30.4.03

O buraco



Apartamento na Zona Sul. O dia azul resplandecente do lado de fora não combina em nada com o ambiente. As paredes amarelas de tanta nicotina, os livros e papéis amontoados, o computador com seu zumbido perpétuo. No centro da sala, uma mesa, duas cadeiras, uma garrafa de uísque na metade. Antônio e Luis Cláudio estão em silêncio. O copo do Antônio meio cheio, o de Luis, meio vazio. Antônio esperou que esse momento nunca chegasse. Mas finalmente chegou.

- Você tem certeza, Cláudio?
- Claro, Tonico. Você sabe que sim. Ou você achou que eu estava brincando?
- Confesso que não pensei nada no momento. Eu nunca levo muito a sério as loucuras que você diz...
- Pois devia.
- É.

Luis acende o terceiro cigarro em menos de 10 minutos, ignorando a cara de reprovação do amigo. Antônio não conseguia acreditar no que estava prestes a testemunhar. Era uma loucura, mas ele havia prometido a Cláudio. E Cláudio sempre cobrava suas promessas.

- Eu tinha te falado, Tonico. E você prometeu estar comigo nessa hora. O prazo acabou.
- Mas....você não pode se entregar dessa forma, Cláudio. E o tratamento?
- O tratamento que se foda! Mais uma sessão e eu morreria mesmo..
- O médico te deu três meses...
- E hoje acaba o prazo. Eu sempre achei engraçados esses prazos dados pelos médicos. Eu sempre imaginei qual seria minha reação quando recebesse uma data limite como essa. Três meses! Na minha cabeça, no dia exato em que acabasse o prazo, eu cairia fulminado no chão. Não gosto dessas imprevisibilidades. Se eu me fosse antes, tudo bem. O doutor foi bem claro: no máximo três meses de vida. Não vou ficar brincando de moribundo. Ele me deu três meses e disso eu me recuso a passar por aqui.
- Não fale besteiras, Cláudio. Você pode melhorar...
- Há! Eu já passei da fase de me enganar, Tonico. Não fique se enganando também...

A promessa tinha que ser cumprida. Antônio achou a idéia ridícula na hora, mas o dia D havia chegado e Luis realmente cobrou a dívida. Enquanto via Luis acabando com mais um copo de uísque, Antônio se lembrou das coisas que já havia passado com Luis. Era seu melhor amigo, desde crianças. E agora Luis, com a maior das calmas, quer dar um fim nessa amizade de forma definitiva.

O que mais deixava Antônio revoltado nem era a desistência (covardia?) de Luis. Desde que soube da gravidade da sua doença, sabia que ele não aguentaria o tranco de viver o pouco que lhe restava de vida como um enfermo, um doente terminal. O que revoltava Antônio era a crueldade de Luis ao cobrar a promessa. Ainda mais esse tipo de promessa. Desistir da vida, ignorando todos os que o amavam já era um bruto egoísmo. Mas cobrar esse tipo de promessa, do seu melhor amigo, já era sadismo. Mas apesar da ingrata incumbência que recebeu, ele não discutiria com Luis. Eram seus últimos momentos. Se fosse para ser liberado da promessa, que isso partisse de Luis.

Luis encheu de novo seu copo, deu uma longa talagada, uma forte tragada no cigarro e tossiu.

- Cof, cof...Você sabe qual é a coisa que quanto mais dela se tira, mais ela cresce?
- Ih...já está bêbado?
- Claro que estou, merda...Responde logo...Se é que você sabe.
- Claro que sei. É o buraco.
- Isso. O buraco. Depois que eu decidi, por conta própria, arranjar um buraco só pra mim, tentei traçar um paralelo entre um buraco e a vida.
- E teve sucesso?
- Não...- rindo - Talvez a vida já seja um buraco, quando nascemos. Nós vamos a preenchendo, dia após dia, tentando dar um sentido a ela. Mas no final das contas, somando os dias, nos acabamos com o buraco. Nos enchemos o buraco/vida todo dia, até que não haja mais o buraco, até que ele esteja completamente cheio.
- Que besteira...
- É...eu sei...- rindo novamente.

Luis matou o que restava de uísque no seu copo em um gole. Antônio até acharia engraçada a cara dele depois de engolir a dose, estivessem em uma situação. Luis acendeu um cigarro na guimba do anterior e se levantou da cadeira.

- Está na hora, Tonico...- falou Luis, olhos marejados.
- Cláudio...
- Limpa essas lágrimas da cara...isso não pega bem, Tonico. Um homem velho desses chorando como uma criança. Dá cá um abraço e POR FAVOR, não me venha tentar me convencer a mudar de ideia de novo....
- Cláudio...isso é loucura!
- Eu sei....mas a vida é louca. Quem sabe se a morte não tem mais lógica...

Os dois se abraçaram. O abraço mais longo e fraternal que já deram.

- Tonico...Sei que parece crueldade te obrigar a fazer isso. Mas é o mais certo pra mim. E eu precisava do meu grande amigo, meu irmão aqui. Em tudo que eu fiz de importante na minha vida, sempre tive você do meu lado....Você entende?
- Entendo, Cláudio...
- Tudo bem...é a hora...A gente se vê um dia...
- Assim eu espero.
- Adeus, Tonico.
- Adeus, Cláudio.

Luis foi até a janela, abriu-a e olhou o céu e o mar por uns momentos. Ainda com o cigarro na boca sentou no parapeito da janela.

- É um lindo dia pra morrer...

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