11.4.03

Hábitos salutares


Acordou ao meio-dia, tendo dormido apenas algumas horas e acendeu um cigarro, antes de sair da cama. Quinta-feira, e estava novamente de ressaca. Fumou o cigarro ainda deitado, tentando se lembrar, sem sucesso, do que tinha feito na noite anterior. Amassou a guimba do cigarro no cinzeiro repleto de filtros de semanas e se levantou.

Tinha que tomar um banho. Não sabia se o cheiro que sentia vinha dele ou do seu quarto, mas por via das dúvidas, ia se lavar. Olhou-se no espelho e as olheiras e a barba quase cheia denunciavam o pouco cuidado que vinha tendo com si mesmo. Debaixo do chuveiro quente, a tosse habitual, acompanhada do espesso pigarro, não o impressionava mais. Viu o muco correr pelo ralo. A comparação com a sua vida foi inevitável.

Saiu do banho, fez a barba e procurou algo para comer na geladeira. Um pedaço antigo e ressecado da torta de queijo que havia comprado nem lembrava quando era a única coisa que ele arriscaria comer.

– Quem arrisca não petisca...mas eu não sou louco de arriscar minha saúde petiscando isso... – refletiu. Resolveu colocar uma calça, um tênis e ir tomar um café na padaria da esquina.

(***)

Às seis da manhã ela já havia acordado, tomado banho, tido seu desjejum e estava pronta para academia. Faria uma hora de exercícios para, às 7:30, estar no seu trabalho voluntário com crianças carentes. Sempre fazia esse serviço quando estava de férias. Era uma forma de agradecer a vida maravilhosa que tinha: Tinha saúde, um trabalho gratificante e muito bem remunerado, e uma família amantíssima que a adorava. Era feliz.

Talvez até fosse mais feliz se tivesse um namorado. Mas nem isso a abalava. Sabia que na hora certa ia encontrar o cara certo. Não precisava de pressa. Tudo em sua vida era assim, parecia que caía do céu.

Tomou um banho na academia e foi, resplandecente, para o orfanato onde fazia seu trabalho voluntário. Se as crianças soubessem como elas a ajudavam, veriam que o que ela fazia por elas era até pouco. Talvez, quando encontrasse sua alma gêmea, adotasse uma delas. Talvez duas.

Depois de dar o almoço para criançada, pensou em sair e comer algo. Naquele dia não dera sorte: a comida do orfanato não era das suas preferidas. Decidiu ia a padaria ali perto, comer. Apesar de ser bem de vida, preferia as coisas simples. Comeria algo no balcão mesmo, a rotina de almoços em restaurantes caros não era seguida quando estava de férias. Era quinze para uma da tarde.

(***)


Depois de ter engolido a média com pão na chapa, ele ainda sentia fome. Na verdade, foi a imagem do carré com batatas coradas que acabava de sair da cozinha da padaria que o conquistou. Não resistindo, pediu um PF com a iguaria, acompanhado de farofa e arroz. E uma cerveja, pra acabar com sua ressaca.

– Adeus ressaca. Bom dia, azia... – pensou.

Comia com certa avidez, até que notou a presença da garota ao seu lado. Repentinamente, sua avidez mudou de objetivo: a garota era realmente muito bonita. Reparou que ela também o olhava. Não sabia ao certo o que significava a expressão que tinha no rosto. Poderia ser um olhar de interesse ou de curiosidade. Calculou as chances que tinha de conseguir traçar a menina. No seu estado, achou que eram poucas. Decidiu voltar suas atenções ao prato à sua frente. Até que, surpreendentemente, ela falou com ele:

– Oi...Posso te fazer uma pergunta?

“Ah...aí é demais...essa está no papo”– foi o que imaginou, na hora.


(***)


– Claro, pode fazer....
–Seu nome não é Ricardo?


Ela quase desistiu de manter um contato com o sujeito, depois da cara de galã bêbado feita por ele. Ela detestava esses homens que toda vez que falavam com uma mulher pareciam precisar seduzi-las ou caso contrário teriam sua reputação jogada na lama. E se o sujeito com cara de sono que estava a seu lado realmente fosse quem ela pensava que era, a situação ia ser bem pior. Se o pretenso Ricardo continuasse com aquela cara de Rodolfo Valentino do subúrbio, ela ia acabar caindo na gargalhada. Esse constrangimento ia ser até pequeno depois dele descobrir do onde ela o conhecia. Ela notou que ele não fazia a menor idéia de que eles já se conheciam. E o incrível é que eles se conheceram na noite anterior! Quem pode ser tão esquecido assim?

(***)

– É isso...ahn...eu a conheço? Me desculpe, eu não consigo me lembrar...
– Sério? Isso me surpreende. Bom...Meu nome é Renata. Não lembra mesmo? Nos conhecemos ontem à noite...


