29.9.04

O Blecaute



Foram precisos alguns segundos antes que todos notassem que não foi o dj que parou com "Come Together" do Primal Scream propositadamente no meio do refrão. Os frequentadores do clube ainda cantaram a música um tempo, até notarem que tinha havido uma falta de energia e não apenas na pista, mas em toda casa.

Fernanda era uma das que cantaram o refrão, mesmo depois da música ter parado. Ela estava de olhos fechados, curtindo o efeito do ácido que tinha tomado e foi das últimas a reparar no blecaute. Ela só se deu conta do ocorrido quando as pessoas à sua volta começaram a gritar. Não eram gritos de medo. Sentia-se a excitação em cada berro emitido. Fernanda não precisaria nem ter sentido o clima do público. Ela já estava mesmo excitada.

Não sabia ao certo onde estava Caio. No meio do ligeiro caos criado, ela não tinha certeza se ele já tinha voltado do banheiro. Isso era uma das coisas que a irritavam nele, a falta total de timing. Ela tinha pedido que ele ficasse e dançasse com ela a música. Ele disse que não aguentaria esperar, que voltava rápido.

As pessoas começaram a se esbarrar na pista. Ela não sabia se Caio estava ou não por perto. Mas ela não fazia, naquele momento, a menor questão de averiguar isso.

Passaram-se uns quinze minutos antes que a energia retornasse. A gritaria generalizada havia parado bem antes disso. Tirando um ou outro ruído na pista, todos se silenciaram, por alguns momentos. O retorno das luzes foi meio constrangedor para todos. O que tinham feito e com quem era uma incógnita para quase todos. Homens, mulheres, todos estavam confusos, mas não necessariamente desgostosos. A volta da energia, tão repentinamente como havia acabado foi como um choque para Fernanda. Serviu para trazer sua lucidez de volta, apesar de ainda estar ligeiramente confusa. Resolveu procurar por Caio e foi encontra-lo no bar do clube. Estava calmamente bebendo uma cerveja.

- Porra, Caio! Onde você estava?
- Estava no banheiro, Nanda. Eu tinha te avisado!
- E demorou esse tempo todo?
- Não estava achando o papel no meio daquela escuridão.
- Você acha mesmo o momento apropriado para piadas?
- Não começa, Nanda! O que foi agora?
- Por que você não voltou pra pista? Por que não me procurou, caralho?
- Eu voltei pra pista. E também não percebi nenhum esforço seu pra me encontrar.
- Não se faça de idiota, Caio. Você sabia onde eu estava, e não o contrário...

Apesar da discussão não ser a única no lugar e muito menos a única por causa do apagão, parecia que era a que mais chamava atenção. Caio pagou a cerveja e puxou Fernanda pelo braço. "Não vamos fazer uma cena aqui. Se você quer brigar, vamos brigar no carro", disse.

A primeira coisa que Fernanda fez foi ligar o rádio, no último volume. "Pumping on Your Stereo" do Supergrass quase arrebentou os alto-falantes do carro. Caio abaixou o volume na hora.

- Se você vai começar a discutir comigo, será mais producente se eu continuar com minha audição perfeita, não acha?
- Para Caio... Não quero mais discutir com você. Desculpa minha explosão. Eu estava nervosa por causa da escuridão.
- Não era motivo para ceninha que você criou, Nanda.
- É, talvez....- a hesitação da Fernanda aguçou a curiosidade do Caio.
- Talvez? Se não foi só o blecaute, o que foi?
- Porra Caio! Você sabia que eu tinha tomado uma bala. O diabo do lugar fica escuro um tempão e quando as luzes se acendem, não é você que está do meu lado. Fiquei assustada.
- Não entendi. Desde quando você tem medo de escuro? Ou foi a pessoa que você encontrou do seu lado que te deixou nervosa?
- ....
- Nanda...fala. Quem é que estava ao seu lado? Ou melhor, o que a pessoa que estava ao seu lado fez com você na escuridão?
- Caio...eu estava louca. Você não estava do meu lado...
- Caralho, Fernanda! Você se pegou com o cara???
- Caio...tava escuro, eu estava distraída, pensei que era você.
- Pensou que era eu??? Porra, Fernanda!
- Desculpa...

Caio olhava para frente, o carro ainda parado. Via as pessoas saindo do clube, tentando imaginar quem era o cara que tinha agarrado sua namorada no escuro. Ele olhou para Fernanda, com a cabeça encostada no banco do carro, olhando pra cima.

- Tá bom, Nanda. Vamos enterrar esse assunto. Eu tive culpa também. Sei como você fica as vezes. Devia ter te procurado melhor.
- Me desculpa, Caio?
- Tá bom....só não vamos mais falar nesse assunto.

