28.8.03

Saída de emergência



Saiu de casa tão atrasado que nem se preocupou em tomar o café. Mal abriu a porta de casa e desatou uma carreira pela rua, querendo chegar o mais rápido possível à estação do metrô. "Outro atraso no escritório e estou ferrado!" , era só o que conseguia pensar.

As calçadas cheias foram seu primeiro obstáculo. Praticava um inusitado balé urbano ao se desviar das pessoas, que pareciam não entender sua pressa. Passava raspando por uma senhora ali, quase trombava em um estudante aqui, sem se preocupar com roupas ou feições. Seu único objetivo era chegar à estação e quem estivesse na sua frente era apenas um empecilho.

Até que ele, não tendo agilidade para se desviar de duas pessoas ao mesmo tempo, esbarrou com força num sujeitinho franzino que vestia um terno surrado. A violência do encontrão levou os dois ao chão, com maior prejuízo para o rapaz fraco.

- Ei! Ficou louco?!?!
- Desculpe! É que eu estou com...

Não pode terminar a frase. Mais estranho que o terno velho do rapaz era a forma como ele se barbeou: apenas metade do rosto estava lisa, perfeitamente escanhoada; a outra metade ostentava um bela barba. A surpresa que a imagem lhe causou o deixou sem fala por uns momentos.

- O que foi?!?! O que está encarando?
- Nada, nada...desculpe...tenho que ir. Estou atrasado...

Ia demorar muito para ele explicar a situação. Seu atraso não permitia que ele ficasse tecendo teorias sobre todo sujeito com comportamento exótico que trombasse pela rua. Continuou sua carreira rumo ao metrô, ignorando o resto dos transeuntes.

Chegou à estação com o ticket já na mão, pronto para voar pela roleta. Não poderia perder sequer um trem. Olhando o relógio viu que tinha que percorrer em 5 minutos um percurso que demoraria, se desse sorte, 25.
Chegando a plataforma, viu que um trem estava prestes a sair, faltava apenas uma senhora entrar no vagão mais perto de onde ele estava. Correu e entrou no trem, com as portas praticamente se fechando. Sentou arfando, de olhos fechados para se recuperar do esforço.

"Estranho ter lugar no metrô essa hora", pensou, antes de abrir os olhos. Quando deu sua primeira olhada no vagão, viu uma cena que nunca esperaria: ele estava praticamente vazio, havendo apenas a senhora que entrou e ele. Esse fato era uma impossibilidade total às nove da manhã. "Que dia mais maluco!", foi o que pensou.

Vasculhou os bolsos para ver se não tinha perdido nada na corrida. Enquanto verificava suas coisas, reparou que a senhora que o acompanhava na viagem estava olhando fixamente para ele.

- O senhor está bem? Parece que lhe falta ar.

Ele se virou para velha mulher e pela segunda vez no dia ficou sem palavras. O que o deixou chocado foi a maquiagem que ela usava. Não era daquelas maquiagens pesadas, até normais para senhoras daquela idade. Ela estava pintada, literalmente, de palhaça. Tinha, por baixo de uma espessa camada de tinta branca que lhe cobria todo o rosto, duas bolas vermelhas nas bochechas, havia coberto uma área muito maior que os lábios com batom e duas cruzes pintadas sobre os olhos completavam a figura.

- E então? O senhor está melhor? - insistiu a senhora
- Eu...eu estou bem. Ahn...a senhora...
- Sim?
- Desculpe perguntar. Mas por que a senhora está assim?
- "Assim", como?
- Com essa pintura no rosto...Desculpe, não quero parecer indiscreto ou muito curioso.
- Que pintura?
"Nossa! A véia caducou!", imaginou. Vendo que para ela estar com aquela pintura no rosto era normal, ele não quis mais tocar no assunto. Claro que não conseguiu desviar os olhos da senhora, o que passou a incomodá-la.

- Por que o senhor está me olhando desse jeito? E de que pintura está falando?

Ele não queria ser grosseiro com a senhora e, mesmo que fosse, tinha sérias dúvidas se ela ia compreender o que ia falar. Aproveitou que o trem parou na estação seguinte e desceu, apressado. "Chega de metrô! Vou pegar um táxi!" Era a solução para chegar menos atrasado e evitar o contato com mais gente esquisita.

Saiu da estação na mesma corrida que havia entrado. Saiu esbarrando nas pessoas, mas nem pensou em parar para desculpas. Praticamente se jogou na frente de um táxi que passava pela rua. Sem olhar para trás, abriu a porta traseira do carro e antes do falar bom dia foi logo avisando ao motorista:

- Toca pra Rio Branco, voando. Estou muito atrasado!
- O senhor manda, chefia. - respondeu o taxista.

Não se interessou em olhar para o motorista. Pegou a carteira e conferiu se tinha como pagar a corrida, e por sorte, tinha. O táxi seguiu pelo Aterro do Flamengo numa rapidez absurda, do jeito que ele pediu. A velocidade não permitia que ele visse as pessoas nas calçadas. Elas não passavam de borrões dispersos, o que era bom, pensou. Se pudesse não ver mais ninguém nesse dia turbulento, agradeceria a Deus.

