31.5.03

Pelica


Sou mulher e você se aproveita da minha pressuposta fragilidade.
Você me agride.
Você me fere a cada conquista efêmera sua, tão elaboradas, que só servem para alardear sua colossal empáfia diante dos amigos do seu clã masculino. Você não imagina o quanto isso me mina, como vejo minha vida minguar a cada aventura sua.
Mas você é o homem.
E por isso, você comanda, você manda e desmanda. Você é o senhor de um castelo que deveria ser partilhado e não dominado. Não esperava por esse amor vassalo.
E nas noites em que você dorme em camas desconhecidas e baratas, eu não durmo. Eu não vivo, fico suspensa num labirinto de dúvidas. E mesmo assim, insisto em procurar a saída.
Eu sou mulher.
E tenho a pecha de fraca. Você ignora que fraqueza maior é a sua covardia. Covardia ao me machucar, até fisicamente. Mas eu quero a volta.
Me bater é fácil. Você é o homem, o macho forte que tudo pode, que tudo faz. Mas não quero mais essas derrotas impostas. Quero a chance de lutar. E isso, só você pode me ceder.
Me bata. Mas quero o desafio do revide.

Só me bata com luvas de pelica.

29.5.03

A carta de apresentação


Jonas nunca foi brilhante. Era novo, e nos seus tenros e mal vividos 19 anos ainda era o que se podia chamar de “marinheiro de primeira viagem” nessa coisa de viver. Não que isso o incomodasse. Com os pais que tinha – donos de uma conta bancária mais polpuda que a de alguns países africanos – não tinha mesmo com o que se preocupar. Um dia em que sua rebeldia sem causa estava mais atacada, pegou o dinheiro da sua mesada e comprou um apartamento. Decidiu começar vida nova, independente, sem depender dos seus pais para nada. Nada, além do sustento, claro.

A primeira coisa que ele precisava era, óbvio, alguém que o alimentasse, vestisse e mantivesse seu apartamento habitável. O anúncio procurando uma diarista foi de uma eficiência absurda. Jonas não esperava que o retorno fosse tão imediato. No seu parco entender, ele não imaginava que domésticas lessem jornais. Para algumas das candidatas à vaga, ele até perguntou se tinham esse hábito. Algumas ficaram ofendidas com a dúvida. Ele não era das pessoas mais delicadas, e sutileza não era umas das suas qualidades mais evidentes.

– Então você lê jornais? Surpreendente! Mas só deve ler os classificados, não? – e fazia uma cara de pasmo, o que no final das contas era o que mais ofendia as candidatas.

Depois de quatro ou cinco respostas meio tortas, Jonas se mancou a parou com a pergunta. Nem entendia o porque da revolta das moças. “Pobres, e ainda por cima mulheres, por que diabos eu vou imaginar que elas lêem?”, pensava.

Caras leitoras, não levem a mal nosso amigo. Ele é um idiota completo. Fazer o que? Culpa dos pais, dele é que não seria, lógico.

A demora na escolha – movida pela deturpada impressão do nosso amigo idiota de que ele arranjaria uma empregada jeitosinha, bem no estilo das que ele, e as vezes o pai, estupravam no quartinho da sua antiga casa – acabou assim que Jurema apareceu na sua porta, por volta das sete da noite.

Jurema era uma mulata de meia idade, de seios e ancas fartas e de uma robustez de causar inveja a uma vaca holandesa (a analogia foi involuntária). Chegou já se aboletando, dizendo que não iria ser entrevistada: o cargo já era dela. Viera por recomendação de um amigo do pai do Jonas, e o garoto, que não estava acostumado a sofrer imposturas de serviçais, ficou chocado com a empáfia daquela mulher. Gostou dela na hora, e queria ver até onde ela levaria essa afronta.

– Toma minha carta de apresentação.

“A estúpida criatura nem sabe o que são suas referências!”, pensou Jonas ao pegar o envelope jogado no seu colo. Abriu e viu onde ela havia trabalhado. Achou engraçado. Jurema havia trabalhado na casa de vários amigos dele, tão “independentes” como ele. Ricardo Toledo, Paulo de Moura e Castro, Francisco Toledo e Toledo e vários outros da sua turminha de bon vivants, que ele não via fazia tempo, não sabia bem porque. Mas o que o fez decidir pela contratação foi o último parágrafo da carta:
“Ótima no recondicionamento de conduta interpessoal”.

Não fazia idéia do que significava isso. Mas Jurema era uma mulher, no mínimo, interessante, e deveria diverti-lo durante algumas semanas. E claro, ela também cozinharia para ele e lavaria suas cuecas, o que era mais importante.

Jurema se acomodou no seu quarto de empregada e foi direto para cozinha, preparar o jantar. Jonas gostou da eficiência da mulher. Pensou que, apesar de não haver a menor possibilidade de sexo entre eles, poderia se acostumar com a criada. Para começar, ele pediu que a empregada lhe preparasse uma fritada de cogumelos com creme de espinafre e arroz colorido.

– Você não se mete no meu trabalho, garoto. Vai comer o que eu preparar e lamber o beiços.

A cara de abobado de Jonas depois dessa descompostura já valeria um mês de ordenado para Jurema. Ele, como ela já imaginava, não reclamou. Quando Jonas conseguiu abandonar sua cara boquiaberta e ia falar algo, Jurema nem deu tempo para o rapaz reagir.

– E saia AGORA da minha cozinha.

Ele saiu. Jonas não sabia se despedia ela agora ou se esperava a comida. Estava com fome e cansado de comer em restaurantes. Decidiu demitir a negra assim que comesse.

Antes houvesse demitido na hora. Quando a negra o chamou para sala de jantar, Jonas encontrou seu prato já pronto, fumegando na mesa. O prato tinha uma aparência grotesca, molenga. Era uma carne com uma cor horrenda, coberta com uma repartições quadriculadas. Jonas não conseguia imaginar de que espécie de animal teria saído uma iguaria tão repugnante, isso se aquilo era mesmo animal. Ou se era mesmo do planeta Terra.

– Que diabos é isso, mulher?!?!?
– Dobradinha. Bucho, para os íntimos. E meu nome é Jurema. Já tinha te dito isso, não?
– Olha, pouco me importa o seu nome. E não existe a menor possibilidade de eu colocar essa coisa nojenta na minha boca.
– Se você chamar novamente algo que eu tenha feito para você comer de nojenta, eu vou te dar um corretivo bem merecido.
– Nem vou levar em consideração essa sua frase. E pode ir retirando...

Antes que Jonas terminasse a frase, levou um safanão no meio da cara. Ele não imaginava que a mão da Jurema pudesse ser tão pesada.

– Eu não vou sair de lugar nenhum e você vai comer sua comida toda. E se você limpar o prato, ganha uma sobremesa deliciosa.

Jonas nunca foi muito afeito a agressões físicas. O primeiro pensamento que teve foi o de ligar pro seu pai, reclamando. Mas não, ele agora era independente, tinha que cuidar de si mesmo, sem depender de favores paternos. Ele resolveria a situação: comeria o prato inteiro, com talheres, se fosse necessário.

– Muito bem, garoto. Vai pro seu quarto que já levo sua sobremesa.

Jonas estava atordoado. O que fazer? Ligar para polícia e falar que estava em um cativeiro, que por um acaso era sua própria casa, pois foi sequestrado pela sua empregada? Contratar uns capangas para tirar Jurema a força da sua casa? Ele duvidava que Jurema se intimidasse com qualquer tipo de capanga. Se aparecessem uns 15 caras lá para levá-la de lá, ela provavelmente empurraria dobradinha goela abaixo de todos.

Ele ainda estava pensando no que poderia fazer para se livrar da mulher quando Jurema abre sua porta. Usava um roupão esfarrapado e encardido, que aparentava anos continuados de uso.

– Trouxe sua sobremesa.
– E onde está?
– Aqui.

Jurema abriu seu roupão, mostrando toda a pujança do seu enorme corpanzil. O choque da visão inusitada imobilizou Jonas pelos segundos que seriam os necessários para uma fuga desesperada. Foi o que Jurema precisou para se atirar em cima do pobre rapaz, com uma velocidade incompatível com sua massa corporal.

O estado de torpor estupefato do Jonas continuou durante as horas em que Jurema desfrutou – essa é a melhor definição – dele. E o inesperado da coisa foi que, apesar de todo seu tamanho, muito diferente das modelos-atrizes esqueléticas que formavam o cardápio sexual do mimado garoto, Jurema agradou Jonas. As carnes abundantes e voluptuosas da empregada, o cheiro cru de gente do povo e carícias que ele nem imaginava que poderiam existir conquistaram o rapaz.

