8.6.04

O Ralo



Começou com uma lacraia, ainda filhote, saindo pelo ralo. Jorgina quase teve um ataque ao ver o sinuoso artrópode. Além de detestar insetos, sempre tivera pavor de veneno de lacraia. Todo mundo sabe que uma picada do bicho traria no máximo uma dor de cabeça a moça, mas ela não ligava para os argumentos.

- E se eu tiver uma alergia ao veneno e morrer? - perguntava, irritada.

Jorgina matou a lacraia com o rodo que estava ao seu lado, escorado na parede. Foi mais por sorte, já que ela batia com os olhos fechados, sem a menor preocupação com a mira. As pancadas do rodo foram acompanhadas por gritos estridentes.

- Ô, Jorgina!!! Vamos parar com essa gritaria, merda!
- Tem uma lacraia no banheiro, pai!
- E você tá gritando por que? Quer deixar a bicha surda?

Depois de uma sessão de berros e rodadas no chão, Jorgina abriu os olhos, devagar. Viu o cadáver da lacraria no chão, estraçalhado. Pode então terminar seu banho. Mas não conseguia tirar os olhos do corpo esmagado. A cara de nojo só foi desfeita depois de sair do banheiro. Foi direto à cozinha reclamar com a mãe.

- Mãe, alguém tem que dar um jeito naquele ralo!
- Jorgina, não me atormente, minha filha! Fala isso com teu pai.
- Taca água sanitária naquele buraco maldito que resolve! - gritou o pai, da sala.
- Isso resolve, mãe?
- Não sei...Sei que se você não ficasse horas penteando esse cabelo no chuveiro, o ralo entupiria menos e as lacraias não iriam precisar fugir do afogamento.
- Tava demorando! A culpa é sempre minha!

Tendo sido responsabilizada pelo incidente, Jorgina resolveu parar de discutir. Foi até a área pegar a água sanitária. Faria algo prático, ao invés de ficar só reclamando com os pais. Parou diante do ralo, garrafa de água sanitária aberta, e foi derramando com cuidado e atenção. Se alguma coisa viva saísse do buraco, incomodada com a água diferente, ela estaria pronta para sair correndo. Sorte dela, nada aconteceu.



Dia seguinte, "Seu" Manoel, pai de Jorgina, acorda as cinco da manhã para o trabalho. Tem sua rotina programada há décadas e detesta qualquer tipo de alteração nela. Todo dia é assim: sai da cama, escova os dentes, faz a barba enquanto se banha, olhando-se no espelhinho pendurado na torneira do chuveiro, bebe uma xícara de café com um pedaço de bolo de fubá. Sai de casa para abrir sua venda levando a página de esportes debaixo do braço.

"Seu" Manoel já tinha aberto chuveiro e provado a temperatura da água com a mão que não estava ocupada com a toalha e o aparelho de barbear. Pôs o aparelho no porta-sabonete e começou seu banho. Antes de sair debaixo da água, começou a se barbear. Fez uma espessa espuma esfregando o sabonete nas mãos e passou-a pelo rosto e pescoço. Barbeava-se com esmero, não queria que seus fregueses achassem que o dono da venda onde compravam comida não tinha cuidado com a própria aparência.
Quando estava concentrado em seu reflexo no espelho, passando a lâmina pela segunda pelo rosto, Manoel sentiu algo viscoso tocar seu pé. Sua reação foi imediata, misto de instinto e o reflexo. No pulo que deu, acabou cortando-se com a lâmina. Mas não reparou no corte ou no sangue que corria com a água do chuveiro. A cobra que estava rastejando no box era dona total da sua atenção.

- Ô Matilde! Matilde!!!! Corre aqui, acuda! - gritou "seu" Manoel, se esgueirando pelas paredes do box, fugindo do réptil.
- Mas o que foi, homem de Deus! Que desespero é....
- Uma cobra saiu do ralo, mulher!!!
- Uma o que?

Dona Matilde correu para o banheiro. Vinha do interior e conhecia muito mais de cobras que seu marido, filho de imigrantes que sempre morou na cidade. Entendia o pavor do esposo. Mas chegando ao banheiro, viu que nada podia fazer.

- Manel, meu filho! A porta do banheiro tá trancada! Não dá pra eu entrar!
- Ai, meu Deus!!! Mas você não consegue fazer nada sozinha, mulher!

Dona Matilde não respondeu. Ficou aflita com a situação onde não podia fazer nada de imediato. Colou o ouvido na porta e ouviu os barulhos que o marido fazia. De repente, um estrondo: ao que parecia, Manuel tinha saído do box. Ou melhor, pelo box.

Mas o barulho do vidro quebrado não foi nada, se comparado com a cena a seguir. "Seu" Manuel abriu a porta do banheiro e se jogou por ela. Ele não contava com a Dona Matilde colada com a cabeça na porta. O esbarrão foi inevitável.

