23.6.03

O Egoísta


Nicanor era o sujeito mais egoísta da turma. O caso dele nem era de sempre pensar primeiro nele. Ele só pensava nele. As outras pessoas não tinham a menor importância. Eram meros coadjuvantes, em um mundo em que a única coisa que tinha relevância era o seu próprio umbigo.

– Nicanor, Nicanor...Deixa de ser assim! Quase ninguém mais liga pra você, vai acabar ficando sem amigos – disse certo dia Deodato, um dos poucos que ainda gostavam dele.
– Deodato, amigo meu é dinheiro no bolso! Tô nem aí. Não dependo deles pra nada.
– Nicanor...Todo mundo precisa de amizades. Nenhum homem é uma ilha. Esse seu egoísmo ainda vai te trazer problemas.
– Eu não sou egoísta, Deodato. Eu apenas tenho como prioridade tomar conta dos meus assuntos. E além do mais, por que eu tenho que me preocupar com os outros? Os outros não podem se preocupar com eles mesmos? Eu já tenho muito trabalho cuidando de mim.
– Pô...aí você ainda tá parecendo preguiçoso, além de egoísta.
– Deodato, não encha meu saco!
– Tá bom, tá bom, sem estresse. Mas você não conhece aquela lenda oriental sobre o céu e o inferno? Segundo essa lenda, o céu e o inferno são lugares idênticos. As almas ficam todas em uma cela gigantesca, completamente gradeada. A única coisa que serve de alimento para essas almas é uma montanha de arroz que fica na frente da grande cela. Todo esse arroz fica fora do alcance das almas, mas o criador deu a todas elas palitos, desses de comida japonesa, com os quais eles conseguiam alcançar a comida. E é aí que vem a diferença entre o paraíso e a expiação eternos. No inferno, cada alma tenta pegar os grãos de arroz e colocá-los na própria boca. Mas como os palitos são muito longos, eles não conseguem chegar perto o bastante para comê-los. Essas almas viverão o resto da eternidade com fome. No céu, ao contrário, cada alma que pega seu grão de arroz dá sua porção de comida à alma do seu lado, e assim todos comem e vivem felizes.
– Que merda de história! O que significa e em que se aplica à nossa conversa?
– Não seja burro, Nicanor! Ajudar os outros é vital para uma vida melhor, para quem é ajudado e para quem ajuda. Sozinho, você é fraco. Num time, você é forte.
– Pra começar, meu time sou eu e ponto. Além do mais, detesto arroz puro e preferiria ficar com fome pelo resto da eternidade a me ater a essa dieta ridícula. E outra coisa: se o céu é essa mixórdia de ficar preso passando comida pra boca dos outros pra todo o sempre, dispenso solenemente. Que paraíso mais sem graça!
– Porra, Nicanor, você não entende nada mesmo...

Pois foi passando o tempo, Nicanor ficando cada vez mais isolado e o que é pior, mais feliz. Realmente não sentia falta de companhia. Ele se bastava. E com isso ele foi vendo seu já restrito círculo de amizades definhar até não sobrar mais ninguém. Nem mesmo o Deodato. Seu isolamento, com o passar dos anos, foi mudando seu comportamento, naturalmente. Como não havia pessoa que pudesse avisá-lo da sua alteração, a mudança era imperceptível para ele. Tinha adquirido ojeriza ao desprendimento humano. Qualquer demonstração da fraternidade entre as pessoas o encolerizava. Para ele, toda forma de boa ação tinha por traz alguma má intenção camuflada. Ele tinha se tornado um sociopata em potencial. E para ele, tudo estava normal, se achava até mais lúcido do que nunca. Ele nunca iria imaginar que espécie de problemas essa atitude lhe causaria.

Caminhava Nicanor pela praia num dia chuvoso. Andava rápido, para evitar os pedintes, aos quais tinha particular aversão. Apesar de bonitas, o calçamento em pedras portuguesas das praias cariocas não são muito práticas, e úmidas, se tornam escorregadias. Ao avistar um grupo potencial de crianças que iriam lhe abordar pedindo esmolas, abaixou a cabeça e acelerou o passo. Foi seu erro. As pedras limosas o fizeram escorregar, deixando-o no chão. O que mais irritou Nicanor não foi a queda em si, nem o momento constrangedor por que passara – ele não dava a mínima para opinião alheia – mas sim a pronta ajuda que um rapaz que fazia seu cooper lhe ofereceu. Ao ver Nicanor no chão, a primeira ação do rapaz foi segurar-lhe o braço, ajudando-o a levantar-se. Isso enfureceu sobremaneira Nicanor, que com um safanão se livrou da mão amiga.

– Me largue, moleque! Não preciso da sua ajuda!
– Calma, senhor...Eu só queria ajudá-lo...
– Eu não pedi sua ajuda...

Ao falar isso, Nicanor deu um safanão no rapaz, afastando-o. O garoto caiu, incrédulo, no meio da pequena aglomeração que já se formava. Essa atitude do Nicanor enfureceu os curiosos, que não entenderam sua reação desbaratada.

– Ei!!! O menino só queria ajudar o senhor! Não precisava fazer isso com ele!!! – reclamou uma senhora que acompanhava a cena.
– A senhora fique quieta, ninguém pediu sua opinião!
– O senhor devia ter mais educação! Desrespeitar assim uma senhora pode ser prejudicial ao senhor.

Quem havia dito isso era um homem forte, com quase dois metros de altura. Nicanor já estava completamente descontrolado e, como também era um sujeito com uma boa constituição atlética, não se amedrontou. Deu uma resposta atravessada ao homem forte, que de pronto partiu para um tipo de agressão menos verbal. Os curiosos se afastaram diante das cenas de pancadaria, mas, para surpresa de todos, Nicanor começava a levar a melhor na briga, causando graves lesões ao seu oponente.

Vendo seu defensor apanhando, a senhora que foi ofendida por Nicanor resolveu ajudar, acertando lhe uma bela guardachuvada na cabeça. Nicanor, colérico, acertou um murro no rosto da senhora, que caiu desmaiada no chão. Esse foi o sinal para que os outros curiosos também tomassem partido na confusão, e logicamente não do lado do contumaz egoísta. O rapaz que o ajudou a levantar lhe deu uma rasteira por trás, levando-o ao chão. Caindo de cabeça, Nicanor sentiu que tinha um talho na fronte, que pro seu azar, vertia sangue em abundância. Ele ainda tentou resistir, mas ao vê-lo no chão, o grupo de pessoas o atacou sem piedade, e em pouco tempo ele estava inconsciente, devido à violência dos golpes que sofrera.

A ironia da coisa é que, apesar de ser um ato de vandalismo e brutalidade, Nicanor acabou morrendo por linchamento, a forma menos egoísta de ferir uma pessoa.

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