4.8.03

Beleza



- Eu falei que ela retornaria aos 20 anos.
- E o que ela disse?
- Ora, minha filha....Ela disse amém! Que mais ela poderia falar?

Era triste para um estrela do porte de Diana Serpa ter esse diálogo numa clínica vagabunda, se preparando para uma sessão da mais nova substância rejuvenecedora do mercado. Para ela, que já havia sido a triz televisiva mais famosa do país, aquilo era o fundo do poço: ter que se sujeitar a estampar com seu rosto um outdoor numa rua escondida de Botafogo em troca de um paliativo contra as marcas do tempo. Daí para baixo, Diana não sabia mais o que poderia acontecer. Pelo menos diziam que os efeitos da nova droga eram melhores que os do botox.

Como era de se esperar, Diana tinha aquela vaidade que só quem sofreu anos com o assédio de fãs e jornalistas pode ter. O estrelato tinha sido um fermento para seu ego, que não era dos menores. Sua beleza clássica lhe rendeu fama e dinheiro. Se tinha talento? Bem, talento é uma outra história. Ela sabia que enquanto mantivesse a boa forma ainda estaria em voga. Se dissessem a ela que, apenas 6 anos depois de ser considerada a quarentona mais bonita do Brasil - ela já contava com 43 anos, mas isso era um segredo de estado - teria uma derrocada tão grande, Diana daria uma daquelas gargalhadas de novela na cara da pessoa.

- Ah, os cinquenta....Que merda! - Pensava.

Voltou para casa, o rosto meio dormente pelas agulhadas. Sabia que a pequena recauchutada iria ajudar. Já tinha até um plano. Depois de dois dias, iria visitar Carlão Moreno, velho diretor de TV e um dos manda-chuvas daquela grande emissora. Ele sempre tentou ter um casinho com ela. Infelizmente, para ele, quando ela não precisava de ajuda e quando ele, mesmo que Diana precisasse, não poderia fazer muito. Mas agora, os tempos eram outros. E se ela precisasse fazer uma segunda chamada no "teste do sofá", melhor que fosse com alguém que tivesse algum real interesse nela.

Não quis se olhar no espelho, não naquela hora. Já estava cansada de ver algo desagradável quando via seu próprio reflexo. Agora, em pouco tempo, ela estaria bela de novo. Como diziam - no seu tempo? - em pleno viço.

Acordou no dia seguinte e antes de abrir os olhos já estava se apalpando. Viu que não estava inchada e foi logo colocando uns cremes recomendados pelo esteticista homossexual que a atendeu na clínica. Tomou uma ducha, sem molhar o rosto, ainda empastelado pelos cremes. Saiu do banho feliz. Viu seu rosto no espelho, branco com as pastas, e escovou os dentes. Queria que o creme ficasse o máximo de tempo possível agindo. Colocou um vestido sexy e se achando já preparada, resolveu visitar o Carlão nesse dia mesmo. Ligou para ele, marcando a visita. Ele já estava agindo como uma raposa velha da televisão, deixando Diana esperando uns cinco minutos no telefone e depois perguntando "quem era mesmo?" , como se tivesse se esquecido da mulher que faria de tudo para levar para cama a menos de 2 anos.

Ele tinha uma agenda muito cheia hoje - "sabe como é vida de diretor!" disse ele, arrogante - então ela tinha cerca de uma hora para chegar no seu escritório. Tinha que correr, não queria dar motivo para ver a porta fechada na sua cara por causa de alguns minutos atrasada. Pegou um kleenex e foi tirando a máscara facial no elevador mesmo, e foi correndo para o carro. Foi pelo espelho retrovisor que viu pela primeira vez os efeitos do nova substância . Não estava como esperava, pelo menos no pequeno pedaço de rosto que via toda ver que olhava para o retrovisor. Talvez tivesse sido melhor esperar os dois dias mesmo. Mas agora não tinha mais jeito. Já tinha marcado com o Carlão e não adiaria mais sua volta ao sucesso.

Chegando nos estúdios onde Carlão tinha seu escritório, se viu inteira pela primeira vez: o reflexo no espelho do elevador mostrava que ela estava, se não com a mesma cara, podia estar até um pouco mais cansada, com mais rugas que antes. Se desesperou. Mas não poderia fugir. Havia chegado à sala do Carlão.

A secretária a anunciou e depois disse que esperasse um pouco. Ela sabia que Carlão faria isso, era o comportamento típico de quem tem o poder de ajudar alguém como ela. Ficou lá, pensando se deveria mesmo fazer isso com a cara que estava. Não tinha mais como recuar. Seria uma afronta para o "grande diretor" e essa porta estaria definitivamente fechada se ela fizesse essa desfeita.

