23.7.03

Autoconhecimento


O desaparecimento do Dino começou ser notado apenas depois da sua terceira semana. Todos o seus amigos sabiam que ultimamente ele era dado a esses sumiços misteriosos, mas ele nunca tinha ficado tanto tempo sem dar notícias. Ele sempre fora o "louco da turma", então suas atitudes estranhas eram esperadas por todos. Essa foi a razão pela qual ninguém se preocupou tanto com sua ausência.

Depois que Dino começou a fazer análise - para "se conhecer melhor", dizia - seu comportamento excêntrico foi mudando gradativamente. Para melhor, todos achavam. Se antes eles era o doidão imprevisível, que preocupava a todos, agora eles estava mais sereno. Suas loucuras, teoricamente, não eram mais aquelas que poderiam feri-lo, como em outros tempos. Sua busca pelo autoconhecimento fez com que ele abandonasse seus hábitos destrutivos, tornando-o mais contemplativo, recolhido. Os céticos da turma apostavam que isso era uma fase, quem em breve ele voltaria a fazer as mesmas merdas que sempre fez. Mas, para surpresa e alívio de todos, Dino mantinha-se direito por um tempo maior do que todos julgavam. Ele trocou seus atos tresloucados por viagens que sempre fazia sozinho, justificando que precisava meditar. "Meu terapeuta recomendou", era a desculpa. Essa era a explicação para seus sumiços repentinos, que se tornaram uma constante. Nunca ia para lugares agitados ou para cidades cartões postais. Preferia os lugarejos remotos, se possível que não tivessem nem uma mísera pousada. Pegou gosto por acampamentos, onde era mais difícil de encontrar pessoas que atrapalhassem seu retiro.

Todos seus amigos o achavam realmente mais centrado, pacífico. Isso era bom para ele, claro. Mas para dois ou três de seus amigos mais íntimos, ainda havia "aquele" brilho nos olhos do Dino, um brilho que apesar de esmaecido, indicava que nem tudo estava bem, que o velho Dino insano ainda estava lá, apenas descansava, entediado, devido a falta de ação imposta pelo seu novo comportamento.

E foram esses amigos íntimos que acharam muito estranho tão longo sumiço. Suas viagens não duravam nunca mais de uma semana, e na volta ele adorava encontrar toda a turma para mostrar seus avanços em sua trilha de autoconhecimento. Nem no curto período em que pensou em seguir sua carreira por formação, a medicina, ele desapareceu por tanto tempo. Na segunda semana sem aparecer, Sandro, seu amigo mais íntimo, começou a procurá-lo, ainda sem alarde. Ligou para seus familiares, para seus outros amigos e ninguém sabia o destino do Dino. E foi então que, na terceira semana desaparecido, Sandro resolveu ir até à casa do amigo.

A campainha insistentemente tocada não surtiu efeito. Não sabendo bem a razão, Sandro sentiu que algo não estava certo, que de alguma forma, Dino tinha aprontado uma das suas. Sandro encostou o ouvido na porta e não ouviu nada, a principio. Manteve-se na posição mais alguns segundos e distinguiu, quase imperceptível, um ruído conhecido, mas que ele não conseguia identificar. Fechou o outro ouvido e prestou atenção por mais uns momentos. Para seu horror, depois de apenas um segundo ele reconheceu o barulho por trás da porta trancada e não teve dúvidas: arrombou-a com um chute.

As moscas que infestavam o apartamento zumbiam incessantemente, a origem do ruído. Andando até o quarto do Dino, Sandro sentiu o cheiro insuportável de carne em decomposição. Encontrou o corpo do amigo estirado na cama, parcialmente esquartejado, sem as duas pernas e sem um braço. A cena chocante foi demais para Sandro, que já nauseado pelo forte odor de morte, correu ao banheiro e vomitou.
Tentando se recompor, Sandro lavou o rosto, bebeu um pouco de água e juntando o que lhe restava de coragem, voltou ao quarto. Com as ideias mais claras e ligeiramente mais calmo, Sandro pode notar o que havia de estranho na já surpreendente cena. Apesar de estar retalhado, o corpo de Dino não tinha machas de sangue: os cortes em seu corpo estavam enfaixados, o que levava a crer que o objetivo de quem quer que tenha retalhado seu amigo não era matá-lo com isso. Ele estava vestido e não havia sinal de luta ou dos seus membros decepados. Se aproximando da cama, Sandro pode ver que Dino tinha uma caneta nas mãos e que um bloco repousava no chão, ao lado da cama. Perto do bloco, tigelas com restos de algum tipo de sopa rala e mal cheirosa que as moscas tentavam acabar. Sandro pegou o bloco e reconheceu a letra do amigo, apesar da escrita tênue e imprecisa.

Sandro guardou o bloco no bolso e resolveu de uma vez por todas chamar a polícia. Não sabia mais o que fazer diante do corpo do amigo. Esperou os policiais chegarem, respondeu todas as perguntas feitas por eles e foi para casa, sem mencionar o bloco que havia guardado. Sabia que naquelas anotações poderiam estar pistas sobre quem fez aquilo ao Dino. Sabia também que ele poderia se meter em problemas ao ocultar tão importante objeto, mas tinha que ler o que ele escreveu antes de qualquer pessoa.

Tomou um banho gelado assim que chegou em casa. Tentou, inutilmente, tirar das narinas o nauseabundo odor que o impregnava. Não teve o resultado esperado, mesmo depois da longa ducha. Foi para cama e tirou o bloco de dentro da calça. Pela debilidade da letra do Dino, sabia que ele estava muito mal quando resolveu escrever aquelas anotações. Não era um relato muito grande, um pouco mais de uma página, como ele mesmo já imaginara. Dino devia estar às portas da morte quando pegou da caneta. Começou a ler as últimas palavras do amigo.

"Eu sabia que devia levar até as últimas consequências minha busca pelo autoconhecimento. Fui a muitos lugares, usei muitas substâncias, naturais ou não, e embora isso tenha me ajudado, não me trazia as respostas que eu procurava. Falei com padres, pais-de-santo, gurus e isso ainda não me havia sido suficiente. Busquei da ciência ao misticismo e nada. Aprendi várias verdades, sobre o mundo e sobre os homens, mas elas não eram a minha verdade.

Tive um vislumbre do que poderia ser a resposta para o que eu procurava quando encontrei um documento escrito de uma tribo latina muito antiga. O documento trazia uma receita para uma poção que, diziam os relatos, tinha poderes mágicos. Quando consegui traduzir todos os ingredientes dessa beberagem, resolvi fazer o que seria minha última viagem. Consegui cada erva, cada extrato vegetal, cada elemento da receita no meio da floresta equatorial, entre o Peru e a Bolívia. A promessa para quem bebesse da poção era a de que a verdade sobra a sua natureza passaria a estar em cada fibra do seu corpo, tornando a pessoa finalmente plena.

Fiz a poção e ela teve um efeito alucinógeno sobre mim. O importante foi que finalmente eu descobri, no meio da minha viagem interior, o que fazer. Eu já sabia como absorver toda a "verdade sobre a minha natureza". Sabia exatamente como aproveitar esse conhecimento, que realmente inundava, fisicamente, todo meu corpo. E é fisicamente que devo saborear essa verdade.

Sabendo o que devia fazer, comecei a me preparar. Para evitar a dor que o processo causaria, bastou apenas preparar uma boa quantidade da poção. Além de alucinógena, a infusão era um excelente analgésico. Os procedimentos para estancar uma hemorragia eu já conhecia desde a faculdade. Aliás, os anos na escola de medicina também me foram úteis para obter as ferramentas necessárias para o que eu pretendia. Para evitar que sujasse completamente minha casa, faria a operação na banheira. Esse lugar seria ideal também por ter facilmente, água corrente...
"

Sandro não queria acreditar no que estava lendo. Seria loucura demais, até mesmo para um Dino sob efeito de drogas. Ele, que achava que nada poderia ser pior que a câmara mortuária onde encontrou o amigo, via, horrorizado, que aquilo era apenas o fim de um ritual macabro. A visão do Sandro começou a turvar, conforme ia avançando sua leitura. Ele não conseguia mais ler coerentemente, e ia pulando algumas partes, contra sua vontade.