Fernanda abraçou Caio e lhe deu um beijo, daqueles que eram a marca registrada do casal. Eles se conheciam muito bem. Caio percebeu o que ela estava pensando, sabia que ela estava muito excitada. Sabia, pela intensidade do beijo, pelo jeito como ela enfiara a língua em sua boca, em como ela o abraçou e onde suas mãos iam, nos lugares certos.

- Espero que toda essa vontade não seja por causa de um desconhecido...
- Você disse pra não falarmos mais nisso...mas não é por causa do beijo de um estranho. Você tem camisinha?
- Não foi, é? - falou Caio, entre um beijo e uma mordida - o que foi então.
- Você é muito bobo...mas eu te conto. Você não percebeu como eu já não queria briga assim que entramos no carro?
- Notei sim...e daí?
- Foi como você me pegou pelo braço, pra gente sair do clube. Você sabe que eu fico maluca quando você se faz de bravinho.
- Eu estava puto, não bravinho.
- Melhor ainda, amor. Tem camisinha ou não?
- Tenho, claro...mas você não acha melhor a gente...
- Não acho nada, Caio. Essa película pro vidro foi muito cara para gente não aproveita-la.



A campainha toca na casa da Fernanda. Caio entra sem dar o beijo habitual na namorada. Ele parecia estar muito preocupado. Não se nota qual é o estado de espírito da Fernanda. Seu rosto não demonstra nenhuma emoção. Caio não demorou mais que cinco segundos para perceber isso, depois de vê-la. E isso só serviu para deixá-lo ainda mais nervoso com toda a situação.

- O que foi dessa vez Nanda? O que eu fiz? De onde você tirou essa idéia idiota de terminarmos?
- Calma, Caio. Senta primeiro. Não vou conversar com você em pé ou andando pela sala como um maluco.
- Maluco?!? Então eu sou o maluco? Você aparece com essa novidade e eu sou o louco?
- Senta que eu te explico.

A calma e a segurança da Fernanda realmente estavam tirando Caio do sério. Não que ele não estivesse acostumados com as sandices ocasionais da namorada, mas essa era a mais estapafúrdia de todas. E, pior, parecia ser a mais séria.Caio sentia-se num dilema: queria que Fernanda acabasse logo com essa brincadeira - se é que era mesmo uma brincadeira - mas estava curioso para ouvir a história.

- Quer beber alguma coisa? - Fernanda perguntou, com uma serenidade incompatível com o momento.
- Nanda, chega de palhaçada. Fala logo o que foi dessa vez.
- Tá bom. Você lembra daquele dia em que faltou luz no clube? Foi ali...
- Lembro, claro. Mas espero que isso não tenha nada a ver com essa insanidade. Além de fazer sei lá quantos meses, se alguém tinha motivos para ficar irritado com aquele dia...
- Não tem nada a ver com quem tinha motivos. Você vai me deixar continuar, Caio?
- Fala, Fernanda - respondeu, exaltado.
- Naquele dia, eu estava muito doidona e acabei ficando com um carinha qualquer que me agarrou no escuro.
- Eu sei, Fernanda. Mas eu pensei que essa história já tinha...
- Deixa eu falar, Caio. Naquele dia, eu não contei tudo que aconteceu.
- Ah...não?
- Não. Eu não "fiquei" apenas com o cara. Estava escuro, a luz demorou a voltar, o clima foi esquentando e...
- Porra, Fernanda! Não vai me dizer que você...
- Isso mesmo, Caio. Eu acabei transando com o cara.
- Não acredito no que estou ouvindo...
- Mas foi...eu transei com o cara, ali, no pista de dança, encostada nas caixas de som.
- Porra, Fernanda! - gritou Caio, se levantando - Como é que você faz isso!
- Eu fiz...

Caio começou a andar em volta da sala. Sua cabeça estourava. Não sabia o que fazer. Fernanda olhava para o chão, em silêncio. Caio se senta novamente, ao lado da Fernanda e pega sua mão.