No dia seguinte, Jonas acordou exausto e encontrou na mesa da cozinha um lauto café da manhã. Brevidades, Tapioca, cuzcuz de milho, bolo de fubá, suco de graviola. Ele não conhecia nada daquilo, mas com a fome que estava e com o incidente da dobradinha na noite anterior, preferiu comer tudo.

– Tá com fome, menino? O que você ontem fez para ter todo esse apetite?

Depois da inconveniente piadinha, Jurema soltou uma gargalhada à altura do seu enorme porte. Sua boca escancarada mostrava todos os seus dentes brancos, que pareciam maiores do que já eram no meio daquele sorriso descomunal. Jonas estava completamente sem graça, o que não impediu que tivesse uma ereção ao ver os grandes seios balançando no ritmo da gargalhada.

No almoço, Jonas foi obrigado a comer frango com quiabo. Depois, como no jantar, a sobremesa. No jantar seguinte, o prato foi mocotó, seguido de mais sobremesa. E assim foi, por dias seguidos. Jonas comeu coisas que nunca comeria sem uma arma na cabeça e, mais intrigante, começava a gostar da exótica culinária. Angu com miúdos, rabada, jiló, pé de porco, caldo de inhame. Todas as refeições lhe davam direito a sobremesa, óbvio.

Jonas foi ficando mais forte, ganhando cores saudáveis. A convivência com Jurema mudou até seus hábitos. Era menos dependente – quando Jurema estava muito ocupada, ele era obrigado por ela a ajudá-la – vinha perdendo suas manias aos poucos. Até seu vocabulário mudou um pouco, perdendo toda a afetação que anos de educação esmerada haviam criado. Escutava os conselhos da Jurema e os seguia, na medida do possível. Ele chegou ao cumulo de , vejam vocês, procurar um emprego. E conseguiu, em pouco tempo. A influência da família ajudou, claro, mas Jonas também tinha méritos na conquista. Não era mais o adolescente retardado que era quando foi brincar de casinha.

Um dia Jonas encontrou as malas da Jurema arrumadas, no corredor. Foi até a cozinha e encontrou seu desejum na mesa e a mulata lavando a louça, calmamente.

– Por que as malas? Vai viajar sem me avisar, nega? – Já tinham intimidade bastante para trocarem apelidos.
– Não, estou indo embora, moleque.
– Como assim, embora?!?!? Aconteceu alguma coisa?
– Meu trabalho aqui acabou. Só isso. Você já sabe se virar sozinho. Virou um homenzinho já – respondeu e soltou sua famosa gargalhada.
– E quem disse que eu quero me virar sozinho, mulher?!?! Quem vai cozinhar pra mim, lavar minhas roupas, fazer aquela broa de milho que eu adoro? É por causa de dinheiro? Recebeu uma proposta melhor?
– Não é grana. E pra sua broa, você arranja alguém, moleque. Tenho que ajudar outras pessoas que precisam mais do que você.

Jonas não estava entendendo a decisão. Então Jurema explicou tudo. Ela foi mandada pelo pai dele para acabar com o jeito mimado e infantil dele e essa era a especialidade dela. Daí o “Ótima no recondicionamento de conduta interpessoal” na carta de apresentação dela. Jurema já tinha feito o mesmo que fez por Jonas para várias pessoas, inclusive os amigos dele que estavam nas suas referências. Aí Jonas entendeu o sumiço da “tchurma” de playboys que viviam aprontando pela cidade. Jurema os havia tornado homens. Não precisavam mais dos joguinhos infantis que os divertiam tanto antigamente.

A vontade que Jonas teve foi de implorar para que Jurema ficasse. Mas compreendeu que ela não era mais necessária ali. E essa renúncia foi uma das provas que Jurema teve de que seu moleque realmente havia crescido.

– Posso te pedir só mais uma coisa, Nega?
– Pode, moleque...O que você quer?
– Me faz o almoço de hoje?

27.5.03

O banquete


Vem. Vem depressa, que o tempo urge. Vem, mas vem logo, que tenho fome.
Sirva a mesa. Vamos nos servir, vamos nos alimentar um ao outro, um do outro. Vamos trocar o gastronômico pelo fisiológico. Nosso apetite é o mesmo. E não há melhor iguaria.

Termos beijos como entrada, seguido de coquetéis de saliva e uma suculenta salada de línguas. Nessa hora, já estaremos com o gosto um do outro em nossas bocas, e esses aperitivos aumentarão a nossa fome, então já estaremos sedentos por provar o resto do banquete.

E famintos, teremos abraços flambados na paixão e carícias com molho picante, que serão consumidos com avidez. E, diferente dos jantares convencionais, quanto mais comemos, com mais fome ficamos. E o prato principal...ah, o prato principal...

Apesar de famintos, nos atiramos a ele com calma. Degustamos cada fração do seu sabor e sentimos exatamente cada gosto, cada cheiro, cada textura com precisão. Não temos pressa, nem podemos dizer quem come – o que ou quem –, pois temos a mesma fome.

23.5.03

Teologia da birita


Desde os primeiros fermentados no antigo Egito.
Desde as índias andinas que mastigavam a semente, produzindo o sagrado extrato.
Desde os tonéis que maturavam a cevada e o malte, com divina paciência.
Homens sempre beberam; aprenderam com suas divindades imemoriais a apreciar a catarse provocada pelos compostos etílicos. Sabem dos seus poderes libertários, e – porque não? – reveladores.
Deus deu a matéria prima: a cana de açúcar, a cevada, o malte, a uva, as ervas, o arroz;
Deu-nos também o engenho para criar o néctar que nos aproxima a Ele; Nos aproxima sim, posto que ao bebermos, podemos tudo. Ou quase tudo.
A bebida não é uma religião, pois a transcende; A bebida é sagrada
O vinho, transubstanciado, é o próprio sangue de Cristo: é preciso maior prova da sua sacralidade?

Não considerem o ébrio um fraco; o momento da embriaguez é um momento de iluminação.


21.5.03

Pensamento nu


Para ter a mente livre. Para ter a mente livre de obstáculos. Para ter a mente livre de obstáculos que amarrem seus braços. Para ter a mente livre de obstáculos que amarrem seus braços e travem a sua mente. Para ter a mente livre de obstáculos que amarrem seus braços e travem a sua mente deixando você sempre a um passo.

De onde deveria estar.

Não importa o lugar. Não importa o lugar no fim das contas. Não importa o lugar no fim das contas quando o que importa é estar. Não importa o lugar no fim das contas quando o que importa é estar consigo mesmo. Não importa o lugar no fim das contas quando o que importa é estar consigo mesmo e saber qual á única pergunta a ser feita.

Mudar de lugar ou mudar o lugar?

Chega de amarras. Chega de amarras para você. Chega de amarras para você e chega de armar amarras. Chega de amarras para você e chega de armar amarras para o mundo que você quer.

Desnude seu pensamento.

19.5.03

A revista


Ela desligou o som eletrônico que urrava no pequeno som portátil do escritório dele sem a menor cerimônia. Ela queria – e isso era o terror para ele – discutir a relação. Logo naquele dia, que ele tinha que entregar o conto na redação, aquele conto que estava empacado há semanas na sua cabeça.

– Julio, nós precisamos conversar...
– Tem que ser agora, Fátima? Tenho que entregar o conto hoje. E ele ainda não está nem perto de terminar.
– É, seu “conto” – ela colocou aquele tom de desprezo na palavra que era sua marca registrada – pode não estar...Já o nosso relacionamento.
– O que foi agora, Fafá?

Ele usou o tom condescendente que era sua marca registrada e que sempre a tirava do sério. Mas ele nunca usava esse tom intencionalmente. Ou, pelo menos, nunca assumia a intenção. Ela percebeu o tom, viu a cara dele de cansaço e quase saiu da sala sem dizer nada. Suas malas já estavam prontas mesmo, era só ela sair.

– Julio, eu vou embora.
– E dessa vez qual é o motivo?
– Você sabe qual é o motivo...E não fale comigo nesse tom...
– Desculpe, não foi minha intenção. Fafá...se eu soubesse qual é o motivo, eu não perguntaria. Detesto perguntas retóricas, você sabe disso.
– Você ainda não percebeu que você piorou muito?
– Piorei de que, Fátima?
– Dos seus surtos psicóticos....
– Surtos?
– Isso...Desde que começou a escrever pra essa revista...
– Ah...essa história...
– Isso, “essa história mesmo. Você fez de novo...
– Fiz de novo o que?
– Confundiu nossa vida com o que você escreve.
– Sério? Quando eu fiz isso?