"...depois de cortar minha perna na altura do joelho e de fazer a completa assepsia do corte, separei minuciosamente toda a carne dos ossos. Essa seria a melhor forma para..."

Sandro não queria mais ler o relato, mas não conseguia parar. O horror que se apossou dele era mais fraco que a mórbida curiosidade. Quase no fim da última página, quase não se conseguia mais entender a letra do Dino, tão fraco era seu traço. Ao chegar no fim do escrito, que não terminava com um ponto final, mas sim com a palavra "fraco" sem a última sílaba, Sandro jogou longe o bloco e deitou sua cabeça no travesseiro, não acreditando no que acabara de ler. Dormiu, mais pelo choque que pelo cansaço.

Ficara desacordado quase um dia inteiro. Acordou com batidas na sua porta. Era Nicola, um amigo comum dele e do Dino. Ele entrou esbaforido pela sala, visivelmente tenso.

- Sandro...Você já soube? O Dino...
- Sei...Eu encontrei o corpo - respondeu Sandro, apático.
- Foi você? A polícia não informou isso pra gente. Isso tudo é horrível! Fizeram a autópsia no Dino. Você não vai acreditar o que encontraram no seu estômago...
- Eu sei o que foi, Nicola...Eu sei....

28.6.03

Sobre o fogo extinto


Eu queria ter um amor calmo, sem as exigências emocionais que as paixões tórridas trazem, sem os "direitos & deveres" dos relacionamentos passionais, sem o desespero que a ausência causa. Mas me foi impossível. Agora estou morto. Irremediavelmente.

Você se foi. E nosso amor flamejante se extinguiu, para você. O amor é máquina que precisa de combustível para sua fornalha, ou ele se apaga. Em algum momento, você acordou e não viu mais as achas de lenha que alimentavam nossa paixão. Assim que você partiu, me deixou aqui, mero amontoado de cinzas.

Agora eu vivo procurando pelos sinais imperceptíveis da nossa antiga fagulha, catando suas gimbas de cigarro em cinzeiros esquecidos, fazendo de tudo por uma só gota de saliva que tenha saído dos seus lábios. Mas não resta nada. Nem o pó das coisas esturricadas.

Nem o calor das brasas adormecidas.

Agora que o fogo se apagou, não tive nem o privilégio da quietude dos cremados ou a tepidez da paz interior. Apenas troquei a fogueira da paixão pelo inferno da saudade.

26.6.03

O Chute


Eu chutei essa cidade. Chutei-lhe a boca cheia de dentes perfeitos, chutei seus lábios famosos, deformando-os, imperceptivelmente é verdade, mas a deformidade que lhe deixo é perene.

Assim como sua marca, em mim, é eterna. A cidade me socou o estômago com toda sua força e vigor. Meu chute foi meramente uma reação à sua violência explícita, sua voracidade implacável. O vomito provocado por tão forte golpe deixou exposto o que havia de pior em mim; o que teve de revelador teve de purificante.

Parto agora da cidade e saio agredindo-a. Não há ressentimentos, contudo. Aprendemos sempre, seja da forma mais sutil ou da mais contundente. O chute que desferi em sua face foi por gratidão.

24.6.03

O dia seguinte


Acordei e o dia
Já era dia
Como todos os dias
Acordei e a vida
Já estava vivida
À revelia
Acordei e só havia
Uma medida
Sorri pro dia
E cortei meus pulsos com doce
ironia

23.6.03

O Egoísta


Nicanor era o sujeito mais egoísta da turma. O caso dele nem era de sempre pensar primeiro nele. Ele só pensava nele. As outras pessoas não tinham a menor importância. Eram meros coadjuvantes, em um mundo em que a única coisa que tinha relevância era o seu próprio umbigo.

– Nicanor, Nicanor...Deixa de ser assim! Quase ninguém mais liga pra você, vai acabar ficando sem amigos – disse certo dia Deodato, um dos poucos que ainda gostavam dele.
– Deodato, amigo meu é dinheiro no bolso! Tô nem aí. Não dependo deles pra nada.
– Nicanor...Todo mundo precisa de amizades. Nenhum homem é uma ilha. Esse seu egoísmo ainda vai te trazer problemas.
– Eu não sou egoísta, Deodato. Eu apenas tenho como prioridade tomar conta dos meus assuntos. E além do mais, por que eu tenho que me preocupar com os outros? Os outros não podem se preocupar com eles mesmos? Eu já tenho muito trabalho cuidando de mim.
– Pô...aí você ainda tá parecendo preguiçoso, além de egoísta.
– Deodato, não encha meu saco!
– Tá bom, tá bom, sem estresse. Mas você não conhece aquela lenda oriental sobre o céu e o inferno? Segundo essa lenda, o céu e o inferno são lugares idênticos. As almas ficam todas em uma cela gigantesca, completamente gradeada. A única coisa que serve de alimento para essas almas é uma montanha de arroz que fica na frente da grande cela. Todo esse arroz fica fora do alcance das almas, mas o criador deu a todas elas palitos, desses de comida japonesa, com os quais eles conseguiam alcançar a comida. E é aí que vem a diferença entre o paraíso e a expiação eternos. No inferno, cada alma tenta pegar os grãos de arroz e colocá-los na própria boca. Mas como os palitos são muito longos, eles não conseguem chegar perto o bastante para comê-los. Essas almas viverão o resto da eternidade com fome. No céu, ao contrário, cada alma que pega seu grão de arroz dá sua porção de comida à alma do seu lado, e assim todos comem e vivem felizes.
– Que merda de história! O que significa e em que se aplica à nossa conversa?
– Não seja burro, Nicanor! Ajudar os outros é vital para uma vida melhor, para quem é ajudado e para quem ajuda. Sozinho, você é fraco. Num time, você é forte.
– Pra começar, meu time sou eu e ponto. Além do mais, detesto arroz puro e preferiria ficar com fome pelo resto da eternidade a me ater a essa dieta ridícula. E outra coisa: se o céu é essa mixórdia de ficar preso passando comida pra boca dos outros pra todo o sempre, dispenso solenemente. Que paraíso mais sem graça!
– Porra, Nicanor, você não entende nada mesmo...

Pois foi passando o tempo, Nicanor ficando cada vez mais isolado e o que é pior, mais feliz. Realmente não sentia falta de companhia. Ele se bastava. E com isso ele foi vendo seu já restrito círculo de amizades definhar até não sobrar mais ninguém. Nem mesmo o Deodato. Seu isolamento, com o passar dos anos, foi mudando seu comportamento, naturalmente. Como não havia pessoa que pudesse avisá-lo da sua alteração, a mudança era imperceptível para ele. Tinha adquirido ojeriza ao desprendimento humano. Qualquer demonstração da fraternidade entre as pessoas o encolerizava. Para ele, toda forma de boa ação tinha por traz alguma má intenção camuflada. Ele tinha se tornado um sociopata em potencial. E para ele, tudo estava normal, se achava até mais lúcido do que nunca. Ele nunca iria imaginar que espécie de problemas essa atitude lhe causaria.

Caminhava Nicanor pela praia num dia chuvoso. Andava rápido, para evitar os pedintes, aos quais tinha particular aversão. Apesar de bonitas, o calçamento em pedras portuguesas das praias cariocas não são muito práticas, e úmidas, se tornam escorregadias. Ao avistar um grupo potencial de crianças que iriam lhe abordar pedindo esmolas, abaixou a cabeça e acelerou o passo. Foi seu erro. As pedras limosas o fizeram escorregar, deixando-o no chão. O que mais irritou Nicanor não foi a queda em si, nem o momento constrangedor por que passara – ele não dava a mínima para opinião alheia – mas sim a pronta ajuda que um rapaz que fazia seu cooper lhe ofereceu. Ao ver Nicanor no chão, a primeira ação do rapaz foi segurar-lhe o braço, ajudando-o a levantar-se. Isso enfureceu sobremaneira Nicanor, que com um safanão se livrou da mão amiga.