- Olha, Nanda. Isso já faz um tempo. E mesmo que fizesse, eu não terminaria com você por causa disso. Eu também deixei de te contar uma coisa sobre aquela noite.
- É mesmo? - Fernanda disse, se virando para Caio, olhando-o nos olhos, com uma incrível calma - e o que foi?
- Eu demorei para te encontrar porque...eu também fiquei com alguém naquela noite. E também transei com ela no meio do blecaute, no banheiro do clube.
- Mesmo? - Fernanda estava surpresa - e porque você não me contou?
- Não quis te contar. Me desculpa. Aconteceu e eu me aproveitei quando você me contou antes.
- Muito nobre da sua parte.
- Pelo menos, eu não fiz no meio da pista...
- É incrível como você tem o dom de falar as maiores besteiras, nas piores horas - respondeu irritada.
- Desculpa, Nanda. Mas veja os fatos. Quem está no erro sou eu. Eu que fui falso com você. Estamos quites no lance da transa. E não temos mais motivos para terminar. Não por isso.
- Não por isso. Mas você não me deixou terminar o que eu queria dizer. Não é por uma transa casual que eu quero terminar com você. Eu já queria, antes de você me contar o que tinha feito.
- O que você ainda tem pra me contar, Fernanda?
- Eu fiquei grávida nesse dia.
- O que?!?! - Caio se levantou novamente.
- Você ouviu.
- Grávida?!?! Mas...quem te garante que não é meu? Transamos naquele dia também! No carro, você se lembra.
- Mas usamos camisinha, como sempre usamos. O único cara com quem transei sem preservativo nos últimos meses foi com o desconhecido.
- Mas...mas...

Caio andava pela sala, nervoso, mas sem palavras. Não sabia o que dizer, nem como agir. Estava puto da vida, mas tinha a exata noção de que a gravidez foi um acidente. Pelo que ele sabia, poderia ter engravidado a mulher com quem tinha fodido na mesma noite. Sentia que o que estavam passando agora era uma prova para o casal. Ou um castigo divino pelas drogas que andavam consumindo. Os dois se mantiveram em silêncio por algum tempo, até que Caio resolveu falar.

- Nanda...eu sei que esse filho não foi planejado. Não tenho motivos para terminar com você. Nós resolveremos isso. Vamos numa clínica, tiramos isso de você...
- Você ainda não entendeu nada, não é Caio. Eu não vou fazer um aborto.
- Mas...tá, a gente conversa sobre isso mais tarde. Você está nervosa, eu entendo. O importante é você saber que eu não quero terminar por causa disso.
- Mas você ou é muito egocêntrico ou é muito burro. Eu não perguntei sua opinião sobre terminarmos ou não. EU quero terminar com você.
- O que??? Do que você está falando?
- Sei que você não tem motivos para terminar comigo. Eu é que tenho meus motivos para terminar com você.

Agora Fernanda tinha conseguido realmente surpreender Caio. Ele não sabia o que pensar. Só podia olhar para ela com uma cara estupefata.

- Eu não terminei de contar tudo sobre aquela noite. Quando o cara me abraçou, no meio do breu, eu ainda tinha dúvidas se era ou não você. Mas assim que ele me beijou, é óbvio que eu percebi que não era meu namorado.
- Mas e daí! - explodiu Caio - Ainda não vejo motivos para querer terminar com você e muito menos motivos para você querer o fim do namoro. Eu sabia que a mulher que eu beijei não era você desde o começo!
- Não é essa a questão. A questão é que eu, mesmo sabendo que não era você, eu continuei beijando o cara. Eu queria beijá-lo, mesmo sabendo que estava te traindo. Eu quis dar para ele e dei.
- Fernanda, meu amor - Caio se ajoelhou diante da Fernanda, tomando-lhe as mãos - eu fiz a mesma coisa. Eu queria beijar aquela desconhecida, da mesma forma que você. Nós dois erramos. Eu posso te perdoar, porque eu te amo. Eu perdoo até mesmo esse filho. Por que você não pode me perdoar?
- Mas eu te perdoo, Caio. O problema é que eu não posso perdoar a mim.
- Ahn?
- É isso. Eu poderia conviver facilmente com milhares de traições suas. Mas não posso conviver com a minha traição. Nenhuma sequer.
- Você não pode estar falando sério.
- Estou sim, Caio. Eu tentei me enganar, desde aquela noite. Descobrir, hoje, que estou grávida, me fez ver a realidade. Eu não te amo mais. De outra forma, eu não teria feito o que fiz.
- Nanda, Nanda...você está nervosa, soube que está esperando um filho não planejado, de alguém que provavelmente nunca mais vai ver. Você está muito abalada para pensar direito. Amanhã...
- Amanhã, Caio, nós não teremos mais nada. E eu nunca pensei com tanta clareza em toda minha vida.

Ele ainda segurava as mãos da Fernanda quando viu, nos seus olhos, que a decisão dela estava tomada. Caio se levantou e saiu, sem olhar para trás. Saiu compreendendo vagamente o que levou Fernanda a tomar essa decisão radical. E o que realmente o incomodava agora era não saber se era essa vaga compreensão do ocorrido que o deixava mais arrasado ou a certeza de que ele nunca teria coragem para agir da mesma forma.

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