A calma dele ao falar com ela, a cara de quem tem a eterna paciência, de quem não pode estar errado, estavam a deixando louca. E ele estava realmente ficando louco. Desde que fora convidado a ter uma coluna naquela revista surrealista, ele passava dias bolando seus contos, que tinha que entregar a cada 15 dias. Essa rotina aos poucos foi alterando seu modo de agir. Ficava dias alheio a tudo e, quando saía do seu transe, falava e fazia coisas sem sentido como se fosse a coisa mais normal do mundo. Às vezes, até discutia com ela por não entender do que ele falava. Tudo ficava claro quando chegava o exemplar da revista em casa. As situações sem nexo que ele tanto falava estavam todas em seus contos. Seus surtos duravam do dia em que ele terminava os contos até a revista chegar às suas mãos. A paz só existia enquanto ele ainda escrevia os textos. Quando ele colocava o ponto final no que escrevia, surtava novamente.

Como no dia em que ele começou a chamá-la de Maria Antonieta. Ela no início achou engraçado, só pensou que ele estava mais excêntrico que de costume. Para sua sorte, a revista chegou com um conto escrito por ele sobre a Bastilha dois dias antes de chegar uma encomenda na casa deles: uma mini-guilhotina.
Nessa fase ela ainda achava tudo engraçado. Sabia que ele era brincalhão e suportava seus trotes. Ele já ficou uma semana se esgueirando pela casa, e quando ela se aproximava, ele fugia, gritando “cobra, cobra!!!”. Na edição seguinte, a heroína do seu conto tinha o poder de se transformar numa víbora.

A gota d´água foi essa semana. Não foi algo ultrajante como pintar todas as roupas dela de roxo – edição número 17 – ou irritante como quando tentou convencê-la por três dias a conviver com uma gaiola com 23 corvos sem penas dentro de casa (edição 22). As maluquices dele, até aquele dia, estavam sempre restritas ao recesso do lar de ambos. Agora, espalhar pelo condomínio que ela era lésbica e que no fim das várias noites de tórridas orgias ela fazia rituais extravagantes com as virgens que arranjava já era demais. Todos no seu prédio a olhavam com olhares ora de ódio, ora de pena. E ele ainda tivera a coragem de dizer que era obrigado a participar dos bacanais. Foi essa afronta absurda que seria a justificativa para que ela o abandonasse.

– Como você pode ter tido coragem, Julio? Aturei muito tempo suas maluquices. Mas você me desrespeitou demais agora. Não posso mais ficar no mesmo teto que você. Você foi longe demais. Como pode ter coragem de falar pro prédio todo que eu sou uma lésbica pagã?
– Você se preocupa muito com o que dizem por aí...
– E você acha isso estranho, não? Inventar as suas sandices é que é muito normal...
– Não sei porque isso te incomoda tanto...Não deveria.
– Você está mesmo louco, não, Julio?
– Nunca estive tão lúcido, Fafá.
– É mesmo? E como você explica essa história absurda que você inventou de mim? E dizer ainda por cima que eu te obrigo a participar dos “rituais”...É muita cara de pau!!!
– Como você sabe que nunca fizemos aquilo?
– Aquilo o que, Julio?
– As orgias pagãs? Os rituais?
– Como assim, Julio? Pirou de vez?
– É isso mesmo, Fafá...”A vida imita a arte”, se esqueceu? Você pode afirmar com certeza que nunca fez um ritual satânico-lésbico?
– Deus! Vou chamar uma ambulância!!! Você precisa ser internado já!
– Fátima...a vida não tem a menor graça. O que conta é a arte. Sem ela, nossas vidas são estéreis. Se eu invento novas realidades e mundos, você deveria agradecer por te incluir neles.
– Não é possível falar com você, Julio...Você ensandeceu de vez! Mas tenha certeza de uma coisa: eu não vou ficar aqui vendo você se destruindo desse jeito. Se você melhorar ou precisar de mim, sabe meu telefone.

Ela foi até o quarto e pegou suas malas. Voltou até a sala e viu que ele continuava imóvel, olhando o monitor, completamente absorto pelo seu novo conto. Ela não queria saber o que viria nesse próximo texto. Iria embora desse mundo louco criado por ele antes que sofresse mais. Abriu a porta da sala e antes de partir olhou para trás, para ver se podia identificar ainda alguma fagulha de sanidade nele.
– Julio...Estou indo. Você não tem nada pra me dizer?
– Fafá...eu te amo, mas não posso te impedir. As forças em jogo são muito maiores que eu, você ou nosso casamento. “ars longa, vita brevis”...Nós não temos importância nesse jogo.
– Você fez a sua escolha, Julio. Estou indo.

Ela fechou a porta atrás de si e se foi. Enquanto descia pelo elevador social, o porteiro subia pelo de serviço. Trazia para ele o número 34 da revista. O conto dele nessa edição começava com a saída intempestiva de casa da personagem principal, depois de anos de um casamento feliz.

13.5.03

Já fez a lição de casa?


A lição de casa hoje é fazer a revolução
A lição de casa hoje é chutar o mundo janela afora
A lição de casa hoje é não desistir

A lição de casa hoje é disparar contra a guerra
A lição de casa hoje é quebrar as carteiras do colégio
A lição de casa hoje é: não existem mais escolas

A lição de casa hoje é correr o mundo
A lição de casa hoje é fazer o que se quer
A lição de casa hoje é querer o que se faz

E quando todos os alunos forem bem
E tirarem a nota máxima na matéria
Jogaremos todos os conceitos pelo chão
E poderemos finalmente passar de ano com méritos

12.5.03

Se vira, amigo...


Vai. Agora, se vira. Segue seu caminho sozinho. Tente não depender de ninguém uma vez na sua vida. Desde sua concepção, nunca fez nada com suas próprias pernas. Dependeu daquele espermatozoide que era o único que poderia te formar chegar primeiro naquele óvulo que também estava ali por acaso, pra sua sorte. Nove meses no ventre materno com comida, sombra e água fresca. Mamãe e papai te pajeando até você se achar suficiente esperto para fazer somente o que eles não queriam que você fizesse. E mesmo assim, nessa época em que você se comprazia em trazer o desgosto para aqueles que te davam boa vida, você ainda assim dependia da acolhedora mão de alguém para seguir vivendo.

Para agora de contar com a sorte, sua ou alheia. Chega de desculpas para sua preguiça em ser alguém. Não mais “a questão estava mal formulada”, nem “o emprego não era mesmo tão bom assim” ou “se não fosse a maldita trave”. Se vira. Ganhe da sorte, ganhe do azar, ganhe das macumbas que fazem pra você. Ninguém está dizendo que será fácil. Mas ser alguém que conta é o mínimo que esperam de você.

Esqueça seus “contatos”, seus “pistolões”, suas “dicas quentes”. Seus “apadrinhamentos”, seus “favores devidos”, suas muletas para andar. Uma vez na vida, viva; mas por si, sem dependências. Se vira, amigo...

Se vai valer a pena? A resposta deve ser dada por você mesmo. Ninguém sabe das suas dores e anseios. Pode ser que isso que você chama de “levar a vida”, essa forma preguiçosa de guiar seus passos até seu fim inevitável, lhe seja agradável. Vai muito pela sua cabeça. Mas já que o seu fim vai ser o mesmo de todos, tente fazer com que esse breve intervalo de tempo entre seu parto e seu passamento tenha valido a pena.

Se vira, camarada. Antes que seja tarde. Antes que seja tarde demais. Antes que não seja mais tarde ou cedo demais, apenas inútil.

30.4.03

O buraco



Apartamento na Zona Sul. O dia azul resplandecente do lado de fora não combina em nada com o ambiente. As paredes amarelas de tanta nicotina, os livros e papéis amontoados, o computador com seu zumbido perpétuo. No centro da sala, uma mesa, duas cadeiras, uma garrafa de uísque na metade. Antônio e Luis Cláudio estão em silêncio. O copo do Antônio meio cheio, o de Luis, meio vazio. Antônio esperou que esse momento nunca chegasse. Mas finalmente chegou.

- Você tem certeza, Cláudio?
- Claro, Tonico. Você sabe que sim. Ou você achou que eu estava brincando?
- Confesso que não pensei nada no momento. Eu nunca levo muito a sério as loucuras que você diz...
- Pois devia.
- É.

Luis acende o terceiro cigarro em menos de 10 minutos, ignorando a cara de reprovação do amigo. Antônio não conseguia acreditar no que estava prestes a testemunhar. Era uma loucura, mas ele havia prometido a Cláudio. E Cláudio sempre cobrava suas promessas.

- Eu tinha te falado, Tonico. E você prometeu estar comigo nessa hora. O prazo acabou.
- Mas....você não pode se entregar dessa forma, Cláudio. E o tratamento?
- O tratamento que se foda! Mais uma sessão e eu morreria mesmo..
- O médico te deu três meses...
- E hoje acaba o prazo. Eu sempre achei engraçados esses prazos dados pelos médicos. Eu sempre imaginei qual seria minha reação quando recebesse uma data limite como essa. Três meses! Na minha cabeça, no dia exato em que acabasse o prazo, eu cairia fulminado no chão. Não gosto dessas imprevisibilidades. Se eu me fosse antes, tudo bem. O doutor foi bem claro: no máximo três meses de vida. Não vou ficar brincando de moribundo. Ele me deu três meses e disso eu me recuso a passar por aqui.
- Não fale besteiras, Cláudio. Você pode melhorar...
- Há! Eu já passei da fase de me enganar, Tonico. Não fique se enganando também...