– Me largue, moleque! Não preciso da sua ajuda!
– Calma, senhor...Eu só queria ajudá-lo...
– Eu não pedi sua ajuda...

Ao falar isso, Nicanor deu um safanão no rapaz, afastando-o. O garoto caiu, incrédulo, no meio da pequena aglomeração que já se formava. Essa atitude do Nicanor enfureceu os curiosos, que não entenderam sua reação desbaratada.

– Ei!!! O menino só queria ajudar o senhor! Não precisava fazer isso com ele!!! – reclamou uma senhora que acompanhava a cena.
– A senhora fique quieta, ninguém pediu sua opinião!
– O senhor devia ter mais educação! Desrespeitar assim uma senhora pode ser prejudicial ao senhor.

Quem havia dito isso era um homem forte, com quase dois metros de altura. Nicanor já estava completamente descontrolado e, como também era um sujeito com uma boa constituição atlética, não se amedrontou. Deu uma resposta atravessada ao homem forte, que de pronto partiu para um tipo de agressão menos verbal. Os curiosos se afastaram diante das cenas de pancadaria, mas, para surpresa de todos, Nicanor começava a levar a melhor na briga, causando graves lesões ao seu oponente.

Vendo seu defensor apanhando, a senhora que foi ofendida por Nicanor resolveu ajudar, acertando lhe uma bela guardachuvada na cabeça. Nicanor, colérico, acertou um murro no rosto da senhora, que caiu desmaiada no chão. Esse foi o sinal para que os outros curiosos também tomassem partido na confusão, e logicamente não do lado do contumaz egoísta. O rapaz que o ajudou a levantar lhe deu uma rasteira por trás, levando-o ao chão. Caindo de cabeça, Nicanor sentiu que tinha um talho na fronte, que pro seu azar, vertia sangue em abundância. Ele ainda tentou resistir, mas ao vê-lo no chão, o grupo de pessoas o atacou sem piedade, e em pouco tempo ele estava inconsciente, devido à violência dos golpes que sofrera.

A ironia da coisa é que, apesar de ser um ato de vandalismo e brutalidade, Nicanor acabou morrendo por linchamento, a forma menos egoísta de ferir uma pessoa.

16.6.03

Açúcar queimado


Estava prestes a entrar naquela fase da saudade onde até os defeitos da pessoa distante fazem falta. Outro dia desses se pegou com o gosto da calda do pudim de leite que ela fazia. E olha que ela invariavelmente errava e o sabor de açúcar um pouco queimado sempre predominava.

Foi ela quem quis terminar, ele não iria correr mais atrás e estava tudo encerrado, ponto. Mas ali, ouvindo o cd do Sinatra que compraram juntos, era difícil não lembrar dela e de suas manias. Como querer dançar sempre que ele colocava o “ol' blue eyes” no cd player. E o jeito engraçado como ela conduzia a dança, porque ele sempre foi uma nulidade como pé-de-valsa.

A saudade é uma merda!”, pensou nessa hora.

Ele nem sabia o que era pior: se era a saudade em si ou o fato de um cara racional como ele sentir falta de coisas que o incomodavam de forma absoluta. Seu ciúme exagerado, que passava em muito o limite em que ele ficaria lisonjeado ou a irritação provocado pela seu perfeccionismo patológico. Tiveram brigas homéricas por conta disso. E agora ele, um sujeito calmo, totalmente avesso às brigas e discussões inúteis, começava a sentir falta até dos arranca-rabos que tinha com ela.

Viu que sua situação estava ficando insustentável quando mesmo as lembranças das diferenças de gênio entre os dois não eram o bastante para fazer ver que a separação era o melhor para ambos. Próximo do fim, eles já nem conversavam, viviam se falando aos berros. Seguirem caminhos diferentes era o mais correto, todos seriam mais felizes e ainda poderiam manter o pouco de respeito que um nutria pelo outro. Ele não era um desses caras guiados pela paixão. Não que fosse orgulhoso. Só achava que se anular como pessoa por causa de um relacionamento não era uma opção viável. Não acreditava que se podia renunciar a tudo pelo amor. Esse tipo de coisa só acontece em músicas bregas e filmes melados.

Então por que diabos ele não parava de pensar nela? Por que cogitava – loucura! – ligar para ela?

Largou o Sinatra no meio de “Nevertheless” e foi até a cozinha comer algo, mais para espairecer que pela fome. Abriu a geladeira e viu lá, ainda intacto, o pudim de leite feito pela sua mãe, que por pena do filhinho voltou a cozinhar para ele. Ele resplandecia, tinha a textura e as cores exatas, como numa foto de mostruário. Tirou uma fatia e comeu um pedaço. Abandonou o pudim na primeira colherada. Estava perfeito. Perfeito demais.

13.6.03

Inseparáveis

Depois de que podia se lembrar, Esaú sempre detestou seu irmão, Jacó. Queria, se possível, ficar longe um bom tempo. Infelizmente para ambos – para ambos mesmo porque Esaú fazia da vida de Jacó um inferno – era impossível a separação definitiva: eles eram gêmeos siameses.

Lógico que a razão estava com Esaú. Pelo menos ele pensava assim. Se achava desfavorecido em relação ao irmão. Era até engraçado pensar que seus pais, Esdras e Josefina, tivessem um preferido entre eles. Mesmo que isso fosse possível, como dar algo a um sem que outro soubesse e pedisse o mesmo? Para o azar de Jacó, Esaú nunca primou pelo bom senso.

Jacó imaginava que tudo havia começado quando eles foram manchete no jornal da pequena cidade em que nasceram. Na foto, recém-nascidos ainda, Jacó saíra em destaque, pois estava acordado. Esaú estava dormindo e parcialmente coberto. Sempre perguntavam quem era o que estava acordado, diziam que parecia ser o mais esperto. A matéria, emoldurada e em lugar de destaque na parede da sala, era odienta para Esaú. Se ele tivesse a chance, já teria estilhaçado o quadro há muito tempo.

Esaú fazia de tudo para apoquentar Jacó. Dormia depois dele, para esbofetear-lhe a cara, destratava as visitas que o elogiavam, começou a beber e fumar escondido só porque fazia mal ao irmão. Jacó não contava nada aos seus pais, apesar do tormento que sua vida se tornou. Na verdade, tinha medo do Esaú. Achava-o louco, temia o que ele podia fazer com ambos.

E parece que, algum tempo depois, Esaú realmente enlouqueceu. Os tormentos que aplicava a Jacó estavam recrudescendo, se tornando mais cruéis. Para afligir o irmão, Esaú não estava mais se preocupando mais nem com sua própria integridade física e moral. Tomava drogas que deixavam os dois alucinados, rasgava a parte das roupas que cabiam a Jacó, deixando as suas intactas. E Jacó persistia em seu silêncio. Era tão absurdo o estado em que andavam que seus pais começaram a pensar que os dois estavam enlouquecendo. Nunca imaginariam que Jacó não pudesse fazer parte das insanidades que faziam. Sempre acharam Jacó ajuizado. Era impossível que ele se permitisse a tamanho descalabro sem sua conivência.

Um dia, Esdras e Josefina esperaram Esaú dormir e foram conversar com Jacó. Queriam saber o que estava acontecendo, se eles podiam ajudar de alguma forma, mesmo que fosse buscando um auxílio externo. Entendiam que a vida deles não era normal, que com na sua condição aberrante, eles eram mais sujeitos a sofrer danos psicológicos. Compreendiam o provável desespero que um rapaz da idade dele devia estar passando por não ter uma vida normal. E se ele, Jacó, que era o arrimo moral dos amalgamados irmãos estava tendo problemas, isso era muito preocupante. Seus pais perguntaram se eles podiam fazer algo para acabar com a aflição dos dois. Jacó permaneceu em silêncio durante alguns momentos e depois perguntou fez apenas uma pergunta.

– Existe a possibilidade de uma intervenção cirúrgica?
– Não, filho...Infelizmente não. Vocês dividem órgãos vitais.
– Entendo.

Depois disso, Jacó virou o rosto e dormiu, a cabeça no ombro que dividia com seu irmão.