- Diana, minha querida! Você está linda!!! Entra, entra! Desculpa te fazer esperar...Vida de diretor, sabe como é!

O chavão proferido como uma forma de autoafirmação irritava profundamente Diana. Carlão estava mudado. Mais calvo, mais gordo e muito mais repugnante do que era. Se soubesse que teria que passar por essa situação, teria tido o casinho com ele naquela época. Pelo menos ele tinha cabelos, anos atrás.

O encontro tinha sido horrível. Carlão parece que não tinha perdido sequer uma fração do interesse em Diana, apesar de ter à sua disposição milhares de garotinha tenras e durinhas dispostas a tudo para ter uma chance na TV. Os dois saíram para almoçar e depois aconteceu o final mais previsível para a trama: foram para um motel. Apesar dela se sentir lisonjeada pela vontade demonstrada por Carlão, bastava ela olhar para o espelho no teto para se ver feia e pior, se sujeitando a outra humilhação, ao transar com um homem que não a interessava em absoluto. Conversaram sobre seu novo futuro televisivo depois da cópula.

- Queria muito, muito mesmo, te ajudar, Di...E até posso. Só não sei se você vai querer essa ajuda.
- Não me chame de Di, que eu detesto - "olha a intimidade desse porco" , pensou - Fala que ajuda é essa, que eu te respondo se aceito ou não.
- O elenco da próxima novela já está fechado, meu bem. Só sobrou um papel, a da vilã...
- Não é muito meu estilo, mas eu topo...
- Calma, Di...Eu não terminei. O papel sobrou porque a Zora Assumpção não aceitou. A personagem deve ter uns 40, 45 anos. E ela tem uma filha adolescente. Não sei se se encaixa com seu perfil...

Ela estava aturdida. Não sabia se ele estava sendo irônico, ou se ele realmente achava que ela não aparentava ser a mãe de uma adolescente. No fundo, ela não queria ser a vilã da história. Não sabia se seus fãs, acostumados com seus papéis de heroína, gostariam de vê-la fazendo maldades na tela. Mas isso era até suportável, e se atuasse bem, poderia ser uma volta por cima triunfal. Com certeza a mudança de perfil faria com que as capas de revistas voltassem a aparecer. Mas o lance da filha adolescente, realmente a preocupava. Não queria, de forma alguma, se associada a imagem de mulher de meia idade.

- Não tem nenhum outro papel, Carlão?
- Não, Di. Não um que se encaixe com você. Se você topar fazer a vilã, está tudo certo. Você começa a ensaiar amanhã mesmo.

Era um dilema. A necessidade de voltar à TV era enorme. Mas se vendo deitada, ao lado de um cara que a enojava, vendo seu corpo lentamente se degradar, suas carnes ficarem flácidas e as rugas que o tempo se encarregou de por em seu rosto a fizeram tomar a decisão. Já que ela sabia que sua decadência era uma realidade, não deixaria que seus fãs percebessem isso.

- Não, obrigado. Você só me ofereceu esse papel por despeito. Está me achando velha.
- O que?!? Claro que não, Di... Você está ótima! Não aparenta a idade que tem. Você está com quanto? 45?
- Só um sujeito ridículo como você faria esse tipo de pergunta para mim. Não preciso da sua esmola nem da sua irônia. Sei que estou velha. Olhe para o teto. Pode tentar me enganar, mas o espelho não mente. Você já conseguiu sua trepadinha com seu antigo fetiche. Não vai conseguir minha gratidão por causa desse papelzinho de merda.
- Que isso, Di...Você está sendo grosseira. E eu realmente acho...
- Não quero saber o que você realmente acha. E, pela última vez, nunca mais me chame de Di.

Diana pegou suas roupas, se vestiu e saiu, ignorando os argumentos do Carlão. Ele jurou que era verdade que estava achando ela remoçada, mas ela não lhe deu ouvidos. Voltaria à clínica e veria o que ia fazer de efetivo para parecer mais nova. Seu rosto, retocado por programas de computador, já estava na outdoor da clínica. Ela queria ter o mesmo rosto nela.

(...)

- Mas você está ótima, Diana.
- Pare, Walter. Eu não sou cega. Quero uma retocada total. A primeira sessão não adiantou nada, estou me achando até mais velha.
- Você está paranoica, honey... Você rejuvenesceu uns 15 anos!
- Mentira! Quero mais uma sessão.
- Mas você não precisa!
- Walter... Eu quero outra... Agora!

Walter já tinha visto outras clientes reagirem assim, mas nunca tão rápido e nunca com tanta veemência. Achava até arriscado ou nova sessão assim, tão em cima da outra. A beleza que Diana havia recuperado poderia se perder, se o efeito do substância ficasse muito artificial, pelo exagero. Mas ela estava irredutível. Faria a aplicação, já que ela fazia tanta questão.

