22.12.03

Conto de Natal



- Já tá na época, né?
- Já, já...Pode pegar o bicho.

Era tempo de pegar o velho Papai Noel inflável e colocar na frente da loja. Pelo estado do grande boneco, não se poderia chamá-lo de decoração de Natal: ele estava imundo. Não era uma coisa que gostassem de fazer. Pegar o inflável no porão, passar uma água nele - com uma mangueira, sem muito esmero - enchê-lo na boca - a bomba estava quebrada desde o final do ano de 92 - e pendurá-lo na frente da velha loja.

Era mais porque a cidade ficava toda emperiquitada. O tal do "espírito natalino" não impregnava os dois como acontecia com todos. Não queriam parecer insensíveis perante sua pouca clientela. Mas o aquele Papai Noel desproporcional à fachada da sua loja era tão pouco sincero quanto os "boas festas!" que desejavam aos seus clientes.

Eram sócios no armarinho. Eram sócios desde nascença, para deixar a situação mais clara. Eram gêmeos. Passavam dos sessenta e só tinham um ao outro. E o seu "comércio", como gostavam de falar. Nunca tiveram muitos amigos, por falta de vontade e de oportunidade. Nem entre si tinham esse afeto todo. Eram irmãos, estavam atados por laços mais fortes que uma mera amizade. Chamavam-se Amâncio e Emanuel.

Nesse ano, era a vez do Emanuel pegar e "limpar" o inflável. Caberia a Amâncio pendurá-lo junto ao letreiro da loja. O enchimento ficava por conta de ambos, decidindo quando ele estava meio cheio quem tivera o trabalho da limpeza. Fazia 20 anos que era assim, cada um tinha a sua parte e nenhum pedia ajuda ao outro. Evitavam brigas desse jeito.

Emanuel encontrou o Papai Noel dobrado, amarrado com uma corda de sisal, acumulando poeira no fundo do estoque. Pegou-o de onde estava, entre resmungos. Cortou a corda com o canivete que sempre trazia no bolso e estendeu o inflável no chão, no fundo da loja. Estava imundo. Parece que no ano anterior, a poluição fizera mais estragos ao boneco. A tradição mandava que Emanuel pegasse a mangueira, borrifasse alguns jatos d?água para tirar o excesso de pó e pronto. Mas esse ano, não se sabe porque, Emanuel achou melhor jogar um sabão e passar ao menos uma vassoura no Papai Noel. Fez isso, apesar de ter mais trabalho do que gostaria.

Amâncio foi ao procurar o irmão. Não entendia o porque da demora do Emanuel, seu vizinho - e concorrente - Petruquio já estava pendurando as guirlandas na frente do seu armarinho. Amâncio encontrou Emanuel soprando o inflável. Os braços e a barba do Bom Velhinho já estavam inflados, como que ganhando vida. Amâncio reparou na dificuldade que o irmão tinha para recuperar o fôlego, a cada bufada.

- Por que a demora, Emanuel? Aquele Petruquio já está com a frente da birosca dele toda enfeitada.
- Resolvi limpar melhor o bicho esse ano. Eles estava muito sujo. Passei sabão e vassoura nele.
- Sério? - respondeu surpreso Amâncio - Cuidando bem do bicho? Posso saber por que?
- Ah...- disse Emanuel, pensando na resposta - Ele estava sujo demais. E eu sou higiênico. Se eu vou ter que meter a boca nele, melhor que ele esteja limpo.
- Nós vamos botar a boca nele, não?
- Isso.

Amâncio ficou vendo o irmão encher o boneco, a muito custo. Quando Emanuel deu mais uma tossida após outra curta soprada, resolveu ajudar.

- Me dá esse boneco aqui, Emanuel. Deixa que eu sopro pra você.
- Ainda não cheguei na metade.
- Eu sei. Mas eu vou te ajudar.
- Me ajudar? - disse um surpreso Emanuel - Posso saber por que?
- Bom...- pensou Amâncio para responder - se continuar nesse ritmo, eu só coloco esse bicho lá na frente no ano que vem.
- Você que sabe.
- Isso.

Amâncio começou a encher o Papai Noel muito mais rápido. Tinha mais fôlego que o irmão. "Se esse idiota não fumasse, teria mais saúde", sempre falava sobre Emanuel. Acabou de encher e ia levando o inflável para frente do armarinho. Era um boneco grande, e sempre dava trabalho para tirá-lo dos fundos.

- Deixa eu te ajudar - falou Emanuel, vendo a dificuldade das pernas do boneco para passar pela porta.
- Tá bom. Empurra aí que vai.

A escada já tinha sido colocada junto à entrada da porta. Os dois irmãos, sem falarem sobre o assunto, levaram o Papai Noel até a marquise da loja, onde seria amarrado. Amâncio passava os fios pelo corpo do boneco sob o olhar atento do Emanuel. Cada agachada que o primeiro dava para fazer os nós em volta do boneco eram acompanhados por gemidos de dor.

- O que você tem, Amâncio?
- Minhas costas...Elas doem quando me abaixo.
- Se você fosse menos preguiçoso e fizesse pelo menos uma caminhada diária, não teria essas dores de velho.
- Emanuel, nós somos velhos.
- Eu sei.

Emanuel se abaixou e começou a dar os laços na outra perna do Papai Noel. Amâncio ficou olhando para ele, atônito.

- O que você está fazendo?
- O que parece que eu estou fazendo? Estou te ajudando, oras.
- Por que?
- Porque...Se você demorar mais um pouco com isso, o Petruquio vai decorar a rua toda antes de você acabar.

Emanuel terminou a amarração do Papai Noel e ambos desceram a escada, um ajudando o outro. Estacaram diante da loja e olharam para o boneco, em silêncio.

- Ficou bonito.
- Pois é. Mais bonito que nos outros anos.
- Está mais limpo, também.
- Isso.

Milhares de frases poderiam ser ditas por ambos, mas eles preferiram ficar calados, olhando a loja, sua loja, há anos o único elo de ligação entre duas pessoas que dividiram até o útero materno. Depois de mais alguns minutos olhando o grande inflável, se olharam notaram que não precisavam falar nada. Tudo já havia sido dito.

Olharam para loja do Petruquio, deram uma risada e entraram no armarinho, abraçados.

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