Nos dias seguintes, Esaú continuou com sua série de martírios ao irmão. Mas ele notou uma diferença no comportamento de Jacó. Agora ele nem reclamava. Estava alheio a tudo, não se importava com nada que Esaú fizesse. Inclusive não disse palavra quando viu que o irmão estava pegando a seringa, se preparando para mais uma dose de heroína, seu mais novo vício. Esaú achou estranho. As recentes doses da droga os deixavam letárgicos, coisa que Jacó detestava. O mais incrível foi que ele até ajudou a amarrar a borracha que vedaria a corrente sanguínea de ambos. Esaú pensou que finalmente havia conseguido deixar Jacó viciado em algo, havia conspurcado seu virtuoso irmão, de forma indelével.

A onda dessa dose consentida foi a melhor que Esaú já teve. Ironicamente, nunca se sentiu tão próximo do irmão, os dois mergulhados num mar de torpor calmo, repleto de sonhos de liberdade para ambos. A sensação de que estava se separando do irmão–fardo era tão intensa que poderia se dizer que era real, física. Até a dor que de repente começou a fazer parte desse ritual lisérgico de libertação era bem vinda. Se fosse para ser uma pessoa só, valia o esforço.


Josefina acordou no dia seguinte e foi olhar os filhos. Deparou-se com uma cena dantesca. Seus dois filhos, dois como nunca foram antes, mergulhados numa poça de sangue, meio divididos, meio unidos. Um machado, fincado na altura da barriga de ambos, os havia quase separado por inteiro.

12.6.03

Istas


– Bom dia.
– Por que?
– Ahn?
– É...por que “bom dia?
– Como assim, “por que bom dia?
– Qual é o seu problema? Foi uma pergunta simples. Me dê uma razão pra esse ser um bom dia.
– Bom...O dia está bonito....
– Fraca essa. Além de beleza ser um conceito subjetivo, a “beleza” do dia não altera em nada a situação do mundo. É por essas e outras que eu nunca digo “bom dia”.
– Ah, já sei. Você é existencialista.
– Não. Sou realista.
– Sei não... Tá mais com cara de fatalista.
– E não é a melhor forma de ver a vida?
– Não. Eu prefiro ser otimista....
– Nos dias de hoje, ser um otimista é o mesmo que ser um entreguista. Não converso com ninguém que não seja no mínimo um reformista.
– Concordo que a situação mundial não é das melhores. Mas não adianta ter uma atitude derrotista.
– Derrotista não! Acredito numa melhora, mas é preciso fazer algo. Lógico que para isso é necessário que surja alguém que faça uma boa análise da nossa realidade...
– E quem seria esse analista?
– Não sou futurista! Como vou saber quem vai ser esse cara?
– Acho que as coisas estão melhorando, sinceramente. Confio no governo petista.
– Mesmo? Pensei que, com esse papo de otimismo, você fosse mais um neo-liberal.
– Nada...sou é socialista.
– Pois não parece...Hoje estou com tendências anarquistas, pra te ser sincero. Já fui comunista leninista–trotkista, mas agora são outros tempos.
– Com certeza...e o comunismo mudou muito, não? Desde o regime do Stalin não dá pra confiar nos vermelhinhos...Ele era um fascista.
– Isso é. Pode se ser comunista, socialista ou mesmo anarquista....mas sempre mantendo o ideal democrata.
– Democrata?
– É.
– Ah...pode ser...Mas acho esse conceito muito grego demais. É tão clacissista!

7.6.03

Visita noturna


Eiras despertou no meio da noite percebendo a inevitabilidade da sua morte e, pior, como era supérflua a sua vida. E como não tinha nem teria nada de muito mais interessante para fazer com ela, pensou, com seus botões ainda meio sonados, que a morte até que lhe cairia bem.

Momentos depois tocaram a campainha. Achou estranho, pensou que ainda estava sonhando ou algo do gênero. Não tinha amigos que chegassem à sua casa uma hora dessas. Aliás, nem tinha amigos que chegassem a lugar algum a qualquer hora. Não os tinha de todo, e mesmo que os tivesse, quem quer que batesse em sua porta às 3 da manhã seria sumariamente cortado do seu círculo de relações.

Abriu a porta e viu um sujeito pálido que lhe era totalmente estranho, impecavelmente vestido com um terno preto de fino corte. Tinha uma expressão mista de profundo tédio e cansaço. Foi logo estendendo a mão, se apresentando.

– Olá. Você é o Eiras, não? Você me chamou, eu apareci – contrastando com a jovialidade das palavras ditas, foi o cumprimento menos entusiasmado que já tinha recebido. Mas isso não era o mais estranho. O que o intrigava era que nunca tinha visto um entregador de pizza tão bem vestido. Isso sem levar em consideração também o fato dele não estar trazendo a pizza que ele não havia pedido.

– Como assim, “eu chamei”? O porteiro deixou você subir? Como você sabe meu nome? Você sabe que horas são, meu chapa?

– São três horas, sete minutos e 45 segundos, levando-se em consideração o fuso horário da região, não precisei falar com o porteiro e você me chamou ainda há pouco, quando acordou – respondeu, ignorando o tom irritado do Eiras, o misterioso personagem – Eu sou a Morte.

Foi o bastante para a pouca paciência do Eiras. Bateu a porta na cara do desconhecido louco e voltou para continuar seu sono. Chegando ao quarto, para seu assombro, o maluco estava sentado em sua cama.

– Mas como...?!?!?!
– Não gosto de fazer esses truques. Acho de um exibicionismo estéril, incongruente com a formalidade do meu trabalho. Mas você não me deu opção. E você não foi muito gentil. Fui educado, atendi o seu chamado numa hora indigna dessas e você me bate com a porta na cara.
– Como você entrou aqui?!?!?!
– Isso é fácil, mas não vem ao caso. Você me chamou, estou aqui. Vim te buscar.
– Buscar?!?!? Quem diabos é você, afinal?
– Sorte sua eu não ser o diabo. Quando um dos emissários dele se dispõe a buscar alguém sem intermediários, pode ter certeza que a situação dela não é das melhores. Digamos que ele passará por uns tempos infernais – ao falar isso, deu uma risada – Desculpe a piada nesse momento impróprio. Eiras, eu sou a Morte, já disse.

– A Morte?!?!?!
– Isso. Por que? Não acredita? Esperava um monte de ossos cobertos com uma túnica ridícula e uma foice? Eiras, Eiras, Eiras...essa visão de mim é muito antiquada. Foi criada pra assustar os servos na idade média. Estamos no século XXI...

Eiras estava aturdido. Não sabia se ainda estava sonhando ou se tinha enlouquecido de vez. Sentou a lado do sujeito de preto e resolveu ver até onde iria esse jogo estranho.

– Tá bom. Digamos que você seja realmente “A” Morte. Por que eu? Quando foi que eu te chamei, afinal?
– Você acabou de me invocar – é um termo meio rebuscado, mas é o correto – quando acordou percebendo a inevitabilidade da sua morte e como era supérflua a sua vida.
– Porra!!! E você aparece assim, só porque eu pensei essa merda? Você leva tudo sempre tão ao pé da letra?!?!
– Depende...De qualquer forma
– E se você tivesse que aparecer toda vez que alguém falar “se inveja matasse, eu cairia durinho agora!”, por exemplo? Ou quando um cara fala teve vontade de morrer quando viu seu time perder o campeonato? Você não ia parar em casa nunca! Aliás, você tem uma casa?
– Tenho, mas você está saindo do foco da nossa conversa. A questão é a vontade da pessoa. Eu apareço quando há convicção no seu desejo de morrer. Você estava convicto quando pensou em passar dessa pra melhor.
– Hmmm....e é uma melhor mesmo?
– Pode ser que sim, pode ser que não. Mas você está pulando as etapas do processo. Quando você acordou no meio da madrugada, achando sua vida uma porcaria, você teve o que chamamos de ....
– Quem “chamamos”???
– Você está novamente fugindo do assunto, Eiras. Você teve o que chamamos de clarificação da condição de vida (CCV). Costumamos levar em consideração todo pedido – invocação – decorrente de um CCV.
– Mas foi sem querer!!! Eu não quero morrer, catzo!!!
– Tem certeza? Um CCV não falha...
– Eu estava dormindo! Eu não estava pensando direito!!! Eu, eu....
– Olha, Eiras. Eu gostei de você. Vou te dar uma chance pra pensar melhor. Não devia, mas vou te dar essa chance. Vai mesmo renunciar ao seu CCV? Eles são raríssimos. E só pessoas muito lúcidas conseguem tê-los...