- Diana, eu acho que você está ótima. Mas se você acha que precisa...
- Eu não acho. Eu preciso.
- Tudo bem. Mas se ficar artificial, a culpa não será minha. Você já é uma mulher madura, e mesmo que esconda muito bem a sua idade, as pessoas têm uma noção de quantos anos você tem. Não adianta você ficar com a aparência de uma menina de 20 anos.
- Eu estou com cara de 60, e não de 20. Chega de papo e pegue as agulhas.

Walter fez as aplicações, muito a contragosto. Disse para ela repousar e que dessa vez ela esperasse o efeito antes de tomar alguma atitude impensada. Recomendou que o chamasse para avaliar os efeitos da nova aplicação. Ele iria direto para casa dela, assim que ela ligasse.

No dia seguinte, Diana acordou e seguiu o mesmo ritual dos cremes. Dessa vez, deixou que eles ficassem o tempo que Walter havia recomendado, deixando que eles tivessem o atuação necessária. Ouviu os recados da sua secretária eletrônica e ouviu uma mensagem do Carlão. Queria falar com ela novamente, com calma. Pediu que ela entrasse em contato com ele. Ela voltou para cama, ignorando o recado. Dormir a deixaria mais calma e seria bom para sua pele.

Acordou algumas horas depois e foi direto ao espelho. Tirou o creme do rosto e teve um choque: estava encarquilhada, com os olhos rodeados por pés-de-galinha e com todas as marcas de expressão impressas como navalhadas no rosto. A visão aterradora quase a matou de desgosto. Resolveu que se tinha que matar alguém seria o Walter, que deve Ter feito algo de errado na aplicação. Iria ligar para ele imediatamente, e se ele não conseguisse dar um jeito naquilo, trucidaria "aquela bicha louca" com as próprias mãos.

- Walter!!! Venha imediatamente aqui pra casa. Algo deu errado. Traga as seringas.
- Anh? Diana? O que houve, meu amor? Fala...
- Cala a boca, Walter. Vem pra cá AGORA...

Walter sabia que essa reação seria possível. Imaginou que ela devia estar se achando muito esticada, nova demais para sua idade. Levou as seringas só para deixá-la menos nervosa e também uma revista dos anos 70 com ela na capa. Compararia a foto com o reflexo no espelho e convenceria que era melhor ser uma mulher de meia idade com cara de adolescente que uma garota com cara de velha.

Ao chegar no apartamento da Diana, se espantou com ela. Por baixo da cara enfurecida dela, via que ela estava maravilhosa, tão bonita quanto era há décadas. Sentiu um orgulho imenso daquilo, que decididamente era sua melhor criação. Com aquela exuberância, em breve ela estaria de volta à TV e ele iria ficar rico com ela, seu melhor mostruário.

- Walter!!!! Olha o que você me fez!!! Eu estou horrenda!!!
- Como assim horrenda? Nunca vi você tão bonita como hoje! Eu te transformei numa obra-prima!!!
- Obra-prima?!?!?! Olha essas rugas, seu viado! Trate de dar um jeito nisso ou eu te mato!!! Eu juro!!!!
Walter não entendeu o porque da brincadeira. Ela estava linda como há muito e vinha com esse papo de que estava velha? Não se via sequer uma ruga em todo o seu rosto. Ficou assustado. Diana nunca primou pelo talento, mas aquela representação de ódio estava perfeita. Dava até medo.

- Trouxe as seringas?

Walter queria ver até onde ia o delírio da Diana. Mexeu na maleta e invés das seringas, pegou a revista que tinha guardado para esse momento.

- Olha aqui, Diana. Você está mais bonita que nessa revista. E aqui você não tinha nem 25 anos! Nunca vi um tratamento dar tão certo como o seu.
- Você está cego ou está brincando comigo, sua bicha? - Diana estava completamente possessa, agarrando Walter pelo braço com muita força - Em que me pareço com essa foto? Nem parece que sou eu, ou parece que tirei essa foto há 50 anos!

Walter se desvencilhou do aperto e levou Diana até o espelho que cobria uma das paredes da sua sala. Encostou a revista ao seu rosto e apontou no reflexo.

- Diana, você está com algum problema. Olha a foto! Olha seu reflexo. Na foto você já começa a ver uma ou outra ruguinha aparecendo. Você agora está perfeita!
- Não!!!! Você está cego!!! Você vai me aplicar outra sessão agora...
- Nunca! Você está louca! Tem que procurar um tratamento. Eu me recuso a estragar um rosto tão belo...

Diana não conseguia ver o mesmo que Walter. Dando um empurrão no esteticista, correu até o quarto e voltou com uma arma.

