14.1.04

Almas Gêmeas



Fiz acidentalmente um furo no meu cigarro, e para que todas suas toxinas invadissem meu pulmão a contento, sem que eu perdesse sequer um sopro da sua fumaça, estava fumando como quem segura uma flauta: polegar e indicador no filtro, dedo médio no buraco que extraviava a fumaça. Foi essa mera casualidade, esse ínfimo infortúnio que chamou a atenção dela.

Esperávamos nossos respectivos ônibus, em um ponto cheio de gente com cara de enfado, por conta de horas seguidas de um trabalho entediante. Notei que ela reparou no meu modo pouco ortodoxo de tragar o cigarro. Olhava insistentemente, o que chegou a me incomodar. Talvez por perceber meu incômodo, ela veio falar comigo.

- Desculpe a intromissão, mas notei que você segura o cigarro de forma meio estranha.
- Ah, é isso? Bem, quando eu peguei...
- Não fale. Você pegou o cigarro, apesar de estar pensando em parar de fumar. Para compensar, resolveu fazer um buraco nele, pra engolir menos fumaça e assim, sentir que está parando aos poucos com o péssimo hábito. Depois, vendo que essa atitude é ridícula, se arrependeu e decidiu tapar o buraco com o dedo. Acertei?
- Nunca vi uma dedução tão errada em toda minha vida. Como detetive, você morreria de fome. - respondi, rindo. Você acha mesmo fumar um péssimo hábito?
- Desculpe. Acho que li muito Conan Doyle quando era pequena. Não acho não. Eu até ia te pedir um cigarro. Acho que tem até um certo charme subversivo ser fumante em tempos tão antitabagistas. E eu não confio em pessoas que não tenham nenhum vício - respondeu, sorrindo.
- Gostei da sua forma de pensar, menina. Davi, prazer - falei, passando um dos meus Marlboros.
- Rita, igualmente.

Ficamos conversando sobre assuntos aleatórios e sem importância. Era inteligente e - isso é importante, e todos deveriam saber a diferença entre um e outro - esperta. O papo ia muito bem, até que ela se concentrou por uns instantes no tráfego.

- Putz, é uma pena. Mas meu ônibus chegou. Tenho que ir.

Forçando a vista - eu estava sem meus óculos - pude ver para onde ia ônibus que ela pegava. Era o mesmo que eu esperava.

- Pena, mesmo. E pra você: vou pegar o mesmo. Você não vai se livrar tão fácil de mim.
- Hmmm... O acaso não existe - ela disse rindo.
- Kardec? Prefiro algo mais científico. "Deus não joga dados com o Universo", Einstein.
- Tenho minhas dúvidas se essa sua citação se aplica ao caso - falou Rita, enquanto subia no ônibus.
- Talvez não. Mas citar Einstein costuma impressionar as pessoas.
- Você não precisa disso.
- Não?
- Não comigo.

Estava tudo perfeito demais. Além de inteligente e esperta, Rita era muito bonita. Isso não podia estar acontecendo, não comigo. Não sou o tipo de cara que tem esse tipo de sorte. Alguma coisa deveria estar errada. Ou ela tinha uma doença altamente contagiosa ou era um travesti, não sei.

- No que você está pensando?
- Ahn? Ah, nada....
- Já sei. Você está pensando que essa nossa situação não pode estar acontecendo, que uma garota bonita e inteligente como eu não poderia estar aqui te dando trela, que eu devo ter algo de errado, alguma doença ou...
- Você não é um travesti, né?
- Ah - ela gargalhava - não, não sou. Mas isso eu não posso te provar num coletivo. Isso quer dizer que eu adivinhei seus pensamentos?
- Não - desconversei - não acertou. Como eu disse, sua vocação para detetive é nula.
- Sei. Não teria dinheiro nem pra comprar cigarros. Mas isso eu pego com você.

Dei outro cigarro pra ela, espantado. Se o acaso não existe, como Rita mesmo havia falado há pouco, seria ela a mulher da minha vida? Sempre fui cético demais pra acreditar em "amores à primeira vista" e que tais. Mas era incrível nossa afinidade. Continuamos conversando durante todo trajeto e - outro acaso? - o lugar onde desceríamos não chegava. Só faltava mesmo sermos vizinhos.

- Você vai descer onde, Davi? - ela pergunta de repente.
- Perto da praça General Osório. E você?
- Nossa! Eu também vou! O mundo é mesmo pequeno....
- Sério? Pois é. O mundo é pequeno, e o Rio...
- ...É menor ainda! Era justamente isso que eu ia dizer.

Atordoados por essa sucessão de coincidências, descemos no mesmo ponto. Trocamos telefone, claro. E obviamente nos encontramos uma, duas, várias vezes depois. Começamos um namoro, à primeira vista, perfeito. Éramos almas gêmeas, se é que essas esoterices sentimentalóides existem. Não precisávamos nem olhar os jornais para procurar programas. Instintivamente, queríamos sempre fazer as mesmas coisas. Sempre. Ela adorava meus amigos e eu os dela. Até tínhamos alguns em comum. Gostávamos dos mesmos filmes, dos mesmos livros, dos mesmos discos. Não havia nada que pudéssemos mostrar um para o outro.

E quando nós percebemos isso, foi o fim. "Almas gêmeas", se existem mesmo, são fadadas ao fracasso. Não há o mistério, não há a descoberta, não se cresce com o convívio, exatamente porque elas são iguais em tudo. Nunca chegamos a brigar. Somos amigos até hoje, não havia como fugir disso. Eu a amo e o sentimento é recíproco. Mas nunca poderemos ter um relacionamento.

O fim veio rápido e indolor. Nem precisamos nos falar. Ela olhou nos meus olhos e ambos vimos a mesma coisa.

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