29.5.03

A carta de apresentação


Jonas nunca foi brilhante. Era novo, e nos seus tenros e mal vividos 19 anos ainda era o que se podia chamar de “marinheiro de primeira viagem” nessa coisa de viver. Não que isso o incomodasse. Com os pais que tinha – donos de uma conta bancária mais polpuda que a de alguns países africanos – não tinha mesmo com o que se preocupar. Um dia em que sua rebeldia sem causa estava mais atacada, pegou o dinheiro da sua mesada e comprou um apartamento. Decidiu começar vida nova, independente, sem depender dos seus pais para nada. Nada, além do sustento, claro.

A primeira coisa que ele precisava era, óbvio, alguém que o alimentasse, vestisse e mantivesse seu apartamento habitável. O anúncio procurando uma diarista foi de uma eficiência absurda. Jonas não esperava que o retorno fosse tão imediato. No seu parco entender, ele não imaginava que domésticas lessem jornais. Para algumas das candidatas à vaga, ele até perguntou se tinham esse hábito. Algumas ficaram ofendidas com a dúvida. Ele não era das pessoas mais delicadas, e sutileza não era umas das suas qualidades mais evidentes.

– Então você lê jornais? Surpreendente! Mas só deve ler os classificados, não? – e fazia uma cara de pasmo, o que no final das contas era o que mais ofendia as candidatas.

Depois de quatro ou cinco respostas meio tortas, Jonas se mancou a parou com a pergunta. Nem entendia o porque da revolta das moças. “Pobres, e ainda por cima mulheres, por que diabos eu vou imaginar que elas lêem?”, pensava.

Caras leitoras, não levem a mal nosso amigo. Ele é um idiota completo. Fazer o que? Culpa dos pais, dele é que não seria, lógico.

A demora na escolha – movida pela deturpada impressão do nosso amigo idiota de que ele arranjaria uma empregada jeitosinha, bem no estilo das que ele, e as vezes o pai, estupravam no quartinho da sua antiga casa – acabou assim que Jurema apareceu na sua porta, por volta das sete da noite.

Jurema era uma mulata de meia idade, de seios e ancas fartas e de uma robustez de causar inveja a uma vaca holandesa (a analogia foi involuntária). Chegou já se aboletando, dizendo que não iria ser entrevistada: o cargo já era dela. Viera por recomendação de um amigo do pai do Jonas, e o garoto, que não estava acostumado a sofrer imposturas de serviçais, ficou chocado com a empáfia daquela mulher. Gostou dela na hora, e queria ver até onde ela levaria essa afronta.

– Toma minha carta de apresentação.

“A estúpida criatura nem sabe o que são suas referências!”, pensou Jonas ao pegar o envelope jogado no seu colo. Abriu e viu onde ela havia trabalhado. Achou engraçado. Jurema havia trabalhado na casa de vários amigos dele, tão “independentes” como ele. Ricardo Toledo, Paulo de Moura e Castro, Francisco Toledo e Toledo e vários outros da sua turminha de bon vivants, que ele não via fazia tempo, não sabia bem porque. Mas o que o fez decidir pela contratação foi o último parágrafo da carta:
“Ótima no recondicionamento de conduta interpessoal”.

Não fazia idéia do que significava isso. Mas Jurema era uma mulher, no mínimo, interessante, e deveria diverti-lo durante algumas semanas. E claro, ela também cozinharia para ele e lavaria suas cuecas, o que era mais importante.

Jurema se acomodou no seu quarto de empregada e foi direto para cozinha, preparar o jantar. Jonas gostou da eficiência da mulher. Pensou que, apesar de não haver a menor possibilidade de sexo entre eles, poderia se acostumar com a criada. Para começar, ele pediu que a empregada lhe preparasse uma fritada de cogumelos com creme de espinafre e arroz colorido.

– Você não se mete no meu trabalho, garoto. Vai comer o que eu preparar e lamber o beiços.

A cara de abobado de Jonas depois dessa descompostura já valeria um mês de ordenado para Jurema. Ele, como ela já imaginava, não reclamou. Quando Jonas conseguiu abandonar sua cara boquiaberta e ia falar algo, Jurema nem deu tempo para o rapaz reagir.

– E saia AGORA da minha cozinha.

Ele saiu. Jonas não sabia se despedia ela agora ou se esperava a comida. Estava com fome e cansado de comer em restaurantes. Decidiu demitir a negra assim que comesse.

Antes houvesse demitido na hora. Quando a negra o chamou para sala de jantar, Jonas encontrou seu prato já pronto, fumegando na mesa. O prato tinha uma aparência grotesca, molenga. Era uma carne com uma cor horrenda, coberta com uma repartições quadriculadas. Jonas não conseguia imaginar de que espécie de animal teria saído uma iguaria tão repugnante, isso se aquilo era mesmo animal. Ou se era mesmo do planeta Terra.

– Que diabos é isso, mulher?!?!?
– Dobradinha. Bucho, para os íntimos. E meu nome é Jurema. Já tinha te dito isso, não?
– Olha, pouco me importa o seu nome. E não existe a menor possibilidade de eu colocar essa coisa nojenta na minha boca.
– Se você chamar novamente algo que eu tenha feito para você comer de nojenta, eu vou te dar um corretivo bem merecido.
– Nem vou levar em consideração essa sua frase. E pode ir retirando...

Antes que Jonas terminasse a frase, levou um safanão no meio da cara. Ele não imaginava que a mão da Jurema pudesse ser tão pesada.

– Eu não vou sair de lugar nenhum e você vai comer sua comida toda. E se você limpar o prato, ganha uma sobremesa deliciosa.

