21.4.03

A entediante rotina de um morto vivo


Eu morri no dia 23 de fevereiro de 1996, em uma noite que ventava muito, se me lembro bem. Confesso que não guardei na memória todos os detalhes do dia do meu passamento. Peço que não me julguem por isso. Se vocês pensarem bem, não aparecem muitos defuntos com uma memória de elefante por aí.

Acontece que eu continuo vagando por aí, sem que minha morte tenha alterado muito minha rotina. Tenho o mesmo emprego, os mesmos amigos e faço quase tudo que costumava fazer quando vivo. Claro que como morto eu deixei de fazer algumas coisas que eu não gostava. Agora certas obrigações que eu tinha não faço mais. Nem morto!

Rá! Eu não era tão irônico assim quando estava entre os vivos....

O que mata em estar morto (há!) é o tédio. Meus dias, que nunca foram muito excitantes mesmo, agora estão mais parados ainda. Para mim, eles passam sem diferença entre um e outro. É como viver – viver? – reeditando o calendário, com dias, semanas, meses, anos iguais. O que é novo não me alegra e eu desprezo. O que é velho já me encheu a paciência e não presto mais atenção.

Talvez isso seja o inferno. Mas o que mais me amedronta é que, se céu e inferno realmente existem, eu não mereceria o castigo eterno. Sempre fui uma pessoa boa. Bom, basicamente boa. Nunca fiz mal a ninguém. Posso até ter desejado o mal pra algumas pessoas, mas isso não conta, não é? Ou pelo menos não deveria contar.

Então, se eu não mereço a danação perpétua, devo estar no paraíso. E se isso é o paraíso, seria melhor ter feito algum mal enquanto vivia. Pelo menos ia me divertir mais naquela época. Se eu for um defunto sortudo, talvez eu esteja no purgatório.

Mas eu nunca acreditei nessas transcendentalidades esotérico–religiosas. Acho que a resposta para minha inusitada situação é uma só: eu morri e esqueceram de me enterrar.

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