- Muito atrasado, chefia? Posso ir mais rápido se o senhor quiser - falou o motorista repentinamente.
- Não, não...está bom - respondeu olhando a paisagem.
- O senhor não é muito de falar, né? Sabe...Todo mundo diz que taxista fala muito. E é verdade! As pessoas podiam ser mais compreensivas...A conversa é nossa única distração.
- Pois é - respondeu à reclamação do taxista com aquele tom de "a-conversa-acaba-aqui".
- Ah...O senhor não quer mesmo conversar, né?

Quando ele tirou os olhos da janela e foi responder ao taxista, não acreditou no que viu: o motorista estava dirigindo com os pés, mesmo não sendo deficiente. Ele guiava com destreza naquela posição esdrúxula, apertando com os dedos dos pés uns botões no volante, que deveriam ter a função dos pedais e do câmbio. Os braços estavam por cima do banco, sãos e fortes, como se ele estivesse dirigindo daquela forma para relaxar.

- Por que diabos você está dirigindo assim?!?! Ficou louco?!?! - berrou, já longe do seu estado normal.
- Mas....Foi o senhor que disse pra eu ir voando! - respondeu ofendido o taxista.
- Não é disso que eu estou falando, seu maluco!!! Pegue no volante com as mãos!
- Ué?!? Por que?!?!
- Como, "por que"?!?! Por que você está dirigindo com os pés???
- Qual o problema? - a confusão do motorista parecia sincera - Como o senhor dirige??? Tira os pés para guiar?

Ao falar isso, o motorista deu uma gargalhada altíssima, como se tivesse ouvido a piada mais engraçada do mundo. Ele já estava pronto para agredir o taxista quando ele repara que já está no fim do Aterro. Antes que fizesse uma loucura, pediu para o carro parar.

- Ora! Eu levo o senhor até a Rio Branco...
- Não precisa...É logo ali na esquina. - Olhou o taxímetro e pegou uma quantia aproximada na carteira. Jogou por sobre o banco do táxi e saiu, sem se despedir ou esperar o troco.

Desceu e voltou a sua já rotineira corrida. Se perguntou se todas as esquisitices que haviam acontecido com ele até aquela hora - e ainda não eram dez da manhã - não seriam uma praga do chefe dele, por seus constantes atrasos. Naquela parte do Centro, as ruas estavam vazias, até que ele alcançou a praça Mahatma Gahndi e a cruzou em direção à Cinelândia, repleta de gente. Chegou lá correndo, mas dessa vez, prestou uma certa atenção nas dezenas de pessoas que andavam. Viu um senhor de idade, calvo e com cara de político conservador, impecavelmente vestido, porém descalço e com os pés imundos. Depois passou voando por uma senhora, que devia ter uns bons setenta anos, vestida como uma normalista, com sainha, meia ¾ e lancheira, inclusive. Perto dela, um policial, paramentado com todos os equipamentos que um policial carrega, estava vestido de Pato Donald, e como o personagem, também não usava nada da cintura para baixo. O que mais o assustava era a tranqüilidade das pessoas diante de tão absurdos comportamentos. O mundo inteiro parecia haver enlouquecido e ele, diferente do resto das pessoas à sua volta, não tinha a menor idéia de como agir.

Entrou no prédio onde trabalhava e encontrou Agenor, o ascensorista, vestido de Super Homem. Nem comentou nada.

- Olá...O andar de sempre, senhor? - perguntou com um sorriso no rosto
- Claro, Agenor.
- Certo! Para o alto e avante!

Entrou no seu escritório e encontrou seu chefe sentado à sua mesa. Tinha uma cara inexpressiva e para deixá-lo mais apreensivo, não aparentava ter nenhum comportamento estranho. O mesmo terno sóbrio, o mesmo penteado antiquado e a mesma pasta 007, essa ao lado da mesa, no chão.

- Olá...Atrasado de novo, não? - Disse o chefe, mais jovialmente do que jamais vira
- Chefe...Se eu contar o que passei hoje, o senhor não vai acreditar...
- Sei disso, sei disso. É por isso que agora tenho outras formas de impor a disciplina aqui na firma. Você será o exemplo, por estar sempre atrasado.

Assim que terminou de falar, o chefe levanta da cadeira empunhando um machado, que estava escondido por baixo da sua mesa. Ele não estava crendo no que via, mas diante das circunstâncias, achou melhor correr. O chefe deferiu um golpe e errou por muito pouco. Tinha dado muito azar: porque logo o chefe dele havia virado um louco perigoso?

Correu até o corredor do prédio e apertou o botão do elevador. Não pode esperar por muito tempo. O chefe logo havia surgido na porta, com a mesma cara inofensiva e com o mesmo machado ameaçador. Ele desistiu da espera e voou em direção à saída de emergência. A porta, para sua sorte estava aberta. Ele entrou e rapidamente a trancou por dentro.

Mas a sorte dele durou muito pouco. Ao fechar a porta, ele tentou dar uns passos pelo escuro e notou, da pior maneira, que não havia onde pisar. A saída de emergência levava a um precipício.

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