A promessa tinha que ser cumprida. Antônio achou a idéia ridícula na hora, mas o dia D havia chegado e Luis realmente cobrou a dívida. Enquanto via Luis acabando com mais um copo de uísque, Antônio se lembrou das coisas que já havia passado com Luis. Era seu melhor amigo, desde crianças. E agora Luis, com a maior das calmas, quer dar um fim nessa amizade de forma definitiva.

O que mais deixava Antônio revoltado nem era a desistência (covardia?) de Luis. Desde que soube da gravidade da sua doença, sabia que ele não aguentaria o tranco de viver o pouco que lhe restava de vida como um enfermo, um doente terminal. O que revoltava Antônio era a crueldade de Luis ao cobrar a promessa. Ainda mais esse tipo de promessa. Desistir da vida, ignorando todos os que o amavam já era um bruto egoísmo. Mas cobrar esse tipo de promessa, do seu melhor amigo, já era sadismo. Mas apesar da ingrata incumbência que recebeu, ele não discutiria com Luis. Eram seus últimos momentos. Se fosse para ser liberado da promessa, que isso partisse de Luis.

Luis encheu de novo seu copo, deu uma longa talagada, uma forte tragada no cigarro e tossiu.

- Cof, cof...Você sabe qual é a coisa que quanto mais dela se tira, mais ela cresce?
- Ih...já está bêbado?
- Claro que estou, merda...Responde logo...Se é que você sabe.
- Claro que sei. É o buraco.
- Isso. O buraco. Depois que eu decidi, por conta própria, arranjar um buraco só pra mim, tentei traçar um paralelo entre um buraco e a vida.
- E teve sucesso?
- Não...- rindo - Talvez a vida já seja um buraco, quando nascemos. Nós vamos a preenchendo, dia após dia, tentando dar um sentido a ela. Mas no final das contas, somando os dias, nos acabamos com o buraco. Nos enchemos o buraco/vida todo dia, até que não haja mais o buraco, até que ele esteja completamente cheio.
- Que besteira...
- É...eu sei...- rindo novamente.

Luis matou o que restava de uísque no seu copo em um gole. Antônio até acharia engraçada a cara dele depois de engolir a dose, estivessem em uma situação. Luis acendeu um cigarro na guimba do anterior e se levantou da cadeira.

- Está na hora, Tonico...- falou Luis, olhos marejados.
- Cláudio...
- Limpa essas lágrimas da cara...isso não pega bem, Tonico. Um homem velho desses chorando como uma criança. Dá cá um abraço e POR FAVOR, não me venha tentar me convencer a mudar de ideia de novo....
- Cláudio...isso é loucura!
- Eu sei....mas a vida é louca. Quem sabe se a morte não tem mais lógica...

Os dois se abraçaram. O abraço mais longo e fraternal que já deram.

- Tonico...Sei que parece crueldade te obrigar a fazer isso. Mas é o mais certo pra mim. E eu precisava do meu grande amigo, meu irmão aqui. Em tudo que eu fiz de importante na minha vida, sempre tive você do meu lado....Você entende?
- Entendo, Cláudio...
- Tudo bem...é a hora...A gente se vê um dia...
- Assim eu espero.
- Adeus, Tonico.
- Adeus, Cláudio.

Luis foi até a janela, abriu-a e olhou o céu e o mar por uns momentos. Ainda com o cigarro na boca sentou no parapeito da janela.

- É um lindo dia pra morrer...

28.4.03

Ode à vingança


Não vale a vida
Nada, não isso, mas não esmoreço
Cada dia, uma vingança
E sei que a esperança cobra seu preço
Te odeio, não morra ainda
Porque a cada seta de sol, a cada lança
Emitida, mesmo de longe, cria a chaga
Já natimorta, em convalescença infinda
Companheira constante, dorida

Te odeio sim, e nem o choro de dor
Em torrente, perene, apaga
O que temos de arcar como tributo
Não morra ainda, ainda há o que penar
Não havia o que proibir no fruto
Não havia no começo pecado no ar
Não havia a culpa no início da saga
Não havia mesmo sequer quem culpar
Se meu ódio não deixa de ser uma forma de amor

23.4.03

Umbigo


– Pois agora o que eu quero é cuidar somente de mim...
– Muito altruísta da sua parte essa decisão.
– Não vejo porque você acha isso tão errado! Quero um tempo pra só pensar em mim. Isso é egoísmo?
– Bem, pelo Aurélio, essa é a definição de egoísmo...
– Você não me entende mesmo...
– Entendo, entendo. Você não quer mais saber de ninguém, fazer favores pra ninguém e isso inclui me deixar sem o jantar e abandonar seus deveres de esposa.
– Deveres de esposa?!?! Em que século você está?
– Tá bom...me expressei mal. Mas que você podia fazer o jantar, podia.
– E porque VOCÊ não pode fazer?
– Ahn...minha total inépcia na cozinha é uma boa razão?
– Não faça dramas. Você não é tão ruim assim cozinhando. E se você achar mais fácil, tem miojo no armário...
– E agora miojo é janta?
– Você está ou não com fome? Quem tem fome come o que tem...
– E de que adianta eu trabalhar e comprar carnes variadas, hortifrutigranjeiros e temperos mil que VOCÊ pede se eu tenho que chegar em casa e ter que me virar sozinho no fogão ou então comer macarrão instantâneo?
– Você pode fazer a comida que você quiser...Quando eu cozinho, você não me ajuda em nada, e nem pensa em se oferecer. E eu também trabalho e ajudo nas compras. Não jogue isso na minha cara...
– Olha, vou ser sincero...Não entendi nem gostei nada dessa sua idéia de “cuidar só de você”.
– Eu preciso desse tempo! Eu quase não faço nada do que eu gosto. Faz meses que eu não leio um livro! Eu chego do trabalho e tenho que cozinhar pra você...
– E eu faço o que eu gosto?!?! Até parece!!! Chego do trabalho morto também e...
– Você ainda tem o seu futebol na quarta...
– Opa! Não meta o futebol no meio da conversa! Minha pelada é sagrada!
– Tá vendo!!! Você tem sua “sacralidades”...eu também quero ter!
– Mas tinha que ser na hora do jantar isso?!?!?
– Não...pode ser às 3 da manhã, se você achar melhor...
– Quem está fazendo drama agora?
– Olha, não estou pedindo seu consentimento. Estou comunicando. Minha decisão está tomada...
– Que legal isso...Por que você casou comigo? Pra brincar de ditadora?
– Não...casei com você porque te amo. Mas preciso cuidar mais de mim. Agora quero pensar só no meu umbigo...apenas nisso...
– Hmmmmm...
– Que foi?
– É por isso? Por causa do seu umbigo?
– É. Só vou pensar no meu adorável umbigo...
– Nisso eu concordo...Seu umbigo é mesmo adorável...
– Você acha?
– Claro....olha só...um buraquinho tão delicado merece mesmo um cuidado especial...Passaria dias só olhando pra ele...
– Só olhando?...Pode tocar se quiser...
– Boa idéia....

(Smack)

– Hmmm....olha...o que você quer comer?
– Que tal aquele bifinho com fritas?
– Tá bom...acho que você está merecendo....
– Só isso?
– Só...não quero abusar...anh...pode ter uma saladinha?
– Tudo bem...Eu faço, meu amor...
– Quer ajuda?
– Não....você é péssimo na cozinha...

21.4.03

A entediante rotina de um morto vivo


Eu morri no dia 23 de fevereiro de 1996, em uma noite que ventava muito, se me lembro bem. Confesso que não guardei na memória todos os detalhes do dia do meu passamento. Peço que não me julguem por isso. Se vocês pensarem bem, não aparecem muitos defuntos com uma memória de elefante por aí.

Acontece que eu continuo vagando por aí, sem que minha morte tenha alterado muito minha rotina. Tenho o mesmo emprego, os mesmos amigos e faço quase tudo que costumava fazer quando vivo. Claro que como morto eu deixei de fazer algumas coisas que eu não gostava. Agora certas obrigações que eu tinha não faço mais. Nem morto!

Rá! Eu não era tão irônico assim quando estava entre os vivos....

O que mata em estar morto (há!) é o tédio. Meus dias, que nunca foram muito excitantes mesmo, agora estão mais parados ainda. Para mim, eles passam sem diferença entre um e outro. É como viver – viver? – reeditando o calendário, com dias, semanas, meses, anos iguais. O que é novo não me alegra e eu desprezo. O que é velho já me encheu a paciência e não presto mais atenção.