A conversa surreal com a figura mitológica sentada ao seu lado ainda não parecia totalmente real para Eiras. Na manhã seguinte ninguém acreditaria, quando ele contasse a história para....

Para quem?

Eiras era um solitário. Trabalhava em casa – um emprego desestimulante e mal remunerado –, mal saía para comprar seus víveres. Não tinha ninguém. Deu uma olhada no seu exíguo apartamento (sua “piquenete”, segundo o próprio, pois era menor que um quitinete), nos seus míseros pertences, na sua falta de perspectivas. Aquela que morre por último, a tal de esperança, para ele era uma natimorta. E o pior é que ele nunca sentiu falta dela.

Sua vida, no fim das contas, não era nada. Viver ou morrer realmente não faria a menor diferença. Eiras sempre imaginou o momento em que morreria. Seria como aquelas mortes de cinema, quando o futuro defunto se lembra de todos os momentos da sua vida em uma fração de segundos. E agora, ali com a Morte em pessoa do seu lado, ele não conseguia lembrar de nada que importasse. Se ele tivesse que usar a tal “fração de segundos” pra ver novamente o que tinha vivido, ele não precisaria da metade desse tempo. Sua vida foi muito breve, não pelos anos vividos, mas pelo que ele deixou de viver.

– E então Eiras?
– Vamos....– anuiu Eiras, menos triste do que ele imaginava que deveria ficar.
– É a decisão certa.
– É...Eu sei. Ahn, só uma coisa. Como vai ser?
– Basta me acompanhar. Vai ser rápido.
– Isso. Seja breve. Estou acostumado com isso....

31.5.03

Pelica


Sou mulher e você se aproveita da minha pressuposta fragilidade.
Você me agride.
Você me fere a cada conquista efêmera sua, tão elaboradas, que só servem para alardear sua colossal empáfia diante dos amigos do seu clã masculino. Você não imagina o quanto isso me mina, como vejo minha vida minguar a cada aventura sua.
Mas você é o homem.
E por isso, você comanda, você manda e desmanda. Você é o senhor de um castelo que deveria ser partilhado e não dominado. Não esperava por esse amor vassalo.
E nas noites em que você dorme em camas desconhecidas e baratas, eu não durmo. Eu não vivo, fico suspensa num labirinto de dúvidas. E mesmo assim, insisto em procurar a saída.
Eu sou mulher.
E tenho a pecha de fraca. Você ignora que fraqueza maior é a sua covardia. Covardia ao me machucar, até fisicamente. Mas eu quero a volta.
Me bater é fácil. Você é o homem, o macho forte que tudo pode, que tudo faz. Mas não quero mais essas derrotas impostas. Quero a chance de lutar. E isso, só você pode me ceder.
Me bata. Mas quero o desafio do revide.

Só me bata com luvas de pelica.

29.5.03

A carta de apresentação


Jonas nunca foi brilhante. Era novo, e nos seus tenros e mal vividos 19 anos ainda era o que se podia chamar de “marinheiro de primeira viagem” nessa coisa de viver. Não que isso o incomodasse. Com os pais que tinha – donos de uma conta bancária mais polpuda que a de alguns países africanos – não tinha mesmo com o que se preocupar. Um dia em que sua rebeldia sem causa estava mais atacada, pegou o dinheiro da sua mesada e comprou um apartamento. Decidiu começar vida nova, independente, sem depender dos seus pais para nada. Nada, além do sustento, claro.

A primeira coisa que ele precisava era, óbvio, alguém que o alimentasse, vestisse e mantivesse seu apartamento habitável. O anúncio procurando uma diarista foi de uma eficiência absurda. Jonas não esperava que o retorno fosse tão imediato. No seu parco entender, ele não imaginava que domésticas lessem jornais. Para algumas das candidatas à vaga, ele até perguntou se tinham esse hábito. Algumas ficaram ofendidas com a dúvida. Ele não era das pessoas mais delicadas, e sutileza não era umas das suas qualidades mais evidentes.

– Então você lê jornais? Surpreendente! Mas só deve ler os classificados, não? – e fazia uma cara de pasmo, o que no final das contas era o que mais ofendia as candidatas.

Depois de quatro ou cinco respostas meio tortas, Jonas se mancou a parou com a pergunta. Nem entendia o porque da revolta das moças. “Pobres, e ainda por cima mulheres, por que diabos eu vou imaginar que elas lêem?”, pensava.

Caras leitoras, não levem a mal nosso amigo. Ele é um idiota completo. Fazer o que? Culpa dos pais, dele é que não seria, lógico.

A demora na escolha – movida pela deturpada impressão do nosso amigo idiota de que ele arranjaria uma empregada jeitosinha, bem no estilo das que ele, e as vezes o pai, estupravam no quartinho da sua antiga casa – acabou assim que Jurema apareceu na sua porta, por volta das sete da noite.

Jurema era uma mulata de meia idade, de seios e ancas fartas e de uma robustez de causar inveja a uma vaca holandesa (a analogia foi involuntária). Chegou já se aboletando, dizendo que não iria ser entrevistada: o cargo já era dela. Viera por recomendação de um amigo do pai do Jonas, e o garoto, que não estava acostumado a sofrer imposturas de serviçais, ficou chocado com a empáfia daquela mulher. Gostou dela na hora, e queria ver até onde ela levaria essa afronta.

– Toma minha carta de apresentação.

“A estúpida criatura nem sabe o que são suas referências!”, pensou Jonas ao pegar o envelope jogado no seu colo. Abriu e viu onde ela havia trabalhado. Achou engraçado. Jurema havia trabalhado na casa de vários amigos dele, tão “independentes” como ele. Ricardo Toledo, Paulo de Moura e Castro, Francisco Toledo e Toledo e vários outros da sua turminha de bon vivants, que ele não via fazia tempo, não sabia bem porque. Mas o que o fez decidir pela contratação foi o último parágrafo da carta:
“Ótima no recondicionamento de conduta interpessoal”.

Não fazia idéia do que significava isso. Mas Jurema era uma mulher, no mínimo, interessante, e deveria diverti-lo durante algumas semanas. E claro, ela também cozinharia para ele e lavaria suas cuecas, o que era mais importante.

Jurema se acomodou no seu quarto de empregada e foi direto para cozinha, preparar o jantar. Jonas gostou da eficiência da mulher. Pensou que, apesar de não haver a menor possibilidade de sexo entre eles, poderia se acostumar com a criada. Para começar, ele pediu que a empregada lhe preparasse uma fritada de cogumelos com creme de espinafre e arroz colorido.

– Você não se mete no meu trabalho, garoto. Vai comer o que eu preparar e lamber o beiços.

A cara de abobado de Jonas depois dessa descompostura já valeria um mês de ordenado para Jurema. Ele, como ela já imaginava, não reclamou. Quando Jonas conseguiu abandonar sua cara boquiaberta e ia falar algo, Jurema nem deu tempo para o rapaz reagir.

– E saia AGORA da minha cozinha.

Ele saiu. Jonas não sabia se despedia ela agora ou se esperava a comida. Estava com fome e cansado de comer em restaurantes. Decidiu demitir a negra assim que comesse.

Antes houvesse demitido na hora. Quando a negra o chamou para sala de jantar, Jonas encontrou seu prato já pronto, fumegando na mesa. O prato tinha uma aparência grotesca, molenga. Era uma carne com uma cor horrenda, coberta com uma repartições quadriculadas. Jonas não conseguia imaginar de que espécie de animal teria saído uma iguaria tão repugnante, isso se aquilo era mesmo animal. Ou se era mesmo do planeta Terra.

