28.3.03

A voz


– EI!!!!Você tem a voz daquele ator! Qual o nome dele mesmo? Chuck!!!

Ele não tinha a voz do Chuck Savory. Ele era apenas o dublador brasileiro do ator. Mas não adiantava. Toda vez que ele era apresentado a alguém, ou até quando ia a padaria, reconheciam sua voz e sempre falavam isso pra ele. Ele odiava essa associação entre “voz/persona” do fundo do seu coração. Ele nem gostava do Savory e menos ainda dos seus filmes. Chuck Savory era um desses brutamontes que faziam muito sucesso atuando em filmes de ação absurdos, no estilo “Rambo”. “Exército de um homem só”, entendem? Ele detestava esse tipo de cinema. Mas não adiantava. Ele sempre era chamado de Chuck. Ele também detestava esse nome idiota, Chuck. “Aqui no Brasil, isso só pode ser nome de cachorro, e olhe lá!”, pensava.

Mas a fama o perseguia. Os filmes do Savory eram campeões de bilheteria, e toda vez que uma rede de TV passava suas aventuras, o procurava para dublá-lo. No começo, ele até gostou de ser reconhecido e depois de uns dois filmes, ele começou a ganhar um bom dinheiro com isso. Ele não imaginava que isso iria se tornar uma praga em sua vida. Depois que os anúncios para aquela marca de roupas esportivas protagonizado pelo ator foi veiculado por aqui, ele deixou de ter sossego.Seria para sempre o Chuck. E isso, com o passar do tempo, foi tirando ele do sério. Ele não era mais uma pessoa, era uma voz. E uma voz canastrona. Ninguém queria saber se um dublador tinha que ter uma formação dramática ou se ele trabalharia em alguma peça ou filme nacional.

– E aí? Quando é que “Batalha Sangrenta IV” vai passar na tv?

Tudo que queria saber eram informações sobre os filmes do Chuck Savory. Ele não aguentava mais isso. Estava a ponto de agredir quem sequer citasse o nome Chuck. Tinha prometido a si mesmo nunca mais dublar um filme do truculento ator. Mesmo que isso o levasse a falência.

Acontece que, pra seu azar, foi lançado nos cinemas nacionais “Banho de Sangue III”, estrelado pelo seu carma. E Chuck Savory em pessoa seria a estrela da promoção de lançamento.

– Você TEM que ir! Já foi agendado! E vai se ótimo pra sua carreira!
– Eu não vou! De jeito nenhum! Eu não quero ter ESSA carreira! E já tinha até desistido de fazer dublagens nos filmes deles!
– Impossível, amiguinho! Se você fizer isso, você quebra. Você sabe disso melhor que eu. E além do mais, os filmes do Savory vivem repetindo na tv. Mesmo que você desista, já era. O estrago já está feito.
– Não...Não vou...
– Você VAI! E ponto. Está no seu contrato...Não faça showzinho, como se fosse uma estrela. Você tem é que agradecer sua fama efêmera. Sorte sua ser reconhecido como a voz de um astro de Hollywood. Encare os fatos e aceite ser chamado de Chuck.


Seu agente tinha razão. Estava condenado a ser apenas uma voz até os filmes dele saírem de moda. Mas seria a última vez que alguém o chamaria de Chuck. Ele iria na festa de lançamento e tiraria fotos com Savory. Mas alguma ele iria aprontar, com certeza.

Tinha planejado tudo. Quando tivesse que posar para fotos ao seu lado, iria dar um murro na cara do ator. Assim ele nunca mais seria escalado para fazer suas dublagens, certamente. Agora, com o plano na sua mente, era só esperar pelo dia da festa.

Na noite de gala, se arrumou com esmero. O smoking alugado estava perfeito. O carrão esportivo, que pegou emprestado com um amigo, daria um toque a mais de sofisticação à sua trama. Chegando na boate onde seria a festa, acabou fazendo mais sucesso que imaginava: os flashes dos fotógrafos das colunas sociais espocavam em cima dele, primeira vez como alvo principal. Ao caminhar pela multidão na porta, ouvia os comentários que tanto detestava.

– Olha...essa é a voz do Chuck Savory aqui no Brasil.

Ele até sentiu um certo orgulho. Não por ser “a voz” do Chuck, mas pelo frisson que causou. Não esperava que isso ocorresse. Imaginou o dia em que ele seria o convidado mais importante num lançamento desses. E já estava até sorrindo para as câmeras quando a gota d´água que faltava para transbordar seu copo de paciência caiu.

– Esqueçam a voz dele! O Chuck acabou de chegar!!!

Todos os fotógrafos correram em direção ao brucutu, trombando no dublador, esquecendo completamente da sua existência. O ódio que sentiu foi tanto, que ele mudou seu planos: um soco não ia adiantar. Ia matar o Savory.

Entrando na festa, a primeira coisa que fez foi pegar uma faca no buffet. Guardou no bolso do paletó e ficou esperando o aviso do seu agente para que fosse tirar fotos com Savory. Seria fácil. Apertava a mão direita do ator e com a sua esquerda enfiaria a faca no bucho do sujeito. Ninguém esperaria por esse ato tresloucado. Finalmente seria o protagonista de algo.

Chegou o momento. Seu agente acenou para que se aproximasse e Savory, do alto dos seus 2 metros veio, simpaticamente, estendendo a mão para sua voz.

– Chuck, this guy is your voice on our country...
– Hey, dude! What´s up?


Antes que ele apertasse a mão do ator, ele já foi pegando a faca e tentando esfaquear Savory. Tentando mesmo, porque as coisas não saíram como planejado. Vendo a faca, Savory conseguiu desarmá-lo com um simples movimento e acertou-lhe a garganta com um golpe certeiro. Antes de desmaiar, o dublador chegou a ver o monte de seguranças que se amontoaram por cima dele.

(...)
Acordou no hospital penitenciário. Estava com o pescoço enfaixado e sentia uma dor terrível na garganta. Tentou falar, não conseguiu. Um médico estava ao seu lado.

– Olá, Chuck...Que merda você fez, hein?
– Ungh...
– Nem tente falar, rapaz. O Savory arrebentou suas cordas vocais com um só golpe. Você não sabia que ele teve treinamento de Marine? Foi estúpido o que você fez. Você não voltará a falar...


Apesar da dor, ele ficou até feliz. Em pouco tempo, nunca mais seria chamado de Chuck. E, por uns momentos, foi o principal em uma trama, com Savory como mero coadjuvante.

– Não entendo esse seu risinho...Você vai pegar um gancho por tentativa de assassinato, Chuck. E ainda fez uma bruta propaganda pro cara que tentou matar...

O médico jogou um jornal na cama. Na manchete, algo que ele não esperava.

O Astro de Hollywood Chuck Savory escapa de assassino de forma espetacular

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Especulava-se se não seria apenas uma jogada de marketing. Mas o pior não era isso. Seu nome nem foi citado. Na matéria ele era chamado de “Chuck Brasileiro”. E todos no hospital e depois, na cadeia, só o chamavam assim.

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