Talvez isso seja o inferno. Mas o que mais me amedronta é que, se céu e inferno realmente existem, eu não mereceria o castigo eterno. Sempre fui uma pessoa boa. Bom, basicamente boa. Nunca fiz mal a ninguém. Posso até ter desejado o mal pra algumas pessoas, mas isso não conta, não é? Ou pelo menos não deveria contar.

Então, se eu não mereço a danação perpétua, devo estar no paraíso. E se isso é o paraíso, seria melhor ter feito algum mal enquanto vivia. Pelo menos ia me divertir mais naquela época. Se eu for um defunto sortudo, talvez eu esteja no purgatório.

Mas eu nunca acreditei nessas transcendentalidades esotérico–religiosas. Acho que a resposta para minha inusitada situação é uma só: eu morri e esqueceram de me enterrar.

15.4.03

Os três goles na morte


Eu estava viajando sem destino pelo interior do país, numa época em que estava com um espírito aventureiro. Ia sem mapas ou muita grana, pegando um ônibus ali, arrumando uma carona aqui, e dormindo onde podia. Levava comigo uma barraca e quando estava em lugares muito isolados, a solução que eu tinha era acampar para passar as noites.

Às vezes, a solidão me incomodava. Passava dias sem ver sequer uma pessoa, e sentia falta de alguém para conversar. Apesar de uma das razões da viagem ser dar um tempo da humanidade, depois de alguns dias viajando sozinho ficava tedioso ficar apenas lendo e olhando as estrelas.

Mas então, numa noite de céu limpo, quando estava no interior de Minas, apareceu no meu acampamento uma senhora, já bem idosa. Ela estava com muita sede, e mal conseguia falar
de tão cansada. Eu a acolhi, ofereci um pouco da minha água e preparei uma cama para que descansasse um pouco. Em uma situação normal, eu faria tudo isso a contra gosto. Mas depois de dias sem encontrar viv'alma, sua aparição tinha sido benéfica, para quebrar a rotina de viajante solitário.

Depois de algumas horas deitada, a velha senhora já havia se recuperado. Pude ver sua real fisionomia depois do seu descanso. Sua cor, de um pardo fosco, tinha voltado, estava mais relaxada. Pela sua face enrugada, parecia estar por volta dos sessenta anos. Trajava umas roupas meio esfarrapadas, no estilo cigano. Talvez fosse mesmo uma dessas loucas que vivem de esmolar e ler mãos nas ruas. Deve ter ser perdido do seu grupo e, caminhando a esmo, chegou até minha barraca.

Ao acordar, a velha cigana estava bem disposta, e com vontade de falar. Como eu, devia estar há muito tempo sem encontrar alguém.

– Muito obrigado, meu filho. Nem sei como lhe agradecer.
– Não precisa. Fiz o que qualquer um faria..
– É justamente disso que eu tenho dúvida, filho. Quem ajudaria uma pobre velha como eu? As pessoas têm muito preconceito com os ciganos...


Não achei conveniente falar que minhas intenções não eram completamente altruísticas. Mais do que ajudar a senhora, eu precisava ouvir o som de uma voz humana. E a presença dela, totalmente inesperada, nem parecia ter sido pelo acaso. Justo quando eu queria conversar com alguém, surge uma pessoa com muita disposição para falar. Teria sido sorte?

Ela queria me agradecer de alguma forma. Mas na situação em que ela aparecera e nos andrajos que lhe cobriam o corpo, ela não parecia ser uma pessoa que pudesse pagar por qualquer coisa que seja.

– Você já deve ter percebido que não tenho posses...e mesmo que tivesse, elas não seriam suficientes para pagar o favor que você me fez. Eu estava quase morrendo de sede e não aguentaria muito mais tempo caminhando. Você me salvou a vida.
– Não é para tanto, senhora. Eu não deixaria nunca uma pessoa na situação em que se encontrava sem ajuda.
– Você é um bom rapaz...O que eu posso fazer para te agradecer é contar sobre os três goles na morte...
– “Três goles na morte”?
– Isso...O que vou te contar agora é uma lenda muito antiga do meu povo, mas que ainda pode te ajudar no futuro...


Ela não iniciou seu relato de pronto. Pediu para preparar um chá pra nós, com umas ervas que tinha no bolso. Parecia que propositadamente criava um clima de mistério. Pos a chaleira no fogo e enquanto as ervas estavam na água, começou a falar.

– Todo homem tem seu destino traçado desde o dia do seu nascimento. Sua linha da vida acaba no dia em que ele toma o terceiro gole na morte...
– Como assim?
– O primeiro gole é tomado no dia em que se nasce. A morte começa a se aproximar de todos no momento da nossa primeira respiração. Isso lhe parece lógico?
– Claro, entendi...para morrer, basta estar vivo.
– Isso mesmo. Quando saímos do ventre de nossas mães, já saímos com sua primeira marca, nesse momento tomamos o primeiro gole da morte.
– E o segundo.
– O segundo é mais difícil de precisar o momento. Pode ser naquela hora em que escapamos de uma situação de forma miraculosa. Um acidente que escapamos por pouco, uma doença que se cura subitamente...Não existe uma idade certa para isso acontecer. Mas sempre acontece.
– E o terceiro? Quando tomamos?
– Também não existe um momento certo. Mas, assim que estamos desenganados, prestes a abandonar esse mundo, a primeira face que vemos em nossa cabeça é o rosto da pessoa que nos serviu o terceiro gole. Algumas pessoas do meu povo acreditam que é a própria morte que nos dá a bebida. Nunca percebemos na hora que bebemos o terceiro gole da morte, e nem sempre morremos de imediato. Mas na hora da verdade, em que estamos quase a morrer, nós temos a clara noção do que acontece...Após o terceiro gole, você está marcado.


Nesse momento, a velha cigana tira a chaleira do fogo e nos serve o chá que preparava. Perguntei o que eram aquelas ervas, e ela me disse que eram folhas fortificantes, que seriam boas para o resto da nossa caminhada.

O chá era bom, tinha um aroma forte, mas seu gosto era agradável. A bebida quente parecia ser também calmante, pois me senti sonolento alguns minutos depois. Aticei o fogo, arrumei a minha cama e a da velha cigana e fomos dormir.

Tive um sono agitado durante a noite. Sonhei que estava morrendo afogado, numa cena bem parecida com a que realmente tinha acontecido, quando eu era criança e fiquei preso no ralo da piscina do clube. Fiquei muito tempo submerso, e só fui salvo porque meu irmão mais velho sentiu minha falta no meio das crianças que brincavam na água. O salva vidas do clube disse que tinha sido um milagre....

A palavra milagre ecoando na minha mente me fez acordar. Eu ofegava e, apesar da fria manhã de julho, estava suando. Olhei pro lado e a cigana havia partido. O fogo havia se apagado, sobravam apenas as brasas ainda incandescestes e a chaleira ainda com um pouco de chá que a velha havia me servido.

Confesso que estava um pouco impressionado com a história que a velha cigana me contou. Mas depois de lavar o rosto, vi que tudo não passava de uma superstição de uma idosa senil. Achei até divertido meu ligeiro receio. Devia estar na hora de voltar para civilização. O tempo solitário havia me deixado meio confuso. Desmontei o acampamento, juntei minhas coisas e parti, em direção à rodovia de onde eu havia chegado. Me perguntei pra onde teria ido a velhota...seu rosto pardo e encarquilhado não me saia da cabeça.

O tempo seco de inverno deixou o barro do caminho poeirento, e enquanto eu arrumava minhas coisas notei que meus pés deixavam profundas pegadas no caminho. O que eu achei curioso, depois de pensar um pouco, é que só haviam as marcas do meu sapato na terra. Não consegui ver por que caminho a velha tinha partido. Seus pés não deixaram rastros.

14.4.03

Sessão da Tarde


Ultimamente vinha tendo cada vez mais a sensação de déjà vu. Era sempre ao chegar ao trabalho e ligar o computador. Colocava os fones pra não ouvir o barulho dos seus “colegas de trabalho”, pegava suas pendências do dia anterior, começava a resolvê-las e pronto. Aquela sensação de “já vi isso antes” o atormentava.

Colocou aquele disco do Tom Jobim que adorava, abria sua planilha não terminada de ontem e começava a prever tudo o que faria, como se sua vida fosse um filme já visto. Detestava isso. Era assim na maior parte do dia. Ia almoçar no seu restaurante preferido, com seus amigos e ainda estava na sua “Sessão da Tarde” pessoal. Tudo, tudo igual.

Ia pra casa, metrô lotado, caminhada até em casa, fazer a janta, ver um filme qualquer, ver seus mails antes de dormir.

