Estava acostumado, e as vezes até as pedia.

Um dia Clarice chegou de surpresa à casa de Martin, tarde da noite. Tinha dito que viajaria com os pais e só voltaria no dia seguinte. Queria fazer uma surpresa para o namorado e o levou direto para o quarto. Ele estava acostumado com esses arroubos de paixão de Clarice, mas nunca acontecera na sua casa. Era um pedido dele: era um território perigoso demais para que ele se controlasse. Clarice o jogou na cama e se despiu sem dizer uma palavra, diante de um aparvalhado Martin. A primeira visão por inteiro do corpo perfeito de Clarice foi o bastante para que Martin tivesse a maior ereção da sua vida. Ele estava até com medo de gozar sem que ela sequer o tocasse. Clarice se deitou ao lado dele e tirou ela mesmo a roupa de Martin, que preferiu deixá-la comandar o espetáculo. Ela subiu nele, ambos nus, e se beijaram.

Acontece que depois de terem transado, Martin percebeu algo estranho. Ficou mudo após a rápida trepada, deitado ao lado de Clarice, pensativo. Ela notou que algo tinha acontecido e perguntou o que era.

– Acho que você sabe o que é, Clarice. Se você me falasse seria melhor. Não me faça perguntar.
– Do que você está falando? Não achou bom?
– Eu não sou criança, Clarice. Não me trate como uma.

Clarice se calou por uns instantes, preocupada. Depois olhou para Martin.

– Eu prefiro que você me diga, Martin. O que houve?
– Se você quer assim – respondeu, sentando na cama – Clarice, você não era virgem.

Ela não respondeu. Pegou o lençol e cobriu o corpo, sem dizer palavra. Nem precisaria. A acusação estava
confirmada pelo olhar perdido de Clarice.

– Por que, Clarice? – perguntou, sem olhar para namorada.
– Martin, olha...
– Clarice, a verdade, por favor. Eu não quero mais ouvir mentiras. Você não precisava ter inventado isso.
– Eu queria que fosse diferente com você. Eu estava virgem, queria ser, pra você. O que eu tinha vivido antes não tinha importância. Você foi meu primeiro homem, o primeiro a realmente valer a pena.
– E você acha que um cabaço ia fazer alguma diferença, porra! – disse Martin, exaltado – Se você me pedisse um tempo antes de transar comigo, eu entenderia e te respeitaria da mesma forma.
– Então é isso? Por causa do tempo que demoramos para transar?
– Você não entende, não é? Não é pela merda do tempo, nem mesmo pela mentira em si. É pela falta de necessidade da mentira.
– Meu amor, me per...
– Nem termine a frase, Clarice. Vai embora.

Ao terminar de contar sua história, eu também não entendi o porque da explosão do meu amigo. Martin parecia realmente apaixonado por Clarice, como eu nunca tinha visto antes. Se não era pelo tempo, nem pela mentira, o que o teria levado a ser tão irredutível em não perdoá-la?

– A ilusão que ela criou da virgindade – me explicou, chorando – seria minha redenção também. Eu não estava com ela apenas por sexo, como era com as outras. Eu esperaria por ela, pelo resto da vida. Era o que eu achava.
– Então foi pela mentira.
– Mas não pela mentira dela, e sim por me fazer ver a mentira em que eu vivia. Quando percebi a farsa, me
enraiveceu não a falta de honestidade, mas o fato dela não ser virgem. No fundo estava me enganando, queria mesmo era sua virgindade, como um troféu especial. Sem isso, ela não era diferente das outras. Pensei que a amava e estava amando um hímen.
– Tá. Mas então não vejo razão pro seu estado lastimável. Autocrítica por ser um idiota fútil e
sexista – coisa que só você não sabia – não justifica você se afundar em calcinhas e autopiedade. Se você entendeu que não era da Clarice que gostava, por que chora por ela?
– Não é por ela, mas pela dúvida. Se ela fosse realmente virgem, pode ser que eu tivesse mesmo mudado. Se no dia em que a vi naquele vestido azul maravilhoso, ela tivesse me dito que não era virgem, eu provavelmente a teria tratado como tratei todas as outras, e não teria tido ilusões sobre uma possível
mudança no meu comportamento. Estou assim por ela ter me dado uma ilusão que eu não precisava, de ter me tornado uma pessoa melhor. Estou chorando pelo o que eu poderia ter sido.
– Martin...se é por isso, vá tomar um banho e chame uma diarista. Você acabou de falar a maior quantidade de asneiras sem sentido que eu já ouvi na vida.
– Não te recrimino por não entender. Nem eu mesmo estou plenamente convicto se o que falei é certo. Mas
você tem razão. As vezes, o amor é mesmo um monte de asneiras sem sentido.