Foi por pouco que dona Matilde não teve um ataque cardíaco. Não sabendo ainda o que tinha havido dentro do banheiro, se vê jogada ao chão, com o marido nu, com sangue e sabão no rosto todo. Só o fato de ver o marido seu roupas - fazia tempo - assim, de repente, já seria algo totalmente inesperado. Mas o sangue realmente a assustou.

- Manel - gritou dona Matilde - fala comigo, homem! Você está bem?
- Tá louca? Eu estou do seu lado! Não precisa gritar no meu ouvido!

A grosseria típica. Ele devia estar bem.

- Vai se vestir, Manoel - disse firme Matilde, se dirigindo ao banheiro.
- Tá...mas cuidado, mulher! Tem uma cobra enorme aí...- respondeu seu esposo, com uma voz bem mais contida, quase envergonhada.

Dona Matilde entrou devagar no banheiro. Olhou para cada canto do banheiro e dentro da armação do box semidestruído. "Seu" Manoel ia atrás, como um garotinho assustado, vendo a inspeção da mulher por cima dos seus ombros. Ela entra no Box, se agacha, pega alguma coisa no chão e se levanta, rindo.

- Mas era disso que você estava com medo, homem? Não tem vergonha?

Matilde segurava uma cobra cega, a maior que já tinha visto, mas inofensiva. "Seu" Manoel se encolheu quando a esposa aproximou o animal dele.

- Sai pra lá com isso, Matilde! Pra você que é do mato, é fácil! Nunca uma cobra tinha se esfregado em mim. E se ela me morde? Como eu ia saber se tinha veneno ou não?
- Nem boca esse bicho tem, Manuel! Não seja frouxo!

Diante desse argumento, Manuel se calou. Não tinha cara sequer para pedir para esposa parar de rir.

- Que seja, que seja - falou "seu" Manoel - de qualquer forma, tenho mesmo que dar um jeito nesse ralo. Uma lacraia é aceitável que saia. Uma cobra já é um exagero. No sábado eu vou dar uma olhada nesses canos.
- Só no sábado? E se sair outro bicho quando EU tomar meu banho, Manel?
- Ué? Mas não é a senhora que entende tudo de bicho selvagem? Se vire com suas cobras e lagartos até eu consertar isso.

Manuel se virou sem dar maiores satisfações à dona Matilde. Com o marido de costas, ela não pode ver o sorrisinho de triunfo que ele ostentava.



Jorgina chegou da rua à tarde. Foi recebida pela mãe, esbaforida.

- Onde você andou, menina! São quatro da tarde!
- Ué, mãe! Eu sempre chego às 3:30...o ônibus só demorou um pouco. Que foi que aconteceu?
- Eu precisando tomar um banho e nada de você chegar!
- E eu com seu banho?
- Olha a boca, menina!
- Desculpe, mãe...não quis ser grossa. Só quero saber porque você teve que me esperar para ir pro chuveiro.
- É que eu não estou confiando nesse ralo do banheiro. Hoje seu pai destruiu o box porque saiu uma cobra dele.
- Uma cobra?!? Meu Deus!
- Uma cobrinha à toa, não precisa entrar em choque, Jorgina.
- Mãe, eu tenho medo de lacraia...Imagina o que aconteceria comigo se eu visse uma cobra no banheiro.
- Deixa de frescura, garota. Estava esperando você chegar porque vou tomar banho com a porta aberta. Se eu te chamar, já entra levando um pedaço de madeira para qualquer eventualidade.
- Tá bom mãe....Eu levo uma madeira para VOCÊ resolver qualquer eventualidade. Eu não vou esmagar uma cobra com um pau...
- Mas é tão cagona quanto o pai! Tá bom, garota. Só presta atenção se eu te chamar, tá?
- Tá...

Dona Matilde entrou no banheiro, toalha no ombro. Colocou-a sobre a armação agora desvidraçada do box e abriu o chuveiro. Mantinha o olhar fixo no ralo. Não tinha medo do que quer que pudesse sair de lá, só não queria ser pega de surpresa. Estava quase terminando sua limpeza, só faltava enxaguar os cabelos, que estavam cheios de xampu.

A espuma caiu-lhe sobre os olhos. A ardência fez dona Matilde fechar os olhos com força. Estava esfregando o rosto quando sentiu um vento passando pelas suas pernas, seguido de um ruído de...seriam asas?

Fosse uma lacraia ou uma cobra, Matilde saberia como reagir. Mas quando ela, ao abrir os olhos, se deparou com uma dúzia de morcegos voando à sua volta, não soube o que fazer.

- AAAAAAHHHHHH!
- Mãe??? O que foi?!?! - gritou Jorgina.
- Venha cá! DEPRESSA!!!

Jorgina voou pelos cômodos da casa até chegar ao banheiro. Como a porta não estava trancada, foi entrando.

- Jorgina? É você - falou a mãe, sem poder vê-la, com a cabeça coberta com os braços.
- AAAAAHHHHH!
- JORGINA!