Acordava no dia seguinte, chegava ao trabalho, colocava os os fones pra não ouvir o barulho dos seus “colegas de trabalho”, pegava suas pendências do dia anterior, começava a resolvê-las e pronto. Aquela sensação de “já vi isso antes” o atormentava novamente.

Colocou de novo aquele disco do Tom Jobim que adorava, abria sua planilha não terminada de ontem e começava a prever tudo o que faria, como se sua vida fosse um filme já visto. Detestava isso. Era assim na maior parte do dia. Ia almoçar no seu restaurante preferido, com seus amigos e ainda estava na sua “Sessão da Tarde” pessoal. Tudo, tudo igual.

Ad infinitum...

12.4.03

Liberdade


A história de Dininho não era diferente da história de tantos outros. Filho de família humilde, morador de favela, más companhias. Réu primário, condenado a cumprir pena de 2 anos.

Era um bom rapaz. Como dizem foi “mal orientado”. Era daqueles que se arrependem e que não têm a intenção de voltar para cadeia depois que conseguisse a liberdade. Dininho tinha a intenção de pagar sua “dívida com a sociedade”, apesar de não saber como cobrar a dívida que a sociedade tinha com ele. Sabia as regras do jogo e ia segui-las.

Então, faltando três meses para o fim da sua pena, estourou a rebelião no presídio. Os presos fizeram reféns, criminosos mais influentes mataram seus rivais, houve fogo nas celas Dininho foi poupado. Era sangue bom, não tinha problemas com ninguém.

Os rebelados conseguiram expulsar os carcereiros e quebrar as pesadas portas gradeadas dos corredores do presídio. Sem os guardas e antes do batalhão de choque chegar, era a chance perfeita para fugir. Muito foram. Dininho parou, em frente do último portão da cadeia, escancarado, com vários detentos correndo por ele. Estava a um passo da liberdade. Ou seria a um passo do regresso? Sua pena estava no fim. Se fosse pego, não seria mais primário e quando voltasse pra gaiola sabe lá quanto tempo ficaria por lá.

–Você não vem, Dininho?

O chamado das ruas, o vento fresco que não tomava há mais de um ano e até a vontade de mandar a sociedade tomar no cu eram apelos muito fortes. Mas não. Virou as costas e voltou para sua cela. No meio do caos que se encontrava, estava até feliz. Fez o certo.

Ainda estava no caminho da sua cela quando a polícia chegou, pra variar, atirando. Uma bala acertou Dininho pelas costas. Não conseguiu nem chegar a enfermaria. No fim das contas, de uma forma cruel, conseguiu sua liberdade.

11.4.03

Hábitos salutares


Acordou ao meio-dia, tendo dormido apenas algumas horas e acendeu um cigarro, antes de sair da cama. Quinta-feira, e estava novamente de ressaca. Fumou o cigarro ainda deitado, tentando se lembrar, sem sucesso, do que tinha feito na noite anterior. Amassou a guimba do cigarro no cinzeiro repleto de filtros de semanas e se levantou.

Tinha que tomar um banho. Não sabia se o cheiro que sentia vinha dele ou do seu quarto, mas por via das dúvidas, ia se lavar. Olhou-se no espelho e as olheiras e a barba quase cheia denunciavam o pouco cuidado que vinha tendo com si mesmo. Debaixo do chuveiro quente, a tosse habitual, acompanhada do espesso pigarro, não o impressionava mais. Viu o muco correr pelo ralo. A comparação com a sua vida foi inevitável.

Saiu do banho, fez a barba e procurou algo para comer na geladeira. Um pedaço antigo e ressecado da torta de queijo que havia comprado nem lembrava quando era a única coisa que ele arriscaria comer.

– Quem arrisca não petisca...mas eu não sou louco de arriscar minha saúde petiscando isso... – refletiu. Resolveu colocar uma calça, um tênis e ir tomar um café na padaria da esquina.

(***)

Às seis da manhã ela já havia acordado, tomado banho, tido seu desjejum e estava pronta para academia. Faria uma hora de exercícios para, às 7:30, estar no seu trabalho voluntário com crianças carentes. Sempre fazia esse serviço quando estava de férias. Era uma forma de agradecer a vida maravilhosa que tinha: Tinha saúde, um trabalho gratificante e muito bem remunerado, e uma família amantíssima que a adorava. Era feliz.

Talvez até fosse mais feliz se tivesse um namorado. Mas nem isso a abalava. Sabia que na hora certa ia encontrar o cara certo. Não precisava de pressa. Tudo em sua vida era assim, parecia que caía do céu.

Tomou um banho na academia e foi, resplandecente, para o orfanato onde fazia seu trabalho voluntário. Se as crianças soubessem como elas a ajudavam, veriam que o que ela fazia por elas era até pouco. Talvez, quando encontrasse sua alma gêmea, adotasse uma delas. Talvez duas.

Depois de dar o almoço para criançada, pensou em sair e comer algo. Naquele dia não dera sorte: a comida do orfanato não era das suas preferidas. Decidiu ia a padaria ali perto, comer. Apesar de ser bem de vida, preferia as coisas simples. Comeria algo no balcão mesmo, a rotina de almoços em restaurantes caros não era seguida quando estava de férias. Era quinze para uma da tarde.

(***)


Depois de ter engolido a média com pão na chapa, ele ainda sentia fome. Na verdade, foi a imagem do carré com batatas coradas que acabava de sair da cozinha da padaria que o conquistou. Não resistindo, pediu um PF com a iguaria, acompanhado de farofa e arroz. E uma cerveja, pra acabar com sua ressaca.

– Adeus ressaca. Bom dia, azia... – pensou.

Comia com certa avidez, até que notou a presença da garota ao seu lado. Repentinamente, sua avidez mudou de objetivo: a garota era realmente muito bonita. Reparou que ela também o olhava. Não sabia ao certo o que significava a expressão que tinha no rosto. Poderia ser um olhar de interesse ou de curiosidade. Calculou as chances que tinha de conseguir traçar a menina. No seu estado, achou que eram poucas. Decidiu voltar suas atenções ao prato à sua frente. Até que, surpreendentemente, ela falou com ele:

– Oi...Posso te fazer uma pergunta?

“Ah...aí é demais...essa está no papo”– foi o que imaginou, na hora.


(***)


– Claro, pode fazer....
–Seu nome não é Ricardo?


Ela quase desistiu de manter um contato com o sujeito, depois da cara de galã bêbado feita por ele. Ela detestava esses homens que toda vez que falavam com uma mulher pareciam precisar seduzi-las ou caso contrário teriam sua reputação jogada na lama. E se o sujeito com cara de sono que estava a seu lado realmente fosse quem ela pensava que era, a situação ia ser bem pior. Se o pretenso Ricardo continuasse com aquela cara de Rodolfo Valentino do subúrbio, ela ia acabar caindo na gargalhada. Esse constrangimento ia ser até pequeno depois dele descobrir do onde ela o conhecia. Ela notou que ele não fazia a menor idéia de que eles já se conheciam. E o incrível é que eles se conheceram na noite anterior! Quem pode ser tão esquecido assim?

(***)

– É isso...ahn...eu a conheço? Me desculpe, eu não consigo me lembrar...
– Sério? Isso me surpreende. Bom...Meu nome é Renata. Não lembra mesmo? Nos conhecemos ontem à noite...


Isso era mal. Ele tinha que beber menos. Não conseguir se lembrar dessa mulher linda já era ruim, mas esquecer dela a conhecendo a menos de 24 horas era péssimo. Tinha que reverter essa situação. Se bem que a o sorriso dela era promissor. Sua cara de sedutor estava funcionando. Onde tinha ido ontem mesmo? Recordava-se de começar a noite passada nessa mesma padaria, esquentando as máquinas com um conhaque, junto com dois amigos. Depois foi até aquele restaurante da moda com eles, jantaram com a companhia de duas garrafas de vinho. Como a casa de um dos amigos era perto, tiveram como sobremesa um baseado de ótima qualidade, para ajudar na digestão. Daí foram até...até....

Claro! Foram até aquela boate na Zona Sul. Nessa hora, Ricardo já estava mal, disso ele conseguia se lembrar. Também tinha certeza que havia encontrado alguns outros amigos, e melhor, amigas por lá. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguia se lembrar da Renata.

(***)

– Ah, Renata! Claro!!! Foi naquela boate no...
– Não, Ricardo...Não foi em uma boate. Foi depois da boate...Você estava com uns amigos. Estava meio mal, até.



O cachaceiro não se lembrava mesmo. Relembrando o estado em que ele estava, Renata até achou normal a amnésia. Ela estava começando a achar tudo aquilo hilário. Um bebum que ela havia encontrado ontem, que não se lembrava dela, estava descaradamente lhe cantando em uma padaria. A cena era surreal. Ela tinha certeza que quando ele se lembrasse de que maneira se conheceram, desistiria da conquista. Ela estava de férias hoje. E ontem só se encontraram porque ela estava trabalhando.