– Que diabos é isso, mulher?!?!?
– Dobradinha. Bucho, para os íntimos. E meu nome é Jurema. Já tinha te dito isso, não?
– Olha, pouco me importa o seu nome. E não existe a menor possibilidade de eu colocar essa coisa nojenta na minha boca.
– Se você chamar novamente algo que eu tenha feito para você comer de nojenta, eu vou te dar um corretivo bem merecido.
– Nem vou levar em consideração essa sua frase. E pode ir retirando...

Antes que Jonas terminasse a frase, levou um safanão no meio da cara. Ele não imaginava que a mão da Jurema pudesse ser tão pesada.

– Eu não vou sair de lugar nenhum e você vai comer sua comida toda. E se você limpar o prato, ganha uma sobremesa deliciosa.

Jonas nunca foi muito afeito a agressões físicas. O primeiro pensamento que teve foi o de ligar pro seu pai, reclamando. Mas não, ele agora era independente, tinha que cuidar de si mesmo, sem depender de favores paternos. Ele resolveria a situação: comeria o prato inteiro, com talheres, se fosse necessário.

– Muito bem, garoto. Vai pro seu quarto que já levo sua sobremesa.

Jonas estava atordoado. O que fazer? Ligar para polícia e falar que estava em um cativeiro, que por um acaso era sua própria casa, pois foi sequestrado pela sua empregada? Contratar uns capangas para tirar Jurema a força da sua casa? Ele duvidava que Jurema se intimidasse com qualquer tipo de capanga. Se aparecessem uns 15 caras lá para levá-la de lá, ela provavelmente empurraria dobradinha goela abaixo de todos.

Ele ainda estava pensando no que poderia fazer para se livrar da mulher quando Jurema abre sua porta. Usava um roupão esfarrapado e encardido, que aparentava anos continuados de uso.

– Trouxe sua sobremesa.
– E onde está?
– Aqui.

Jurema abriu seu roupão, mostrando toda a pujança do seu enorme corpanzil. O choque da visão inusitada imobilizou Jonas pelos segundos que seriam os necessários para uma fuga desesperada. Foi o que Jurema precisou para se atirar em cima do pobre rapaz, com uma velocidade incompatível com sua massa corporal.

O estado de torpor estupefato do Jonas continuou durante as horas em que Jurema desfrutou – essa é a melhor definição – dele. E o inesperado da coisa foi que, apesar de todo seu tamanho, muito diferente das modelos-atrizes esqueléticas que formavam o cardápio sexual do mimado garoto, Jurema agradou Jonas. As carnes abundantes e voluptuosas da empregada, o cheiro cru de gente do povo e carícias que ele nem imaginava que poderiam existir conquistaram o rapaz.

No dia seguinte, Jonas acordou exausto e encontrou na mesa da cozinha um lauto café da manhã. Brevidades, Tapioca, cuzcuz de milho, bolo de fubá, suco de graviola. Ele não conhecia nada daquilo, mas com a fome que estava e com o incidente da dobradinha na noite anterior, preferiu comer tudo.

– Tá com fome, menino? O que você ontem fez para ter todo esse apetite?

Depois da inconveniente piadinha, Jurema soltou uma gargalhada à altura do seu enorme porte. Sua boca escancarada mostrava todos os seus dentes brancos, que pareciam maiores do que já eram no meio daquele sorriso descomunal. Jonas estava completamente sem graça, o que não impediu que tivesse uma ereção ao ver os grandes seios balançando no ritmo da gargalhada.

No almoço, Jonas foi obrigado a comer frango com quiabo. Depois, como no jantar, a sobremesa. No jantar seguinte, o prato foi mocotó, seguido de mais sobremesa. E assim foi, por dias seguidos. Jonas comeu coisas que nunca comeria sem uma arma na cabeça e, mais intrigante, começava a gostar da exótica culinária. Angu com miúdos, rabada, jiló, pé de porco, caldo de inhame. Todas as refeições lhe davam direito a sobremesa, óbvio.

Jonas foi ficando mais forte, ganhando cores saudáveis. A convivência com Jurema mudou até seus hábitos. Era menos dependente – quando Jurema estava muito ocupada, ele era obrigado por ela a ajudá-la – vinha perdendo suas manias aos poucos. Até seu vocabulário mudou um pouco, perdendo toda a afetação que anos de educação esmerada haviam criado. Escutava os conselhos da Jurema e os seguia, na medida do possível. Ele chegou ao cumulo de , vejam vocês, procurar um emprego. E conseguiu, em pouco tempo. A influência da família ajudou, claro, mas Jonas também tinha méritos na conquista. Não era mais o adolescente retardado que era quando foi brincar de casinha.

Um dia Jonas encontrou as malas da Jurema arrumadas, no corredor. Foi até a cozinha e encontrou seu desejum na mesa e a mulata lavando a louça, calmamente.

– Por que as malas? Vai viajar sem me avisar, nega? – Já tinham intimidade bastante para trocarem apelidos.
– Não, estou indo embora, moleque.
– Como assim, embora?!?!? Aconteceu alguma coisa?
– Meu trabalho aqui acabou. Só isso. Você já sabe se virar sozinho. Virou um homenzinho já – respondeu e soltou sua famosa gargalhada.
– E quem disse que eu quero me virar sozinho, mulher?!?! Quem vai cozinhar pra mim, lavar minhas roupas, fazer aquela broa de milho que eu adoro? É por causa de dinheiro? Recebeu uma proposta melhor?
– Não é grana. E pra sua broa, você arranja alguém, moleque. Tenho que ajudar outras pessoas que precisam mais do que você.

Jonas não estava entendendo a decisão. Então Jurema explicou tudo. Ela foi mandada pelo pai dele para acabar com o jeito mimado e infantil dele e essa era a especialidade dela. Daí o “Ótima no recondicionamento de conduta interpessoal” na carta de apresentação dela. Jurema já tinha feito o mesmo que fez por Jonas para várias pessoas, inclusive os amigos dele que estavam nas suas referências. Aí Jonas entendeu o sumiço da “tchurma” de playboys que viviam aprontando pela cidade. Jurema os havia tornado homens. Não precisavam mais dos joguinhos infantis que os divertiam tanto antigamente.

A vontade que Jonas teve foi de implorar para que Jurema ficasse. Mas compreendeu que ela não era mais necessária ali. E essa renúncia foi uma das provas que Jurema teve de que seu moleque realmente havia crescido.

– Posso te pedir só mais uma coisa, Nega?
– Pode, moleque...O que você quer?
– Me faz o almoço de hoje?

27.5.03

O banquete


Vem. Vem depressa, que o tempo urge. Vem, mas vem logo, que tenho fome.
Sirva a mesa. Vamos nos servir, vamos nos alimentar um ao outro, um do outro. Vamos trocar o gastronômico pelo fisiológico. Nosso apetite é o mesmo. E não há melhor iguaria.

Termos beijos como entrada, seguido de coquetéis de saliva e uma suculenta salada de línguas. Nessa hora, já estaremos com o gosto um do outro em nossas bocas, e esses aperitivos aumentarão a nossa fome, então já estaremos sedentos por provar o resto do banquete.

E famintos, teremos abraços flambados na paixão e carícias com molho picante, que serão consumidos com avidez. E, diferente dos jantares convencionais, quanto mais comemos, com mais fome ficamos. E o prato principal...ah, o prato principal...

Apesar de famintos, nos atiramos a ele com calma. Degustamos cada fração do seu sabor e sentimos exatamente cada gosto, cada cheiro, cada textura com precisão. Não temos pressa, nem podemos dizer quem come – o que ou quem –, pois temos a mesma fome.