- Walter. Eu não posso ficar com essa cara idosa. Não mesmo. Você vai aplicar outra sessão em mim, nem que eu tenha que te dar um tiro.
- Diana... Você não está bem. Precisa de ajuda, urgente....
- Sei que preciso. E é você quem vai me ajudar. Coloca agora...Prepara as seringas. Já.

Walter não sabia se Diana falava sério ou não, mas não queria pagar pra ver. Se ela não conseguia ver que estava na melhor das formas, azar o dela. Preparou as doses, a instalou numa poltrona confortável e começou as aplicações. Se sentia como um estudante de pintura retocando a Mona Lisa. Era um pecado mexer em algo tão perfeito como o novo rosto da Diana. Sabia que corria o risco de ser morto por aquela maluca, se o resultado final não a agradasse, mas mesmo assim, movido por uma curiosidade implacável, decidiu que ficaria até ver o efeito final daquela dose extra. Para evitar que ela ficasse muito agitada com a expectativa dos resultados, ministrou em Diana um calmante, sem que ela percebesse.

Depois que Diana adormeceu, Walter ficou um tempo olhando para ela, procurando entender o que se passava naquela cabeça. Por que será que ela não conseguia ver sua própria beleza e por que a fixação em dizer que estava velha, quando o oposto era evidente? Diana podia se considerar uma felizarda. Apesar de aparentar agora ter uns 20 anos a menos do deveria, ela não estava nem um pouco ridícula, como aquelas peruas loucas por uma cirurgia plástica que parecem uns Frankesteins, com corpo de 60 e carinha de adolescente.

O esteticista se perguntou se a tal nova substância havia sido suficientemente testada antes de ir a público. Walter nunca soube de um caso de efeito colateral, e certamente o medicamento não teria uma contraindicação como essa, de fundo psicológico. Sim, de fundo psicológico, porque o caso da Diana era de loucura. Walter pensou em pesquisar sobre isso no dia seguinte, antes de cair no sono.

(...)

Walter foi acordado abruptamente com um grito. De um pulo, levantou, temendo pela arma que deveria estar na mão da Diana essa hora. Correu até o quarto da atriz e a viu chorando, diante do espelho. Ela estava, inacreditavelmente, mais bonita que na noite anterior.

- Agora não tem mais jeito, Walter. Você e essa merda que você colocou na minha cara acabaram com a minha beleza - falou Diana, entre um suspiro e outro.

Walter não conseguiu responder. Não por causa da loucura evidente da mulher, mas porque estava extasiado pela sua beleza. Nunca, em toda vida, havia visto uma mulher tão linda. Por um momento, ele se viu apaixonado por Diana, ignorando sua tendência sexual, definida há tanto tempo.

- Diana...Você...- balbuciou
- Eu o que, Walter? Eu estou acabada. Não há mais nada a se fazer....

Antes que Walter pudesse sair do seu transe, Diana apontou a arma que segurava na boca e disparou. Depois do estampido seco, imperou o silêncio no quarto.

(...)

Diana gostaria de ver seu próprio velório. Milhares de fã e alguns poucos amigos apareceram à concorrida cerimônia fúnebre. A imprense marrom, sedenta por escândalos, cobriu o acontecido com alarde. Depois de tanto tempo, Diana Serpa voltava às primeiras páginas. Infelizmente, não da forma que ela desejava.

Um dos jornalistas presentes encontrou Carlão, o diretor de TV, que, de óculos escuros, chorava discretamente em um canto da capela. Vendo que ele era a personalidade mais famosa do recinto, foi entrevistá-lo.

- Então, Sr. Carlão. Quando foi que o sr. viu Diana pela última vez?
- Foi anteontem. Estou chocado. Não consigo acreditar no acontecido.
- E sobre o que tratou o encontro? Um papel para a estrela na próxima novela?
- Isso, isso. Estávamos negociando.
- Uma perda incrível, não?
- Com certeza. Diana tinha um talento incrível. E estava bonita como nunca.
Com certeza, com certeza. Bem...obrigado, Carlão.
Claro, claro...Não foi nada.

Ao fim da entrevista, os dois continuaram conversando.

- Realmente, fazia tempo que a Diana não aparecia, não tinha como sabermos como ela estava em forma.
- É. Mas eu sou um diretor que sempre procura o melhor pra minha programação. Sabia que Diana estava linda. Ia ser a volta por cima dela.
- Muito azar. Mas por que diabos será que ela, quando ia ter seu retorno triunfal, meteu uma bala na cabeça?
- Não faço ideia...
- Bom...Pelo menos o enterro está lotado. Ela teria gostado disso. E, apesar de ter estourado os miolos, manteve o rosto intacto...
- Pois é. Ela está linda. Mais linda do que nunca. Não parece ter mais que 20 anos...

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