20.1.04

Antes só...



Acordou e encontrou a casa vazia. Pensou consigo mesmo "bom dia, silêncio" e foi ao banheiro. Enquanto lavava o rosto, notou como os vestígios dela já estavam desaparecendo.Desenvolveu uma teoria: nenhum lugar da casa se transforma tanto após a saída de uma mulher como o banheiro. Os vários frascos de cosméticos que ele não fazia ideia da serventia, as toalhas sempre arrumadas, a indefectível calcinha pendurada em algum lugar visível, a tampa do vaso sempre abaixada. Nada era como antes.

Acabou sua higiene matinal pela metade. Não fez a barba. Não havia ninguém para reclamar que ela arranhava. Fez questão de pensar que não era pela falta de reclamação que ele não estava escanhoado. Até que achava que aquele visual "universitário-engajado-na-luta-armada-em-68" caía bem. Era bom variar.

O café da manhã era em pé, na pia da cozinha. Nada parecido com os "breakfast" de outrora. Suquinhos, bolos, pães e frios eram frescuras. Era tempo de uma reciclada. Nada de exageros gastronômicos pela manhã. Sejamos frugais e práticos! pensava. Comeu fria mesmo a pizza de ontem. Na falta de uma faca limpa - 'preciso chamar uma diarista" - cortou sua fatia com uma tesoura. Pra acompanhar, uma das maiores maravilhas da moderna tecnologia alimentícia: o café instantâneo. Ficou meio fraco, mas um dia, pensou, eu acerto.

Sua indumentária também seria impossível nos tempos de casado. Pés calçados com meias de pares diferentes, chinelos mal colocados e uma cueca. Só de imaginar essa cena (impossível de acontecer) há cerca de duas semanas, já imaginava a gritaria. "Vá já colocar um short! Não quero que seus pelos fiquem jogados onde nós comemos!". Ah! Liberdade é poder coçar o saco em qualquer lugar da nossa casa!

Acabado o café, foi se trocar, tinha que trabalhar. Agora tinha tempo pra escolher a roupa com calma, já que tomava banho sem ter que esperar por séculos que o banheiro desocupasse. Seria ótimo, claro, se ele tivesse uma grande variedade de peças limpas, o que não era o caso. Ainda não dominava aquele trambolho na área. A última vez que tentou usar a máquina de lavar, conseguiu manchar uma camisa que ele adorava - que por acaso ela tinha dado. Pra isso, e pra escolher homens, tinha bom gosto.

Reparou que o armário também ressentia a falta de uma presença feminina. Não tinha muita intimidade com cabides. Não que isso fizesse muita diferença. Não sabendo passar uma camisa sequer, daria no mesmo deixar suas poucas roupas emboladas ou amarrotadas nos cabides.

Mas isso tudo era futilidade. O que interessa é a pessoa, e não sua vestimenta. Vestiu-se e se olhou no espelho. A barba por fazer, as roupas amarfanhadas e o aspecto abandonado do quarto por trás do seu reflexo foi o bastante para fazê-lo desabar na cama. Precisava de ajuda. Precisava dela.

Estava ainda sentado, segurando a cabeça com as mãos quando toca a campainha. Ele se levanta em um salto, pensando, exultante, "é ela". Corre até a porta e a abre, antes que seja necessário um segundo toque. Ela está em frente a ele, com duas malas no chão e uma cara de quem espera desculpas. Então ele fala.

- Amor! Ainda bem que você apareceu! Preciso muito de você. Você pode me indicar uma boa empregada?

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