14.6.04

Cinza



para Ginger

O céu carregado que cobria sua cabeça e da sua atual namorada o faziam lembrar dela. Ela gostava do cinza, dos dias nublados. Para ela, eram um convite a reflexão.

- Mentira! Você gosta por causa daquela música!

Falou para irritá-la, dizendo que era por causa de "Happy When it Rains", do Jesus & Mary Chain. Ele gostava de implicar com a importância que ela dava ao rock. Ela não admitia, mas tinha a noção exata do quanto seu humor dependia de ouvir a canção certa pela manhã ou passar pela sua cabeça um refrão que a alegrasse.

Mas agora, esse céu acinzentado - que nem era o mesmo para ele e para ela - só prenunciava a chuva e outra série de memórias. Ele seguia calado, a cabeça realmente nas nuvens e o coração longe daquela que agora levava pela mão.

Era o começo de mais um domingo, sem que o sábado ainda tivesse realmente terminado. Só depois de ir para casa e fazer um sexo mais por reflexo que por vontade, entupidos de álcool e "outras cositas más" que ambos estavam. Aí poderiam considerar o dia oficialmente terminado.

Não que com ela fosse diferente, mas era diferente. Era com ela. Iam para o clube, bebiam, dançavam, encontravam os amigos, ficavam loucos e, as vezes, davam vexame. Não brigavam, pelo contrário: só depois de virarem amigos dos seguranças acabou-se a ameaça constante de serem expulsos por excessos de intimidade no meio da pista de dança.

- Pega leve, menina...a gente faz em casa, aqui é bandeira!

E como não seria, entre 30, 40 pessoas espremidas na pequena pista? Mas estavam loucos de amor e ácido e não conseguiam se controlar. Sempre eram cutucados pelos seguranças, que amigos, só pediam para maneirarem. Hoje, os clubes são outros, como outra é sua mulher. Não há mais excessos. Só há a lembrança, toda vez que tocava alguma música que ela gostava.

Ele se divertia com sua atual namorada, mas depois de algumas doses e principalmente de algumas músicas, costumava ficar quieto. A atual namorada notava que algo não estava bem, via-o pensando, coisa anormal de se fazer no meio de tanto barulho e movimento. Repentinamente, falava que queria ir. A atual namorada perguntava se ele estava se sentindo mal.

- Não, não é nada. Não suporto Mazzy Star, só isso.

No fim das contas, foi melhor sair daquele ambiente infestado de fumaça e recordações. Queria ar puro. Estava meio alto e se a garota que ele estava namorando agora começasse a fazer perguntas, ia se irritar. Esperava que o nascer do sol, que devia estar próximo, iluminasse seu raciocínio. Ele só não contava com o céu totalmente nublado.

-"You were my sunny day rain/ You were the clouds in the sky/ You were the darkest sky/ But your lips spoke gold and honey"

Não pode evitar o tom ríspido quando sua atual namorada perguntou o que ele balbuciava. Tentou consertar a situação, explicando com a voz mais delicada que podia fazer que era uma música sobre a chuva, condizente com o tempo que inesperadamente pegaram na saída do clube. A atual namorada o abraçou e ele retribuiu, mas, olhando para o céu, percebeu que esse abraço foi mesmo para ela.

Chegaram em casa antes da chuva. Falou com a atual namorada que estava cansado demais para tomar banho, que desmaiaria imediatamente. A namorada respondeu que ela não deixaria que isso acontecesse, que iria tomar um banho e já, já estaria na cama com ele. Deu um beijo nele e saiu, sem imaginar que o gosto ruim na boca do namorado não tinha nada a ver com as várias bebidas que ele havia tomado.

Tirou os sapatos, a camisa e se jogou na cama. Era inevitável, ainda pensava nela. Tentou imaginar - e conseguiu facilmente - como seria se ela estivesse aqui, no lugar da atual namorada: ele falaria que estava cansado, ela o beijaria, levaria ele pela mão até a cama, deitaria ele, colocaria uma música - dependendo do clima, poderia ser "Just Like Honey" do Jesus ou alguma mais eletrônica, como a banda Air - e então transariam, de várias maneiras, também dependendo do clima, mas esses eram muitos, e mudavam inúmeras vezes. Nessas situações, só uma coisa era rotina: era ela quem sempre dominava.

Sua atual namorada apareceu de repente, saída do banho, nua, secando os cabelos. Ele estava excitado, mas apesar da bela visão à sua frente, não era por isso. Era por ela. Ela ainda o deixava de pau duro, e não precisava estar presente para isso. Mesmo em outra cidade, outro estado, bastava que ela surgisse em sua mente.

A visão dele excitado fez sua atual namorada abrir um sorriso. Não foi direto para cama. Foi até o som e colocou um cd. Veio andando até a cama, com o controle remoto do som na mão. Deitou-se em cima dele e lhe deu um beijo. Sem parar de beija-lo, virou o controle em direção ao play. A música demorou uns segundos para começar.

Era o disco da Maria Rita.

Ele se levantou e ficou sentado na cama. A atual namorada perguntou o que houve. Enquanto acendia o cigarro, respondeu que não era nada, já tinha dito que estava cansado. A namorada abraçou-o e beijou-lhe o pescoço, falando que estava tudo bem, que se ele estava cansado, era só se deitarem. Ele saiu da cama, colocou a camisa e os sapatos novamente, e disse que precisava dar uma volta. A atual namorada protestou. Além dele não ter descansado nada, estava ameaçando um temporal.

- Eu gosto de chuva - foi o que disse, saindo do quarto e fechando a porta.

Na rua o vento era forte, mas eram tantas nuvens, em milhares de camadas sobrepostas, que não espantava a chuva iminente. Ele estava com frio. Cruzou os braços, cigarro entre os dedos, e seguiu em frente, enquanto as primeiras gotas começavam a cair.

Tinha vontade de chorar. Sabia que não era por causa da MPB na hora do sexo que ele tinha fugido do quarto daquela maneira. Gostava da sua atual namorada, mesmo sabendo que nunca deixaria de amá-la. Ela estava entranhada em sua vida, como o cheiro de nicotina estava na camisa que usara no clube esta noite.
A chuva agora era realmente chuva, apagou o cigarro dele e encharcou sua camisa. No meio da já quase tempestade, ele lembrou das razões que ela deu para ir embora, da sua casa, da sua cidade, da sua vida. Ela disse que não gostava muito de finais felizes, que não tinham graça. Foi uma conversa difícil que virou briga depois dela dizer que ainda o amava e que iria amá-lo sempre. Isso ele não podia agüentar. Se ela o amava ainda, não aceitava que ela fosse. Não entendia o porque.

- Porque assim que é a vida, porque é melhor assim e principalmente porque eu quero.

No meio da chuva, repetiu as últimas palavras que ouviu dela. Aceitou a tormenta como um batizado para sua nova vida, sem ela e sem ilusões sobre ela. Assim é a vida e ele aprendeu de uma forma dolorosa. E não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.

Ele olhou o céu acinzentado com a certeza que nunca mais o veria com os mesmos olhos, com a mesa esperança amarga. Depois virou-se e fez o caminho de volta para casa, para aquela que seria sua atual realidade.

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