23.5.03

Teologia da birita


Desde os primeiros fermentados no antigo Egito.
Desde as índias andinas que mastigavam a semente, produzindo o sagrado extrato.
Desde os tonéis que maturavam a cevada e o malte, com divina paciência.
Homens sempre beberam; aprenderam com suas divindades imemoriais a apreciar a catarse provocada pelos compostos etílicos. Sabem dos seus poderes libertários, e – porque não? – reveladores.
Deus deu a matéria prima: a cana de açúcar, a cevada, o malte, a uva, as ervas, o arroz;
Deu-nos também o engenho para criar o néctar que nos aproxima a Ele; Nos aproxima sim, posto que ao bebermos, podemos tudo. Ou quase tudo.
A bebida não é uma religião, pois a transcende; A bebida é sagrada
O vinho, transubstanciado, é o próprio sangue de Cristo: é preciso maior prova da sua sacralidade?

Não considerem o ébrio um fraco; o momento da embriaguez é um momento de iluminação.


21.5.03

Pensamento nu


Para ter a mente livre. Para ter a mente livre de obstáculos. Para ter a mente livre de obstáculos que amarrem seus braços. Para ter a mente livre de obstáculos que amarrem seus braços e travem a sua mente. Para ter a mente livre de obstáculos que amarrem seus braços e travem a sua mente deixando você sempre a um passo.

De onde deveria estar.

Não importa o lugar. Não importa o lugar no fim das contas. Não importa o lugar no fim das contas quando o que importa é estar. Não importa o lugar no fim das contas quando o que importa é estar consigo mesmo. Não importa o lugar no fim das contas quando o que importa é estar consigo mesmo e saber qual á única pergunta a ser feita.

Mudar de lugar ou mudar o lugar?

Chega de amarras. Chega de amarras para você. Chega de amarras para você e chega de armar amarras. Chega de amarras para você e chega de armar amarras para o mundo que você quer.

Desnude seu pensamento.

19.5.03

A revista


Ela desligou o som eletrônico que urrava no pequeno som portátil do escritório dele sem a menor cerimônia. Ela queria – e isso era o terror para ele – discutir a relação. Logo naquele dia, que ele tinha que entregar o conto na redação, aquele conto que estava empacado há semanas na sua cabeça.

– Julio, nós precisamos conversar...
– Tem que ser agora, Fátima? Tenho que entregar o conto hoje. E ele ainda não está nem perto de terminar.
– É, seu “conto” – ela colocou aquele tom de desprezo na palavra que era sua marca registrada – pode não estar...Já o nosso relacionamento.
– O que foi agora, Fafá?

Ele usou o tom condescendente que era sua marca registrada e que sempre a tirava do sério. Mas ele nunca usava esse tom intencionalmente. Ou, pelo menos, nunca assumia a intenção. Ela percebeu o tom, viu a cara dele de cansaço e quase saiu da sala sem dizer nada. Suas malas já estavam prontas mesmo, era só ela sair.

– Julio, eu vou embora.
– E dessa vez qual é o motivo?
– Você sabe qual é o motivo...E não fale comigo nesse tom...
– Desculpe, não foi minha intenção. Fafá...se eu soubesse qual é o motivo, eu não perguntaria. Detesto perguntas retóricas, você sabe disso.
– Você ainda não percebeu que você piorou muito?
– Piorei de que, Fátima?
– Dos seus surtos psicóticos....
– Surtos?
– Isso...Desde que começou a escrever pra essa revista...
– Ah...essa história...
– Isso, “essa história mesmo. Você fez de novo...
– Fiz de novo o que?
– Confundiu nossa vida com o que você escreve.
– Sério? Quando eu fiz isso?

A calma dele ao falar com ela, a cara de quem tem a eterna paciência, de quem não pode estar errado, estavam a deixando louca. E ele estava realmente ficando louco. Desde que fora convidado a ter uma coluna naquela revista surrealista, ele passava dias bolando seus contos, que tinha que entregar a cada 15 dias. Essa rotina aos poucos foi alterando seu modo de agir. Ficava dias alheio a tudo e, quando saía do seu transe, falava e fazia coisas sem sentido como se fosse a coisa mais normal do mundo. Às vezes, até discutia com ela por não entender do que ele falava. Tudo ficava claro quando chegava o exemplar da revista em casa. As situações sem nexo que ele tanto falava estavam todas em seus contos. Seus surtos duravam do dia em que ele terminava os contos até a revista chegar às suas mãos. A paz só existia enquanto ele ainda escrevia os textos. Quando ele colocava o ponto final no que escrevia, surtava novamente.

Como no dia em que ele começou a chamá-la de Maria Antonieta. Ela no início achou engraçado, só pensou que ele estava mais excêntrico que de costume. Para sua sorte, a revista chegou com um conto escrito por ele sobre a Bastilha dois dias antes de chegar uma encomenda na casa deles: uma mini-guilhotina.
Nessa fase ela ainda achava tudo engraçado. Sabia que ele era brincalhão e suportava seus trotes. Ele já ficou uma semana se esgueirando pela casa, e quando ela se aproximava, ele fugia, gritando “cobra, cobra!!!”. Na edição seguinte, a heroína do seu conto tinha o poder de se transformar numa víbora.

A gota d´água foi essa semana. Não foi algo ultrajante como pintar todas as roupas dela de roxo – edição número 17 – ou irritante como quando tentou convencê-la por três dias a conviver com uma gaiola com 23 corvos sem penas dentro de casa (edição 22). As maluquices dele, até aquele dia, estavam sempre restritas ao recesso do lar de ambos. Agora, espalhar pelo condomínio que ela era lésbica e que no fim das várias noites de tórridas orgias ela fazia rituais extravagantes com as virgens que arranjava já era demais. Todos no seu prédio a olhavam com olhares ora de ódio, ora de pena. E ele ainda tivera a coragem de dizer que era obrigado a participar dos bacanais. Foi essa afronta absurda que seria a justificativa para que ela o abandonasse.

– Como você pode ter tido coragem, Julio? Aturei muito tempo suas maluquices. Mas você me desrespeitou demais agora. Não posso mais ficar no mesmo teto que você. Você foi longe demais. Como pode ter coragem de falar pro prédio todo que eu sou uma lésbica pagã?
– Você se preocupa muito com o que dizem por aí...
– E você acha isso estranho, não? Inventar as suas sandices é que é muito normal...
– Não sei porque isso te incomoda tanto...Não deveria.
– Você está mesmo louco, não, Julio?
– Nunca estive tão lúcido, Fafá.
– É mesmo? E como você explica essa história absurda que você inventou de mim? E dizer ainda por cima que eu te obrigo a participar dos “rituais”...É muita cara de pau!!!
– Como você sabe que nunca fizemos aquilo?
– Aquilo o que, Julio?
– As orgias pagãs? Os rituais?
– Como assim, Julio? Pirou de vez?
– É isso mesmo, Fafá...”A vida imita a arte”, se esqueceu? Você pode afirmar com certeza que nunca fez um ritual satânico-lésbico?
– Deus! Vou chamar uma ambulância!!! Você precisa ser internado já!
– Fátima...a vida não tem a menor graça. O que conta é a arte. Sem ela, nossas vidas são estéreis. Se eu invento novas realidades e mundos, você deveria agradecer por te incluir neles.
– Não é possível falar com você, Julio...Você ensandeceu de vez! Mas tenha certeza de uma coisa: eu não vou ficar aqui vendo você se destruindo desse jeito. Se você melhorar ou precisar de mim, sabe meu telefone.

Ela foi até o quarto e pegou suas malas. Voltou até a sala e viu que ele continuava imóvel, olhando o monitor, completamente absorto pelo seu novo conto. Ela não queria saber o que viria nesse próximo texto. Iria embora desse mundo louco criado por ele antes que sofresse mais. Abriu a porta da sala e antes de partir olhou para trás, para ver se podia identificar ainda alguma fagulha de sanidade nele.
– Julio...Estou indo. Você não tem nada pra me dizer?
– Fafá...eu te amo, mas não posso te impedir. As forças em jogo são muito maiores que eu, você ou nosso casamento. “ars longa, vita brevis”...Nós não temos importância nesse jogo.
– Você fez a sua escolha, Julio. Estou indo.

Ela fechou a porta atrás de si e se foi. Enquanto descia pelo elevador social, o porteiro subia pelo de serviço. Trazia para ele o número 34 da revista. O conto dele nessa edição começava com a saída intempestiva de casa da personagem principal, depois de anos de um casamento feliz.