Dona Matilde ouviu os passos acelerados da filha se afastando. Pensou na hora o que seria dela se dependesse da filha para estar viva. Criou coragem, tateou as paredes atrás do rodo, até encontrá-lo. Saiu do banheiro nua e encharcada, distribuído pauladas no ar com o cabo do rodo. Caiu no chão da cozinha, esbaforida. Tinha acabado de se enrolar com a toalha que cobria a mesa quando surge a filha.

- Jorgina, sua retardada! Onde você se meteu quando eu precisei da sua ajuda no banheiro!!!
- Você não viu o bando de morcegos que tinha lá?
- CLARO QUE EU VI, sua burra!!! E pra que você acha que te chamei, mula?????
- Pra que?
- PRA VOCÊ ME AJUDAR A TIRÁ-LOS DE LÁ. CARAMBA!
- Mas mãe....Se eu tenho medo de lacraia, imagina o que eu senti quando vi aquele monte de rato voador no banheiro!
- Mas é uma imprestável mesmo!

A discussão terminou com o segundo barulho de vidros se quebrando no banheiro. Mãe e filha correram até o banheiro para ver o que tinha acontecido. Os morcegos tinham sumido, junto com o vidro que vedava o basculante.

- Primeiro eles saem por um buraco de onde mal sai uma cobra. Depois quebram um vidro que se eu socasse, só machucaria minha mão. Essa história está ficando muito estranha, minha filha. - disse dona Matilde, preocupada.
- Será que se a gente tacar a tal da água sanitária que papai falou, da jeito?

Dona Matilde olhou para Jorgina com pena. "Como é burra!", pensou sobre a filha.



- Manel, você TEM que dar um jeito nesse ralo agora! Não me interessa que sejam 7 da noite ou 4 da madrugada. Eu não vou mais me arriscar a entrar nesse banheiro e ser atacada por um bicho selvagem.
- Mas Matilde..eu acabei de chegar do trabalho, estou cansado e você nem vai mais tomar banho hoje, vai?
- Manel, eu não quero saber! Dê um jeito nisso, agora! Não quero ter que colocar um fiscal do IBAMA de plantão aqui em casa.
- Mas, Matilde, meu amor...veja bem...
- Eu estou vendo bem, Manel. Estou vendo que na hora que você for ler seu livro enquanto caga depois da janta, uma cobra vai subir pela privada e...
- Tá, tá, tá bom! Não precisa ser grosseira nem imaginar uma desgraça dessas! Eu vou dar uma olhada nesse cano...

Jorgina percebeu o sorriso vitorioso no rosto da mãe. Viu também a cara de descontente do pai, por isso nem perguntou se ele ira querer a garrafa de água sanitária. "Seu" Manoel voltou visivelmente irritado do quintal, trazendo a caixa de ferramentas.

- Eu só não quero nenhuma reclamação se eu tiver que quebrar o chão do banheiro todo. E se o barulho que eu fizer incomodar a novelinha de vocês, azar. Ouviram?
- Tá bom, Manel. Resolve logo esse troço e depois vem comer que o jantar tá quase pronto.

"Seu" Manoel entrou bufando no banheiro, batendo a porta. Ao contrário das ameaças feitas por ele, o banheiro manteve-se silencioso por uns bons 15 minutos. Jorgina via a novela sem interrupções e dona Matilde fritava um peixe para o jantar.

Mas a quietude foi subitamente substituída por um rugido e um grito horrível. A voz era do "seu" Manoel, mas o rugido foi inidentificável pelas mulheres. Correram até o banheiro, mas não conseguiram abrir a porta: por algum motivo inexplicável, Manoel havia trancado a porta.

Os gritos continuavam e eram cada vez mais horríveis. Jorgina e dona Matilde jogavam o corpo contra a porta, usando toda a força que tinham. O desespero de ambas ia aumentando, conforme os gritos iam se tornando menos intensos. Antes de ambas darem o golpe definitivo na porta, elas ouviram o ruído de algo se quebrando.

Presenciaram um cena surreal, assim que arrombaram a porta e entraram. Manoel estava estendido no chão, esquartejado, com partes de sua anatomia mastigadas e espalhadas por todo chão. Sua caixa de ferramentas estava jogada ao seu lado, completamente vazia. Onde deveria estar o ralo, um buraco com quase meio metro de diâmetro. O que os morcegos havia deixado do basculante não existia mais, tinha sido destruído por o que quer que tenha passado por ali. Pelas pegadas nos azulejos e pelo estrago feito na parede, era um bicho bem forte. Um tigre, talvez.

As duas mulheres se abaixaram diante do cadáver estraçalhado do pai/marido. Estavam ainda chorando, em choque, sem saber o que fazer quando, sorrateiramente, surge um par de mãos vindas da cratera onde ficava o ralo. Uma das mãos segurava uma chave inglesa.

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