13.6.03

Inseparáveis

Depois de que podia se lembrar, Esaú sempre detestou seu irmão, Jacó. Queria, se possível, ficar longe um bom tempo. Infelizmente para ambos – para ambos mesmo porque Esaú fazia da vida de Jacó um inferno – era impossível a separação definitiva: eles eram gêmeos siameses.

Lógico que a razão estava com Esaú. Pelo menos ele pensava assim. Se achava desfavorecido em relação ao irmão. Era até engraçado pensar que seus pais, Esdras e Josefina, tivessem um preferido entre eles. Mesmo que isso fosse possível, como dar algo a um sem que outro soubesse e pedisse o mesmo? Para o azar de Jacó, Esaú nunca primou pelo bom senso.

Jacó imaginava que tudo havia começado quando eles foram manchete no jornal da pequena cidade em que nasceram. Na foto, recém-nascidos ainda, Jacó saíra em destaque, pois estava acordado. Esaú estava dormindo e parcialmente coberto. Sempre perguntavam quem era o que estava acordado, diziam que parecia ser o mais esperto. A matéria, emoldurada e em lugar de destaque na parede da sala, era odienta para Esaú. Se ele tivesse a chance, já teria estilhaçado o quadro há muito tempo.

Esaú fazia de tudo para apoquentar Jacó. Dormia depois dele, para esbofetear-lhe a cara, destratava as visitas que o elogiavam, começou a beber e fumar escondido só porque fazia mal ao irmão. Jacó não contava nada aos seus pais, apesar do tormento que sua vida se tornou. Na verdade, tinha medo do Esaú. Achava-o louco, temia o que ele podia fazer com ambos.

E parece que, algum tempo depois, Esaú realmente enlouqueceu. Os tormentos que aplicava a Jacó estavam recrudescendo, se tornando mais cruéis. Para afligir o irmão, Esaú não estava mais se preocupando mais nem com sua própria integridade física e moral. Tomava drogas que deixavam os dois alucinados, rasgava a parte das roupas que cabiam a Jacó, deixando as suas intactas. E Jacó persistia em seu silêncio. Era tão absurdo o estado em que andavam que seus pais começaram a pensar que os dois estavam enlouquecendo. Nunca imaginariam que Jacó não pudesse fazer parte das insanidades que faziam. Sempre acharam Jacó ajuizado. Era impossível que ele se permitisse a tamanho descalabro sem sua conivência.

Um dia, Esdras e Josefina esperaram Esaú dormir e foram conversar com Jacó. Queriam saber o que estava acontecendo, se eles podiam ajudar de alguma forma, mesmo que fosse buscando um auxílio externo. Entendiam que a vida deles não era normal, que com na sua condição aberrante, eles eram mais sujeitos a sofrer danos psicológicos. Compreendiam o provável desespero que um rapaz da idade dele devia estar passando por não ter uma vida normal. E se ele, Jacó, que era o arrimo moral dos amalgamados irmãos estava tendo problemas, isso era muito preocupante. Seus pais perguntaram se eles podiam fazer algo para acabar com a aflição dos dois. Jacó permaneceu em silêncio durante alguns momentos e depois perguntou fez apenas uma pergunta.

– Existe a possibilidade de uma intervenção cirúrgica?
– Não, filho...Infelizmente não. Vocês dividem órgãos vitais.
– Entendo.

Depois disso, Jacó virou o rosto e dormiu, a cabeça no ombro que dividia com seu irmão.

Nos dias seguintes, Esaú continuou com sua série de martírios ao irmão. Mas ele notou uma diferença no comportamento de Jacó. Agora ele nem reclamava. Estava alheio a tudo, não se importava com nada que Esaú fizesse. Inclusive não disse palavra quando viu que o irmão estava pegando a seringa, se preparando para mais uma dose de heroína, seu mais novo vício. Esaú achou estranho. As recentes doses da droga os deixavam letárgicos, coisa que Jacó detestava. O mais incrível foi que ele até ajudou a amarrar a borracha que vedaria a corrente sanguínea de ambos. Esaú pensou que finalmente havia conseguido deixar Jacó viciado em algo, havia conspurcado seu virtuoso irmão, de forma indelével.

A onda dessa dose consentida foi a melhor que Esaú já teve. Ironicamente, nunca se sentiu tão próximo do irmão, os dois mergulhados num mar de torpor calmo, repleto de sonhos de liberdade para ambos. A sensação de que estava se separando do irmão–fardo era tão intensa que poderia se dizer que era real, física. Até a dor que de repente começou a fazer parte desse ritual lisérgico de libertação era bem vinda. Se fosse para ser uma pessoa só, valia o esforço.


Josefina acordou no dia seguinte e foi olhar os filhos. Deparou-se com uma cena dantesca. Seus dois filhos, dois como nunca foram antes, mergulhados numa poça de sangue, meio divididos, meio unidos. Um machado, fincado na altura da barriga de ambos, os havia quase separado por inteiro.

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