13.5.03

Já fez a lição de casa?


A lição de casa hoje é fazer a revolução
A lição de casa hoje é chutar o mundo janela afora
A lição de casa hoje é não desistir

A lição de casa hoje é disparar contra a guerra
A lição de casa hoje é quebrar as carteiras do colégio
A lição de casa hoje é: não existem mais escolas

A lição de casa hoje é correr o mundo
A lição de casa hoje é fazer o que se quer
A lição de casa hoje é querer o que se faz

E quando todos os alunos forem bem
E tirarem a nota máxima na matéria
Jogaremos todos os conceitos pelo chão
E poderemos finalmente passar de ano com méritos

12.5.03

Se vira, amigo...


Vai. Agora, se vira. Segue seu caminho sozinho. Tente não depender de ninguém uma vez na sua vida. Desde sua concepção, nunca fez nada com suas próprias pernas. Dependeu daquele espermatozoide que era o único que poderia te formar chegar primeiro naquele óvulo que também estava ali por acaso, pra sua sorte. Nove meses no ventre materno com comida, sombra e água fresca. Mamãe e papai te pajeando até você se achar suficiente esperto para fazer somente o que eles não queriam que você fizesse. E mesmo assim, nessa época em que você se comprazia em trazer o desgosto para aqueles que te davam boa vida, você ainda assim dependia da acolhedora mão de alguém para seguir vivendo.

Para agora de contar com a sorte, sua ou alheia. Chega de desculpas para sua preguiça em ser alguém. Não mais “a questão estava mal formulada”, nem “o emprego não era mesmo tão bom assim” ou “se não fosse a maldita trave”. Se vira. Ganhe da sorte, ganhe do azar, ganhe das macumbas que fazem pra você. Ninguém está dizendo que será fácil. Mas ser alguém que conta é o mínimo que esperam de você.

Esqueça seus “contatos”, seus “pistolões”, suas “dicas quentes”. Seus “apadrinhamentos”, seus “favores devidos”, suas muletas para andar. Uma vez na vida, viva; mas por si, sem dependências. Se vira, amigo...

Se vai valer a pena? A resposta deve ser dada por você mesmo. Ninguém sabe das suas dores e anseios. Pode ser que isso que você chama de “levar a vida”, essa forma preguiçosa de guiar seus passos até seu fim inevitável, lhe seja agradável. Vai muito pela sua cabeça. Mas já que o seu fim vai ser o mesmo de todos, tente fazer com que esse breve intervalo de tempo entre seu parto e seu passamento tenha valido a pena.

Se vira, camarada. Antes que seja tarde. Antes que seja tarde demais. Antes que não seja mais tarde ou cedo demais, apenas inútil.

30.4.03

O buraco



Apartamento na Zona Sul. O dia azul resplandecente do lado de fora não combina em nada com o ambiente. As paredes amarelas de tanta nicotina, os livros e papéis amontoados, o computador com seu zumbido perpétuo. No centro da sala, uma mesa, duas cadeiras, uma garrafa de uísque na metade. Antônio e Luis Cláudio estão em silêncio. O copo do Antônio meio cheio, o de Luis, meio vazio. Antônio esperou que esse momento nunca chegasse. Mas finalmente chegou.

- Você tem certeza, Cláudio?
- Claro, Tonico. Você sabe que sim. Ou você achou que eu estava brincando?
- Confesso que não pensei nada no momento. Eu nunca levo muito a sério as loucuras que você diz...
- Pois devia.
- É.

Luis acende o terceiro cigarro em menos de 10 minutos, ignorando a cara de reprovação do amigo. Antônio não conseguia acreditar no que estava prestes a testemunhar. Era uma loucura, mas ele havia prometido a Cláudio. E Cláudio sempre cobrava suas promessas.

- Eu tinha te falado, Tonico. E você prometeu estar comigo nessa hora. O prazo acabou.
- Mas....você não pode se entregar dessa forma, Cláudio. E o tratamento?
- O tratamento que se foda! Mais uma sessão e eu morreria mesmo..
- O médico te deu três meses...
- E hoje acaba o prazo. Eu sempre achei engraçados esses prazos dados pelos médicos. Eu sempre imaginei qual seria minha reação quando recebesse uma data limite como essa. Três meses! Na minha cabeça, no dia exato em que acabasse o prazo, eu cairia fulminado no chão. Não gosto dessas imprevisibilidades. Se eu me fosse antes, tudo bem. O doutor foi bem claro: no máximo três meses de vida. Não vou ficar brincando de moribundo. Ele me deu três meses e disso eu me recuso a passar por aqui.
- Não fale besteiras, Cláudio. Você pode melhorar...
- Há! Eu já passei da fase de me enganar, Tonico. Não fique se enganando também...

A promessa tinha que ser cumprida. Antônio achou a idéia ridícula na hora, mas o dia D havia chegado e Luis realmente cobrou a dívida. Enquanto via Luis acabando com mais um copo de uísque, Antônio se lembrou das coisas que já havia passado com Luis. Era seu melhor amigo, desde crianças. E agora Luis, com a maior das calmas, quer dar um fim nessa amizade de forma definitiva.

O que mais deixava Antônio revoltado nem era a desistência (covardia?) de Luis. Desde que soube da gravidade da sua doença, sabia que ele não aguentaria o tranco de viver o pouco que lhe restava de vida como um enfermo, um doente terminal. O que revoltava Antônio era a crueldade de Luis ao cobrar a promessa. Ainda mais esse tipo de promessa. Desistir da vida, ignorando todos os que o amavam já era um bruto egoísmo. Mas cobrar esse tipo de promessa, do seu melhor amigo, já era sadismo. Mas apesar da ingrata incumbência que recebeu, ele não discutiria com Luis. Eram seus últimos momentos. Se fosse para ser liberado da promessa, que isso partisse de Luis.

Luis encheu de novo seu copo, deu uma longa talagada, uma forte tragada no cigarro e tossiu.

- Cof, cof...Você sabe qual é a coisa que quanto mais dela se tira, mais ela cresce?
- Ih...já está bêbado?
- Claro que estou, merda...Responde logo...Se é que você sabe.
- Claro que sei. É o buraco.
- Isso. O buraco. Depois que eu decidi, por conta própria, arranjar um buraco só pra mim, tentei traçar um paralelo entre um buraco e a vida.
- E teve sucesso?
- Não...- rindo - Talvez a vida já seja um buraco, quando nascemos. Nós vamos a preenchendo, dia após dia, tentando dar um sentido a ela. Mas no final das contas, somando os dias, nos acabamos com o buraco. Nos enchemos o buraco/vida todo dia, até que não haja mais o buraco, até que ele esteja completamente cheio.
- Que besteira...
- É...eu sei...- rindo novamente.

Luis matou o que restava de uísque no seu copo em um gole. Antônio até acharia engraçada a cara dele depois de engolir a dose, estivessem em uma situação. Luis acendeu um cigarro na guimba do anterior e se levantou da cadeira.

- Está na hora, Tonico...- falou Luis, olhos marejados.
- Cláudio...
- Limpa essas lágrimas da cara...isso não pega bem, Tonico. Um homem velho desses chorando como uma criança. Dá cá um abraço e POR FAVOR, não me venha tentar me convencer a mudar de ideia de novo....
- Cláudio...isso é loucura!
- Eu sei....mas a vida é louca. Quem sabe se a morte não tem mais lógica...

Os dois se abraçaram. O abraço mais longo e fraternal que já deram.

- Tonico...Sei que parece crueldade te obrigar a fazer isso. Mas é o mais certo pra mim. E eu precisava do meu grande amigo, meu irmão aqui. Em tudo que eu fiz de importante na minha vida, sempre tive você do meu lado....Você entende?
- Entendo, Cláudio...
- Tudo bem...é a hora...A gente se vê um dia...
- Assim eu espero.
- Adeus, Tonico.
- Adeus, Cláudio.

Luis foi até a janela, abriu-a e olhou o céu e o mar por uns momentos. Ainda com o cigarro na boca sentou no parapeito da janela.

- É um lindo dia pra morrer...