Isso era mal. Ele tinha que beber menos. Não conseguir se lembrar dessa mulher linda já era ruim, mas esquecer dela a conhecendo a menos de 24 horas era péssimo. Tinha que reverter essa situação. Se bem que a o sorriso dela era promissor. Sua cara de sedutor estava funcionando. Onde tinha ido ontem mesmo? Recordava-se de começar a noite passada nessa mesma padaria, esquentando as máquinas com um conhaque, junto com dois amigos. Depois foi até aquele restaurante da moda com eles, jantaram com a companhia de duas garrafas de vinho. Como a casa de um dos amigos era perto, tiveram como sobremesa um baseado de ótima qualidade, para ajudar na digestão. Daí foram até...até....

Claro! Foram até aquela boate na Zona Sul. Nessa hora, Ricardo já estava mal, disso ele conseguia se lembrar. Também tinha certeza que havia encontrado alguns outros amigos, e melhor, amigas por lá. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguia se lembrar da Renata.

(***)

– Ah, Renata! Claro!!! Foi naquela boate no...
– Não, Ricardo...Não foi em uma boate. Foi depois da boate...Você estava com uns amigos. Estava meio mal, até.



O cachaceiro não se lembrava mesmo. Relembrando o estado em que ele estava, Renata até achou normal a amnésia. Ela estava começando a achar tudo aquilo hilário. Um bebum que ela havia encontrado ontem, que não se lembrava dela, estava descaradamente lhe cantando em uma padaria. A cena era surreal. Ela tinha certeza que quando ele se lembrasse de que maneira se conheceram, desistiria da conquista. Ela estava de férias hoje. E ontem só se encontraram porque ela estava trabalhando.

(***)

– Olha, vou ser sincero. Estava completamente bêbado ontem e...
– E percebi isso ontem..
– a discreta risada o deixou mais confiante
– É.. – disse sem graça, se aproximando – Eu estava meio mal ontem...Por isso eu não lembro de você. Isso nunca aconteceu comigo antes...ainda mais com uma mulher bonita como você....
– Você disse isso ontem pra mim. Espero que “Nunca aconteceu comigo antes” não seja um bordão seu.
– Ahn...não é não. Pode ter certeza disso.
– Na situação em que nos encontramos, é bom mesmo...Afinal de contas, eu te vi numa cama....


DEUS!!! Teria transado com ela?!? E pior, teria broxado com uma mulher dessas?!?!? Ele não se perdoaria nunca se isso tivesse acontecido. Onde foi? Motel? Na casa dela? Estava ficando desesperado com sua falta de memória. Bom, agora isso nem o preocupava tanto. Já a fama de impotente...

–Numa cama??? Eu não me esqueceria de estar numa cama, no mesmo lugar que você, nunca! Onde nos encontramos?
– Em Copacabana. Isso refrescou sua memória?


EM COPA?!?!?! Meu Deus...Ela era uma garota de programa!!! Como pode?!?! Tão bonita assim? Ricardo nunca teria grana pra pagar uma noite com ela. Teria sido algum amigo seu mecenas ontem? Como ele iria pagar isso depois?

(***)

– Em Copa? Onde? Como foi?
– Bom...eu estava trabalhando. E seus amigos apareceram te arrastando, praticamente.
– Me arrastando?
– Isso. Digamos que você não estava em condições nem de andar.
– E ainda assim você me levou pruma cama?
– Era o lugar mais indicado pra você ficar, no estado em que estava. Depois de descansar um pouco, seus amigos foram buscar você.
– Me buscar? Onde? Eles te pagaram?
– Como assim, “me pagaram”? Meu trabalho é gratuito...
– Gratuito?!?!? Como assim? Você não cobra?!!?
– Claro que não!!!
– Nunca vi isso! E o motel? Quem pagou?
– Motel?!?!!? Que motel?!?!?
– Ué? Não fomos prum motel?!!? Fomos até sua casa? Onde estava a cama que você me deitou?
– Minha casa??? Cama!?!?! Acho que me expressei mal...
– Não, não, sem problemas...só queria saber se você teve algum prejuízo ontem...
– Ahahahahahahah...
– O que foi??? Se você está rindo porque ontem não dei no couro, te aviso que em meu estado normal...
– Ricardo...cale a boca! Sua sorte é que eu estou de bom humor...Senão ficaria profundamente ofendida...
– Ofendida com o que??? Você não é uma garota de programa?
– CLARO QUE NÃO!!! Te encontrei em Copacabana, na madrugada, estava trabalhando e te coloquei numa cama. Estava passando numa ambulância pela Barata Ribeiro, voltando pro meu trabalho e seus amigos me chamaram porque você estava em coma alcoólico. Eu te coloquei numa cama, que por estar numa ambulância, se chama maca. Não, Ricardo, eu não sou uma puta. Eu sou médica...
– Médica?!?!? Ahn....porra..desculpa!!! Merda...que mancada!!! Nem sei onde enfiar minha cara...
– Que tal numa reunião do AA???


(***)

Sob as gargalhadas da Renata, Ricardo pagou sua conta e saiu de fininho da padaria. Seu carré com batatas, delicioso, ficou pela metade. Pela primeira vez viu que sua relação com a bebida estava ficando complicada. Iria dar um jeito nisso.

Mas antes, uma cervejinha num bar ali perto, que ele não era de ferro.

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