Jonas nunca foi muito afeito a agressões físicas. O primeiro pensamento que teve foi o de ligar pro seu pai, reclamando. Mas não, ele agora era independente, tinha que cuidar de si mesmo, sem depender de favores paternos. Ele resolveria a situação: comeria o prato inteiro, com talheres, se fosse necessário.

– Muito bem, garoto. Vai pro seu quarto que já levo sua sobremesa.

Jonas estava atordoado. O que fazer? Ligar para polícia e falar que estava em um cativeiro, que por um acaso era sua própria casa, pois foi sequestrado pela sua empregada? Contratar uns capangas para tirar Jurema a força da sua casa? Ele duvidava que Jurema se intimidasse com qualquer tipo de capanga. Se aparecessem uns 15 caras lá para levá-la de lá, ela provavelmente empurraria dobradinha goela abaixo de todos.

Ele ainda estava pensando no que poderia fazer para se livrar da mulher quando Jurema abre sua porta. Usava um roupão esfarrapado e encardido, que aparentava anos continuados de uso.

– Trouxe sua sobremesa.
– E onde está?
– Aqui.

Jurema abriu seu roupão, mostrando toda a pujança do seu enorme corpanzil. O choque da visão inusitada imobilizou Jonas pelos segundos que seriam os necessários para uma fuga desesperada. Foi o que Jurema precisou para se atirar em cima do pobre rapaz, com uma velocidade incompatível com sua massa corporal.

O estado de torpor estupefato do Jonas continuou durante as horas em que Jurema desfrutou – essa é a melhor definição – dele. E o inesperado da coisa foi que, apesar de todo seu tamanho, muito diferente das modelos-atrizes esqueléticas que formavam o cardápio sexual do mimado garoto, Jurema agradou Jonas. As carnes abundantes e voluptuosas da empregada, o cheiro cru de gente do povo e carícias que ele nem imaginava que poderiam existir conquistaram o rapaz.

No dia seguinte, Jonas acordou exausto e encontrou na mesa da cozinha um lauto café da manhã. Brevidades, Tapioca, cuzcuz de milho, bolo de fubá, suco de graviola. Ele não conhecia nada daquilo, mas com a fome que estava e com o incidente da dobradinha na noite anterior, preferiu comer tudo.

– Tá com fome, menino? O que você ontem fez para ter todo esse apetite?

Depois da inconveniente piadinha, Jurema soltou uma gargalhada à altura do seu enorme porte. Sua boca escancarada mostrava todos os seus dentes brancos, que pareciam maiores do que já eram no meio daquele sorriso descomunal. Jonas estava completamente sem graça, o que não impediu que tivesse uma ereção ao ver os grandes seios balançando no ritmo da gargalhada.

No almoço, Jonas foi obrigado a comer frango com quiabo. Depois, como no jantar, a sobremesa. No jantar seguinte, o prato foi mocotó, seguido de mais sobremesa. E assim foi, por dias seguidos. Jonas comeu coisas que nunca comeria sem uma arma na cabeça e, mais intrigante, começava a gostar da exótica culinária. Angu com miúdos, rabada, jiló, pé de porco, caldo de inhame. Todas as refeições lhe davam direito a sobremesa, óbvio.

Jonas foi ficando mais forte, ganhando cores saudáveis. A convivência com Jurema mudou até seus hábitos. Era menos dependente – quando Jurema estava muito ocupada, ele era obrigado por ela a ajudá-la – vinha perdendo suas manias aos poucos. Até seu vocabulário mudou um pouco, perdendo toda a afetação que anos de educação esmerada haviam criado. Escutava os conselhos da Jurema e os seguia, na medida do possível. Ele chegou ao cumulo de , vejam vocês, procurar um emprego. E conseguiu, em pouco tempo. A influência da família ajudou, claro, mas Jonas também tinha méritos na conquista. Não era mais o adolescente retardado que era quando foi brincar de casinha.

Um dia Jonas encontrou as malas da Jurema arrumadas, no corredor. Foi até a cozinha e encontrou seu desejum na mesa e a mulata lavando a louça, calmamente.

– Por que as malas? Vai viajar sem me avisar, nega? – Já tinham intimidade bastante para trocarem apelidos.
– Não, estou indo embora, moleque.
– Como assim, embora?!?!? Aconteceu alguma coisa?
– Meu trabalho aqui acabou. Só isso. Você já sabe se virar sozinho. Virou um homenzinho já – respondeu e soltou sua famosa gargalhada.
– E quem disse que eu quero me virar sozinho, mulher?!?! Quem vai cozinhar pra mim, lavar minhas roupas, fazer aquela broa de milho que eu adoro? É por causa de dinheiro? Recebeu uma proposta melhor?
– Não é grana. E pra sua broa, você arranja alguém, moleque. Tenho que ajudar outras pessoas que precisam mais do que você.

Jonas não estava entendendo a decisão. Então Jurema explicou tudo. Ela foi mandada pelo pai dele para acabar com o jeito mimado e infantil dele e essa era a especialidade dela. Daí o “Ótima no recondicionamento de conduta interpessoal” na carta de apresentação dela. Jurema já tinha feito o mesmo que fez por Jonas para várias pessoas, inclusive os amigos dele que estavam nas suas referências. Aí Jonas entendeu o sumiço da “tchurma” de playboys que viviam aprontando pela cidade. Jurema os havia tornado homens. Não precisavam mais dos joguinhos infantis que os divertiam tanto antigamente.

A vontade que Jonas teve foi de implorar para que Jurema ficasse. Mas compreendeu que ela não era mais necessária ali. E essa renúncia foi uma das provas que Jurema teve de que seu moleque realmente havia crescido.

– Posso te pedir só mais uma coisa, Nega?
– Pode, moleque...O que você quer?
– Me faz o almoço de hoje?

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