7.6.03

Visita noturna


Eiras despertou no meio da noite percebendo a inevitabilidade da sua morte e, pior, como era supérflua a sua vida. E como não tinha nem teria nada de muito mais interessante para fazer com ela, pensou, com seus botões ainda meio sonados, que a morte até que lhe cairia bem.

Momentos depois tocaram a campainha. Achou estranho, pensou que ainda estava sonhando ou algo do gênero. Não tinha amigos que chegassem à sua casa uma hora dessas. Aliás, nem tinha amigos que chegassem a lugar algum a qualquer hora. Não os tinha de todo, e mesmo que os tivesse, quem quer que batesse em sua porta às 3 da manhã seria sumariamente cortado do seu círculo de relações.

Abriu a porta e viu um sujeito pálido que lhe era totalmente estranho, impecavelmente vestido com um terno preto de fino corte. Tinha uma expressão mista de profundo tédio e cansaço. Foi logo estendendo a mão, se apresentando.

– Olá. Você é o Eiras, não? Você me chamou, eu apareci – contrastando com a jovialidade das palavras ditas, foi o cumprimento menos entusiasmado que já tinha recebido. Mas isso não era o mais estranho. O que o intrigava era que nunca tinha visto um entregador de pizza tão bem vestido. Isso sem levar em consideração também o fato dele não estar trazendo a pizza que ele não havia pedido.

– Como assim, “eu chamei”? O porteiro deixou você subir? Como você sabe meu nome? Você sabe que horas são, meu chapa?

– São três horas, sete minutos e 45 segundos, levando-se em consideração o fuso horário da região, não precisei falar com o porteiro e você me chamou ainda há pouco, quando acordou – respondeu, ignorando o tom irritado do Eiras, o misterioso personagem – Eu sou a Morte.

Foi o bastante para a pouca paciência do Eiras. Bateu a porta na cara do desconhecido louco e voltou para continuar seu sono. Chegando ao quarto, para seu assombro, o maluco estava sentado em sua cama.

– Mas como...?!?!?!
– Não gosto de fazer esses truques. Acho de um exibicionismo estéril, incongruente com a formalidade do meu trabalho. Mas você não me deu opção. E você não foi muito gentil. Fui educado, atendi o seu chamado numa hora indigna dessas e você me bate com a porta na cara.
– Como você entrou aqui?!?!?!
– Isso é fácil, mas não vem ao caso. Você me chamou, estou aqui. Vim te buscar.
– Buscar?!?!? Quem diabos é você, afinal?
– Sorte sua eu não ser o diabo. Quando um dos emissários dele se dispõe a buscar alguém sem intermediários, pode ter certeza que a situação dela não é das melhores. Digamos que ele passará por uns tempos infernais – ao falar isso, deu uma risada – Desculpe a piada nesse momento impróprio. Eiras, eu sou a Morte, já disse.

– A Morte?!?!?!
– Isso. Por que? Não acredita? Esperava um monte de ossos cobertos com uma túnica ridícula e uma foice? Eiras, Eiras, Eiras...essa visão de mim é muito antiquada. Foi criada pra assustar os servos na idade média. Estamos no século XXI...

Eiras estava aturdido. Não sabia se ainda estava sonhando ou se tinha enlouquecido de vez. Sentou a lado do sujeito de preto e resolveu ver até onde iria esse jogo estranho.

– Tá bom. Digamos que você seja realmente “A” Morte. Por que eu? Quando foi que eu te chamei, afinal?
– Você acabou de me invocar – é um termo meio rebuscado, mas é o correto – quando acordou percebendo a inevitabilidade da sua morte e como era supérflua a sua vida.
– Porra!!! E você aparece assim, só porque eu pensei essa merda? Você leva tudo sempre tão ao pé da letra?!?!
– Depende...De qualquer forma
– E se você tivesse que aparecer toda vez que alguém falar “se inveja matasse, eu cairia durinho agora!”, por exemplo? Ou quando um cara fala teve vontade de morrer quando viu seu time perder o campeonato? Você não ia parar em casa nunca! Aliás, você tem uma casa?
– Tenho, mas você está saindo do foco da nossa conversa. A questão é a vontade da pessoa. Eu apareço quando há convicção no seu desejo de morrer. Você estava convicto quando pensou em passar dessa pra melhor.
– Hmmm....e é uma melhor mesmo?
– Pode ser que sim, pode ser que não. Mas você está pulando as etapas do processo. Quando você acordou no meio da madrugada, achando sua vida uma porcaria, você teve o que chamamos de ....
– Quem “chamamos”???
– Você está novamente fugindo do assunto, Eiras. Você teve o que chamamos de clarificação da condição de vida (CCV). Costumamos levar em consideração todo pedido – invocação – decorrente de um CCV.
– Mas foi sem querer!!! Eu não quero morrer, catzo!!!
– Tem certeza? Um CCV não falha...
– Eu estava dormindo! Eu não estava pensando direito!!! Eu, eu....
– Olha, Eiras. Eu gostei de você. Vou te dar uma chance pra pensar melhor. Não devia, mas vou te dar essa chance. Vai mesmo renunciar ao seu CCV? Eles são raríssimos. E só pessoas muito lúcidas conseguem tê-los...

A conversa surreal com a figura mitológica sentada ao seu lado ainda não parecia totalmente real para Eiras. Na manhã seguinte ninguém acreditaria, quando ele contasse a história para....

Para quem?

Eiras era um solitário. Trabalhava em casa – um emprego desestimulante e mal remunerado –, mal saía para comprar seus víveres. Não tinha ninguém. Deu uma olhada no seu exíguo apartamento (sua “piquenete”, segundo o próprio, pois era menor que um quitinete), nos seus míseros pertences, na sua falta de perspectivas. Aquela que morre por último, a tal de esperança, para ele era uma natimorta. E o pior é que ele nunca sentiu falta dela.

Sua vida, no fim das contas, não era nada. Viver ou morrer realmente não faria a menor diferença. Eiras sempre imaginou o momento em que morreria. Seria como aquelas mortes de cinema, quando o futuro defunto se lembra de todos os momentos da sua vida em uma fração de segundos. E agora, ali com a Morte em pessoa do seu lado, ele não conseguia lembrar de nada que importasse. Se ele tivesse que usar a tal “fração de segundos” pra ver novamente o que tinha vivido, ele não precisaria da metade desse tempo. Sua vida foi muito breve, não pelos anos vividos, mas pelo que ele deixou de viver.

– E então Eiras?
– Vamos....– anuiu Eiras, menos triste do que ele imaginava que deveria ficar.
– É a decisão certa.
– É...Eu sei. Ahn, só uma coisa. Como vai ser?
– Basta me acompanhar. Vai ser rápido.
– Isso. Seja breve. Estou acostumado com isso....

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