16.6.03

Açúcar queimado


Estava prestes a entrar naquela fase da saudade onde até os defeitos da pessoa distante fazem falta. Outro dia desses se pegou com o gosto da calda do pudim de leite que ela fazia. E olha que ela invariavelmente errava e o sabor de açúcar um pouco queimado sempre predominava.

Foi ela quem quis terminar, ele não iria correr mais atrás e estava tudo encerrado, ponto. Mas ali, ouvindo o cd do Sinatra que compraram juntos, era difícil não lembrar dela e de suas manias. Como querer dançar sempre que ele colocava o “ol' blue eyes” no cd player. E o jeito engraçado como ela conduzia a dança, porque ele sempre foi uma nulidade como pé-de-valsa.

A saudade é uma merda!”, pensou nessa hora.

Ele nem sabia o que era pior: se era a saudade em si ou o fato de um cara racional como ele sentir falta de coisas que o incomodavam de forma absoluta. Seu ciúme exagerado, que passava em muito o limite em que ele ficaria lisonjeado ou a irritação provocado pela seu perfeccionismo patológico. Tiveram brigas homéricas por conta disso. E agora ele, um sujeito calmo, totalmente avesso às brigas e discussões inúteis, começava a sentir falta até dos arranca-rabos que tinha com ela.

Viu que sua situação estava ficando insustentável quando mesmo as lembranças das diferenças de gênio entre os dois não eram o bastante para fazer ver que a separação era o melhor para ambos. Próximo do fim, eles já nem conversavam, viviam se falando aos berros. Seguirem caminhos diferentes era o mais correto, todos seriam mais felizes e ainda poderiam manter o pouco de respeito que um nutria pelo outro. Ele não era um desses caras guiados pela paixão. Não que fosse orgulhoso. Só achava que se anular como pessoa por causa de um relacionamento não era uma opção viável. Não acreditava que se podia renunciar a tudo pelo amor. Esse tipo de coisa só acontece em músicas bregas e filmes melados.

Então por que diabos ele não parava de pensar nela? Por que cogitava – loucura! – ligar para ela?

Largou o Sinatra no meio de “Nevertheless” e foi até a cozinha comer algo, mais para espairecer que pela fome. Abriu a geladeira e viu lá, ainda intacto, o pudim de leite feito pela sua mãe, que por pena do filhinho voltou a cozinhar para ele. Ele resplandecia, tinha a textura e as cores exatas, como numa foto de mostruário. Tirou uma fatia e comeu um pedaço. Abandonou o pudim na primeira colherada. Estava perfeito. Perfeito demais.

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