(***)

– Olha, vou ser sincero. Estava completamente bêbado ontem e...
– E percebi isso ontem..
– a discreta risada o deixou mais confiante
– É.. – disse sem graça, se aproximando – Eu estava meio mal ontem...Por isso eu não lembro de você. Isso nunca aconteceu comigo antes...ainda mais com uma mulher bonita como você....
– Você disse isso ontem pra mim. Espero que “Nunca aconteceu comigo antes” não seja um bordão seu.
– Ahn...não é não. Pode ter certeza disso.
– Na situação em que nos encontramos, é bom mesmo...Afinal de contas, eu te vi numa cama....


DEUS!!! Teria transado com ela?!? E pior, teria broxado com uma mulher dessas?!?!? Ele não se perdoaria nunca se isso tivesse acontecido. Onde foi? Motel? Na casa dela? Estava ficando desesperado com sua falta de memória. Bom, agora isso nem o preocupava tanto. Já a fama de impotente...

–Numa cama??? Eu não me esqueceria de estar numa cama, no mesmo lugar que você, nunca! Onde nos encontramos?
– Em Copacabana. Isso refrescou sua memória?


EM COPA?!?!?! Meu Deus...Ela era uma garota de programa!!! Como pode?!?! Tão bonita assim? Ricardo nunca teria grana pra pagar uma noite com ela. Teria sido algum amigo seu mecenas ontem? Como ele iria pagar isso depois?

(***)

– Em Copa? Onde? Como foi?
– Bom...eu estava trabalhando. E seus amigos apareceram te arrastando, praticamente.
– Me arrastando?
– Isso. Digamos que você não estava em condições nem de andar.
– E ainda assim você me levou pruma cama?
– Era o lugar mais indicado pra você ficar, no estado em que estava. Depois de descansar um pouco, seus amigos foram buscar você.
– Me buscar? Onde? Eles te pagaram?
– Como assim, “me pagaram”? Meu trabalho é gratuito...
– Gratuito?!?!? Como assim? Você não cobra?!!?
– Claro que não!!!
– Nunca vi isso! E o motel? Quem pagou?
– Motel?!?!!? Que motel?!?!?
– Ué? Não fomos prum motel?!!? Fomos até sua casa? Onde estava a cama que você me deitou?
– Minha casa??? Cama!?!?! Acho que me expressei mal...
– Não, não, sem problemas...só queria saber se você teve algum prejuízo ontem...
– Ahahahahahahah...
– O que foi??? Se você está rindo porque ontem não dei no couro, te aviso que em meu estado normal...
– Ricardo...cale a boca! Sua sorte é que eu estou de bom humor...Senão ficaria profundamente ofendida...
– Ofendida com o que??? Você não é uma garota de programa?
– CLARO QUE NÃO!!! Te encontrei em Copacabana, na madrugada, estava trabalhando e te coloquei numa cama. Estava passando numa ambulância pela Barata Ribeiro, voltando pro meu trabalho e seus amigos me chamaram porque você estava em coma alcoólico. Eu te coloquei numa cama, que por estar numa ambulância, se chama maca. Não, Ricardo, eu não sou uma puta. Eu sou médica...
– Médica?!?!? Ahn....porra..desculpa!!! Merda...que mancada!!! Nem sei onde enfiar minha cara...
– Que tal numa reunião do AA???


(***)

Sob as gargalhadas da Renata, Ricardo pagou sua conta e saiu de fininho da padaria. Seu carré com batatas, delicioso, ficou pela metade. Pela primeira vez viu que sua relação com a bebida estava ficando complicada. Iria dar um jeito nisso.

Mas antes, uma cervejinha num bar ali perto, que ele não era de ferro.

9.4.03

O conselheiro



Gostava de brincar com listas telefônicas. Passava horas folheando-as, sentindo a textura do seu papel vagabundo e sujando a mão com sua impressão barata. Escolhia algum número, de forma aleatória, e ligava. Não importava a hora. As vezes, às duas da tarde; outras vezes, às três da manhã. Não, não passava trotes. Ele dava conselhos para as pessoas.

- Ao acordar, viva!

Era isso e desligava. Depois de falar seus conselhos nem sempre compreensíveis à primeira vista, batia o telefone. Nem dava tempo de ser ofendido. Sentia que fazia um favor aos escolhidos. Até invejava-lhes a sorte. Ele próprio, que ajudava tanta gente, não tinha ninguém que para lhe oferecer uma palavra amiga. E era um único contato. Depois de ligar para os números, fazia questão de não os anotar, nem mentalmente. Sua ajuda terminava ali.

Um dia, após ter feito uma ligação às 10 da noite, o telefone dele tocou. Era uma moça do outro lado.

- Eu falo com o número 2222-3333?
- Isso...Com quem deseja falar?
- O que significa "Abrace a si mesma amanhã"?
- Ei?!?!?! Como você descobriu meu número?
- Eu tenho bina...Quem é você? Por que ligou pra mim? E o que significa isso?


Desligou o telefone. Não estava em suas prerrogativas explicar seus conselhos.Cada um dos agraciados que interpretassem seus conselhos como melhor os aprouvesse. E tinha sido muita audácia da moça, retornar a ligação. Mas não tinham se passado dois minutos e o telefone tocou novamente.

- Não vai me explicar?
- Não tenho o que explicar...use o conselho se achar que deve...
- Que conselho? Aquilo que você me disse era um conselho?
- Era...entenda ele como quiser.


Desligou novamente. E novamente, momentos depois, o telefone tocou. Atendeu. Não conseguia evitar. Era completamente contra deixar o telefone fora do gancho. Achava que, se tinha uma linha telefônica, era para ser usada. Ele desligou uma outra vez, e mais outra, e ela sempre retornava em pouco tempo. Na quarta ligação, conversou com ela. E a conversa até que foi indo bem. Descobriu que ela morava só, como ele e que - coincidência das coincidências! - ela trabalhava na companhia telefônica.

No dia seguinte, fez umas duas ou três ligações e seu telefone tocou. Era ela. Dessa vez, não só não desligou, como ficou conversando com ela durante um bom tempo. Falou coisas sobre a vida dele para ela e ela deu a ele uns dois ou três conselhos. Foram dormir era quase dia claro. Logo ele, que nunca tinha feito uma ligação com mais de 5 segundos, passou horas conversando com alguém.

Acordou pensando nela. Pensou em pegar sua lista telefônica, mas desistiu. Ela poderia tentar falar com ele e a linha não poderia estar ocupada. Esperou o dia inteiro, angustiado. Não sabia o que fazer. No começo da noite, seu telefone tocou. Correu para atender.

- Oi..
- Oi!!!! Esperei você me ligar o dia todo....
- Eu estava no trabalho. Lá eu não posso te ligar...


E ficaram outras várias horas no telefone. Ela já sabia tudo sobre a vida dele. E sempre lhe dava conselhos, que ele achava muito úteis. Uns dos conselhos que seguiu foi o de abandonar o hábito de fazer ligações para estranhos. "Já ninguém pediu seus conselhos, não há motivo para você dá-los!", ela dizia. Ele achou certo. Assim acabou sua vida de conselheiro anônimo.

Mas algo estranho aconteceu. Depois de conhecê-la, passava horas diante do telefone, esperando por uma ligação dela. Ela quase sempre ligava, mas quando ela não podia, ele não sabia o que fazer. Ficava louco, querendo saber o que ela acha que ele deveria fazer. Depois de anos de conselhos dados à estranhos, agora, dependia dos conselhos de uma amiga - já a considerava assim - para fazer qualquer coisa. E, o mais irônico de tudo: ele nem tinha o número dela.

2.4.03

A unha encravada da madame


A madame morava só em um apartamento em Copacabana. Tinha um periquito em casa, sua companhia quando a empregada não estava. Seus filhos? Esses tinham voado faz tempo.

Morava só desde que havia ficado viúva. Não se daria ao desfrute como suas vizinhas da mesma idade, que assim que ficavam sós na vida, procuravam logo outro homem para lhes acompanharem até a morte. Amava muito seu falecido esposo para fazer isso. Não reclamava da solidão. Mas a sentia.

A solidão, para ela era como uma unha encravada. Incomodava, mas não morreria por causa disso. Tivera uma boa vida. Se divertiu muito, teve dinheiro e o gastou da melhor forma possível. Namorou, casou, teve filhos. E, assim é a vida, as coisas começaram a envelhecer e se deteriorar. Como sua família, seu bairro, sua cidade. Viu seus filhos – muito bem criados – partirem, assim como seu marido, depois de longos 40 anos de casamento. Viu a decadência da sua Copacabana, assim como do Rio de Janeiro em geral com dor. Nem tinha mais vontade de sair de casa. Só dava suas voltinhas na praia para não apodrecer em casa. Mas nem disso fazia questão. Nunca sabia quando poderia ser assaltada ou levar uma bala perdida na cabeça.

