15.4.03

Os três goles na morte


Eu estava viajando sem destino pelo interior do país, numa época em que estava com um espírito aventureiro. Ia sem mapas ou muita grana, pegando um ônibus ali, arrumando uma carona aqui, e dormindo onde podia. Levava comigo uma barraca e quando estava em lugares muito isolados, a solução que eu tinha era acampar para passar as noites.

Às vezes, a solidão me incomodava. Passava dias sem ver sequer uma pessoa, e sentia falta de alguém para conversar. Apesar de uma das razões da viagem ser dar um tempo da humanidade, depois de alguns dias viajando sozinho ficava tedioso ficar apenas lendo e olhando as estrelas.

Mas então, numa noite de céu limpo, quando estava no interior de Minas, apareceu no meu acampamento uma senhora, já bem idosa. Ela estava com muita sede, e mal conseguia falar
de tão cansada. Eu a acolhi, ofereci um pouco da minha água e preparei uma cama para que descansasse um pouco. Em uma situação normal, eu faria tudo isso a contra gosto. Mas depois de dias sem encontrar viv'alma, sua aparição tinha sido benéfica, para quebrar a rotina de viajante solitário.

Depois de algumas horas deitada, a velha senhora já havia se recuperado. Pude ver sua real fisionomia depois do seu descanso. Sua cor, de um pardo fosco, tinha voltado, estava mais relaxada. Pela sua face enrugada, parecia estar por volta dos sessenta anos. Trajava umas roupas meio esfarrapadas, no estilo cigano. Talvez fosse mesmo uma dessas loucas que vivem de esmolar e ler mãos nas ruas. Deve ter ser perdido do seu grupo e, caminhando a esmo, chegou até minha barraca.

Ao acordar, a velha cigana estava bem disposta, e com vontade de falar. Como eu, devia estar há muito tempo sem encontrar alguém.

– Muito obrigado, meu filho. Nem sei como lhe agradecer.
– Não precisa. Fiz o que qualquer um faria..
– É justamente disso que eu tenho dúvida, filho. Quem ajudaria uma pobre velha como eu? As pessoas têm muito preconceito com os ciganos...


Não achei conveniente falar que minhas intenções não eram completamente altruísticas. Mais do que ajudar a senhora, eu precisava ouvir o som de uma voz humana. E a presença dela, totalmente inesperada, nem parecia ter sido pelo acaso. Justo quando eu queria conversar com alguém, surge uma pessoa com muita disposição para falar. Teria sido sorte?

Ela queria me agradecer de alguma forma. Mas na situação em que ela aparecera e nos andrajos que lhe cobriam o corpo, ela não parecia ser uma pessoa que pudesse pagar por qualquer coisa que seja.

– Você já deve ter percebido que não tenho posses...e mesmo que tivesse, elas não seriam suficientes para pagar o favor que você me fez. Eu estava quase morrendo de sede e não aguentaria muito mais tempo caminhando. Você me salvou a vida.
– Não é para tanto, senhora. Eu não deixaria nunca uma pessoa na situação em que se encontrava sem ajuda.
– Você é um bom rapaz...O que eu posso fazer para te agradecer é contar sobre os três goles na morte...
– “Três goles na morte”?
– Isso...O que vou te contar agora é uma lenda muito antiga do meu povo, mas que ainda pode te ajudar no futuro...


Ela não iniciou seu relato de pronto. Pediu para preparar um chá pra nós, com umas ervas que tinha no bolso. Parecia que propositadamente criava um clima de mistério. Pos a chaleira no fogo e enquanto as ervas estavam na água, começou a falar.

– Todo homem tem seu destino traçado desde o dia do seu nascimento. Sua linha da vida acaba no dia em que ele toma o terceiro gole na morte...
– Como assim?
– O primeiro gole é tomado no dia em que se nasce. A morte começa a se aproximar de todos no momento da nossa primeira respiração. Isso lhe parece lógico?
– Claro, entendi...para morrer, basta estar vivo.
– Isso mesmo. Quando saímos do ventre de nossas mães, já saímos com sua primeira marca, nesse momento tomamos o primeiro gole da morte.
– E o segundo.
– O segundo é mais difícil de precisar o momento. Pode ser naquela hora em que escapamos de uma situação de forma miraculosa. Um acidente que escapamos por pouco, uma doença que se cura subitamente...Não existe uma idade certa para isso acontecer. Mas sempre acontece.
– E o terceiro? Quando tomamos?
– Também não existe um momento certo. Mas, assim que estamos desenganados, prestes a abandonar esse mundo, a primeira face que vemos em nossa cabeça é o rosto da pessoa que nos serviu o terceiro gole. Algumas pessoas do meu povo acreditam que é a própria morte que nos dá a bebida. Nunca percebemos na hora que bebemos o terceiro gole da morte, e nem sempre morremos de imediato. Mas na hora da verdade, em que estamos quase a morrer, nós temos a clara noção do que acontece...Após o terceiro gole, você está marcado.


Nesse momento, a velha cigana tira a chaleira do fogo e nos serve o chá que preparava. Perguntei o que eram aquelas ervas, e ela me disse que eram folhas fortificantes, que seriam boas para o resto da nossa caminhada.

O chá era bom, tinha um aroma forte, mas seu gosto era agradável. A bebida quente parecia ser também calmante, pois me senti sonolento alguns minutos depois. Aticei o fogo, arrumei a minha cama e a da velha cigana e fomos dormir.

Tive um sono agitado durante a noite. Sonhei que estava morrendo afogado, numa cena bem parecida com a que realmente tinha acontecido, quando eu era criança e fiquei preso no ralo da piscina do clube. Fiquei muito tempo submerso, e só fui salvo porque meu irmão mais velho sentiu minha falta no meio das crianças que brincavam na água. O salva vidas do clube disse que tinha sido um milagre....

A palavra milagre ecoando na minha mente me fez acordar. Eu ofegava e, apesar da fria manhã de julho, estava suando. Olhei pro lado e a cigana havia partido. O fogo havia se apagado, sobravam apenas as brasas ainda incandescestes e a chaleira ainda com um pouco de chá que a velha havia me servido.

Confesso que estava um pouco impressionado com a história que a velha cigana me contou. Mas depois de lavar o rosto, vi que tudo não passava de uma superstição de uma idosa senil. Achei até divertido meu ligeiro receio. Devia estar na hora de voltar para civilização. O tempo solitário havia me deixado meio confuso. Desmontei o acampamento, juntei minhas coisas e parti, em direção à rodovia de onde eu havia chegado. Me perguntei pra onde teria ido a velhota...seu rosto pardo e encarquilhado não me saia da cabeça.

O tempo seco de inverno deixou o barro do caminho poeirento, e enquanto eu arrumava minhas coisas notei que meus pés deixavam profundas pegadas no caminho. O que eu achei curioso, depois de pensar um pouco, é que só haviam as marcas do meu sapato na terra. Não consegui ver por que caminho a velha tinha partido. Seus pés não deixaram rastros.

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