Sinceramente, ela gostava da sua “unha encravada”. Se sentia algum incomodo por ser mais uma velhinha solitária entre tantas, era porque tinha com o que comparar sua atual realidade. Sua vida agora só era triste em relação à sua vida no passado. Ela preferia ser feliz com suas recordações a ser triste com seu dia-a-dia. E quando estava sozinha – ah! – aí sim, ela tinha mais calma e tranquilidade para lembrar de tempos mais alegres. Sua “unha” era o que a fazia, se não se sentir viva, sentir que já teve uma vida.

Ela fazia pouco das suas vizinhas, que tinha pavor de morrerem sozinhas. Como se quem quer que fosse que elas arranjassem não fossem só uma muleta, alguém para segurá-las e serem segurados, indo juntos para um fim sem um terço do brilho que tiveram no passado. “Antes só que mal acompanhada” era seu lema agora.

No fim das contas, a solidão era sua melhor companhia.

28.3.03

A voz


– EI!!!!Você tem a voz daquele ator! Qual o nome dele mesmo? Chuck!!!

Ele não tinha a voz do Chuck Savory. Ele era apenas o dublador brasileiro do ator. Mas não adiantava. Toda vez que ele era apresentado a alguém, ou até quando ia a padaria, reconheciam sua voz e sempre falavam isso pra ele. Ele odiava essa associação entre “voz/persona” do fundo do seu coração. Ele nem gostava do Savory e menos ainda dos seus filmes. Chuck Savory era um desses brutamontes que faziam muito sucesso atuando em filmes de ação absurdos, no estilo “Rambo”. “Exército de um homem só”, entendem? Ele detestava esse tipo de cinema. Mas não adiantava. Ele sempre era chamado de Chuck. Ele também detestava esse nome idiota, Chuck. “Aqui no Brasil, isso só pode ser nome de cachorro, e olhe lá!”, pensava.

Mas a fama o perseguia. Os filmes do Savory eram campeões de bilheteria, e toda vez que uma rede de TV passava suas aventuras, o procurava para dublá-lo. No começo, ele até gostou de ser reconhecido e depois de uns dois filmes, ele começou a ganhar um bom dinheiro com isso. Ele não imaginava que isso iria se tornar uma praga em sua vida. Depois que os anúncios para aquela marca de roupas esportivas protagonizado pelo ator foi veiculado por aqui, ele deixou de ter sossego.Seria para sempre o Chuck. E isso, com o passar do tempo, foi tirando ele do sério. Ele não era mais uma pessoa, era uma voz. E uma voz canastrona. Ninguém queria saber se um dublador tinha que ter uma formação dramática ou se ele trabalharia em alguma peça ou filme nacional.

– E aí? Quando é que “Batalha Sangrenta IV” vai passar na tv?

Tudo que queria saber eram informações sobre os filmes do Chuck Savory. Ele não aguentava mais isso. Estava a ponto de agredir quem sequer citasse o nome Chuck. Tinha prometido a si mesmo nunca mais dublar um filme do truculento ator. Mesmo que isso o levasse a falência.

Acontece que, pra seu azar, foi lançado nos cinemas nacionais “Banho de Sangue III”, estrelado pelo seu carma. E Chuck Savory em pessoa seria a estrela da promoção de lançamento.

– Você TEM que ir! Já foi agendado! E vai se ótimo pra sua carreira!
– Eu não vou! De jeito nenhum! Eu não quero ter ESSA carreira! E já tinha até desistido de fazer dublagens nos filmes deles!
– Impossível, amiguinho! Se você fizer isso, você quebra. Você sabe disso melhor que eu. E além do mais, os filmes do Savory vivem repetindo na tv. Mesmo que você desista, já era. O estrago já está feito.
– Não...Não vou...
– Você VAI! E ponto. Está no seu contrato...Não faça showzinho, como se fosse uma estrela. Você tem é que agradecer sua fama efêmera. Sorte sua ser reconhecido como a voz de um astro de Hollywood. Encare os fatos e aceite ser chamado de Chuck.


Seu agente tinha razão. Estava condenado a ser apenas uma voz até os filmes dele saírem de moda. Mas seria a última vez que alguém o chamaria de Chuck. Ele iria na festa de lançamento e tiraria fotos com Savory. Mas alguma ele iria aprontar, com certeza.

Tinha planejado tudo. Quando tivesse que posar para fotos ao seu lado, iria dar um murro na cara do ator. Assim ele nunca mais seria escalado para fazer suas dublagens, certamente. Agora, com o plano na sua mente, era só esperar pelo dia da festa.

Na noite de gala, se arrumou com esmero. O smoking alugado estava perfeito. O carrão esportivo, que pegou emprestado com um amigo, daria um toque a mais de sofisticação à sua trama. Chegando na boate onde seria a festa, acabou fazendo mais sucesso que imaginava: os flashes dos fotógrafos das colunas sociais espocavam em cima dele, primeira vez como alvo principal. Ao caminhar pela multidão na porta, ouvia os comentários que tanto detestava.

– Olha...essa é a voz do Chuck Savory aqui no Brasil.

Ele até sentiu um certo orgulho. Não por ser “a voz” do Chuck, mas pelo frisson que causou. Não esperava que isso ocorresse. Imaginou o dia em que ele seria o convidado mais importante num lançamento desses. E já estava até sorrindo para as câmeras quando a gota d´água que faltava para transbordar seu copo de paciência caiu.

– Esqueçam a voz dele! O Chuck acabou de chegar!!!

Todos os fotógrafos correram em direção ao brucutu, trombando no dublador, esquecendo completamente da sua existência. O ódio que sentiu foi tanto, que ele mudou seu planos: um soco não ia adiantar. Ia matar o Savory.

Entrando na festa, a primeira coisa que fez foi pegar uma faca no buffet. Guardou no bolso do paletó e ficou esperando o aviso do seu agente para que fosse tirar fotos com Savory. Seria fácil. Apertava a mão direita do ator e com a sua esquerda enfiaria a faca no bucho do sujeito. Ninguém esperaria por esse ato tresloucado. Finalmente seria o protagonista de algo.

Chegou o momento. Seu agente acenou para que se aproximasse e Savory, do alto dos seus 2 metros veio, simpaticamente, estendendo a mão para sua voz.

– Chuck, this guy is your voice on our country...
– Hey, dude! What´s up?


Antes que ele apertasse a mão do ator, ele já foi pegando a faca e tentando esfaquear Savory. Tentando mesmo, porque as coisas não saíram como planejado. Vendo a faca, Savory conseguiu desarmá-lo com um simples movimento e acertou-lhe a garganta com um golpe certeiro. Antes de desmaiar, o dublador chegou a ver o monte de seguranças que se amontoaram por cima dele.

(...)
Acordou no hospital penitenciário. Estava com o pescoço enfaixado e sentia uma dor terrível na garganta. Tentou falar, não conseguiu. Um médico estava ao seu lado.

– Olá, Chuck...Que merda você fez, hein?
– Ungh...
– Nem tente falar, rapaz. O Savory arrebentou suas cordas vocais com um só golpe. Você não sabia que ele teve treinamento de Marine? Foi estúpido o que você fez. Você não voltará a falar...


Apesar da dor, ele ficou até feliz. Em pouco tempo, nunca mais seria chamado de Chuck. E, por uns momentos, foi o principal em uma trama, com Savory como mero coadjuvante.

– Não entendo esse seu risinho...Você vai pegar um gancho por tentativa de assassinato, Chuck. E ainda fez uma bruta propaganda pro cara que tentou matar...

O médico jogou um jornal na cama. Na manchete, algo que ele não esperava.

O Astro de Hollywood Chuck Savory escapa de assassino de forma espetacular

.
Especulava-se se não seria apenas uma jogada de marketing. Mas o pior não era isso. Seu nome nem foi citado. Na matéria ele era chamado de “Chuck Brasileiro”. E todos no hospital e depois, na cadeia, só o chamavam assim.

27.3.03

Amor à última vista


Avenida Rio Branco com Assembleia. O sinal aberto. Carros passam velozes. Do outro lado da rua, a garota mais bonita que já viu na vida.

Em segundos você imagina tudo. Esbarrão, desculpas, conversa, troca de telefone, encontros, jantares, sedução, beijos. Namoro, sexo, casamento, filhos, uma casa tranquila, uma velhice juntos, uma vida perfeita. Tudo isso no espaço de um sinal aberto.

O sinal fecha, vocês dois avançam. Ela passa por você, te ignorando completamente, deixando apenas na sua memória sua visão e seu perfume. Sem esbarrões, sem vida perfeita. No espaço de um sinal fechado, tudo rui.

Amor à primeira vista? Não. Amor à última vista.